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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Golpe, pastores e 125 milhões em insegurança alimentar no celeiro do mundo

Bruna Barros/Folhapress
Imagem: Bruna Barros/Folhapress

Colunista do UOL

27/06/2022 07h24

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Vamos falar de golpe, pastores e da fome de milhões de brasileiros?

Não é segredo que Jair Bolsonaro ameaça a democracia. Alguns afirmam que pretende impedir a eleição; outros, que usaria os dois meses entre a eventual derrota e a posse do eleito para provocar turbulência à moda Donald Trump, de sorte a suscitar uma intervenção das Forças Armadas.

"Você acha essa tentativa impossível, Reinaldo?" Já cheguei a pensar que sim. Não penso mais. Tentar não é sinônimo de ser bem-sucedido. E o custo seria gigantesco para o país, pouco importa quanto durasse a desordem. Uma armação contra a eleição ou o resultado das urnas teria de contar com a conivência das Forças Armadas, ainda que viesse disfarçada de garantia da lei e da ordem.

Que Bolsonaro espalha golpismo à sua volta, bem, isso é inegável. O TSE encontra-se sob o assédio do Ministério da Defesa. Estariam os quartéis dispostos a uma virada de mesa? Até Anderson Torres, ministro da Justiça — aquele que estava em companhia de Bolsonaro quando este ligou para Milton Ribeiro com seus "pressentimentos" —, houve por bem mandar um ofício meio malcriado ao tribunal eleitoral.

NOVAS AMEAÇAS, MENTIRA E GROSSERIA
Veio a público ontem à noite uma conversa de Jair Bolsonaro com aliados. Voltou a ameaçar:
"Uma hora vai acontecer uma tragédia que a gente não quer. Não estamos dando recado, aviso, todo mundo sabe o que está acontecendo".

O que é que "está acontecendo"? Uma "tragédia"? Contra quem? Repetiu a mentira de que dispõe de provas de que venceu a eleição de 2018 no primeiro turno. São tão verdadeiras como as que exibiu sobre as supostas fraudes no pleito de 2014. Não tinha nada em mãos e ainda passou a ser investigado num inquérito.

Na quarta-feira, Bolsonaro compareceu a um jantar na residência oficial da Presidência da Câmara, oferecido por Arthur Lira (PP-AL), seu principal aliado no Congresso. O encontro celebrou os vinte anos do ministro Gilmar Mendes no STF. Estiveram presentes, entre uns 40 convidados, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); outros ministros da corte (Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça), e até parlamentares da oposição: os deputados Orlando Silva (PCdoB-SP) — consta que autor da ideia —, Odair Cunha (PT-MG) e o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes.

Num dado momento, Bolsonaro e Moraes tiveram uma breve conversa a portas fechadas, em sala anexa. O fato foi lido como sinal de alguma distensão e de possível diálogo institucional. Nas redes sociais, creiam, fanáticos do bolsonarismo expressaram seu descontentamento com a conversa. Eles não queriam seu líder naquele encontro. Viram como sinal de fraqueza. Na sua imaginação delirante, o "Mito" está sempre destruindo adversários, distribuindo grosserias e ameaçando a democracia. E, de verdade, é o que Bolsonaro gosta de fazer.

Pois bem. No aludido papo com aliados, Bolsonaro se referiu à conversa com Moraes nestes termos:
"Mais ou menos cinco minutos de conversa. Falei para ele: 'Vamos conversar na próxima semana com mais tempo. E pode ser em qualquer lugar'. Ver se consigo entendê-lo e ele me entender também, porque, pelo que ele falou ali, não me entende. Falou certas coisas que não procediam, não vou revelar o que é. Eu fiquei mais quieto, ouvindo ele falar. E pretendo conversar com ele, sim, pretendo, e ver o que está acontecendo, porque no fundo eu quero diálogo e respeito à Constituição".

Respeito à Constituição ameaçando o país "com uma tragédia"?

Como é que o chefe de um dos Poderes se encontra com um ministro do Supremo e anuncia à sua audiência que o Interlocutor disse "coisas que não procedem"? Há dias, afirmou que teria feito um acordo com Moraes em setembro do ano passado e que este não teria cumprido a sua parte. Indaguei aqui quem se atreveria a fazer uma combinação secreta com ele. O resumo que fez da conversa que manteve com o ministro é a evidência dessa impossibilidade.

OS PASTORES
Bolsonaro também se manifestou sobre a prisão preventiva de Milton Ribeiro, depois revogada, nestes termos:
"O Ministério Público foi contra a prisão do Milton. Não tinha mínimo indício de corrupção por parte dele e no meu entender ele foi preso injustamente".

E ainda:
"Aí você vai ver o processo --me passaram, eu não vi --, o Ministério Público Federal lá em Brasília foi contra a prisão. Geralmente o juiz segue isso daí. Por que foi contra: porque não tinha indício de prova".

É mentira de novo! O MPF não viu razão para a prisão preventiva -- e já expliquei a questão à farta --, mas, ao contrário do que diz Bolsonaro, reconheceu a existência de provas de que crimes aconteceram, fala em organização criminosa e "com o possível respaldo" de Ribeiro. Transcrevo:
"Com efeito, as provas colhidas e já documentadas apontam para a prática dos crimes de corrupção ativa, tráfico de influência, prevaricação e advocacia administrativa, todos em contexto de Organização Criminosa. Como bem apontado pela Autoridade Policial, os crimes ora investigados foram praticados no âmbito do Ministério da Educação, ao que tudo indica, com o respaldo do então Chefe da Pasta - Milton Ribeiro".

Note-se que o MPF defendeu a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão. É claro que nada disso foi dito ou lembrado a Bolsonaro. Falou o que lhe deu na telha.

Depois que Ribeiro e os demais deixaram a cadeia, vieram a público diálogos do ex-ministro indicando que o próprio Bolsonaro o advertira de que poderia ser alvo de um mandado de busca de apreensão. Segundo o ex-ministro, o presidente tivera um "pressentimento". Há outros indícios de que pode ter havido vazamento da operação.

JUNTANDO AS PONTAS
Agora vamos colocar Milton Ribeiro, os pastores lobistas e outras lambanças em curso -- a maior delas é a do orçamento secreto -- no cenário de um golpe.

Ainda que fosse papo-furado e que notáveis corruptos da República tenham apoiado o golpe de 1964 — alguns não tardaram a quebrar a cara também —, uma das razões alegadas para desfechá-lo foi o combate à corrupção. Depois da luta contra a subversão e o comunismo, era a justificativa mais forte. Tratava-se de pretexto igualmente picareta, mas a Guerra Fria dava suporte a canalhas golpistas.

Digam-me: os militares brasileiros ousariam sustentar um autogolpe de Bolsonaro em nome da moralidade pública? E depois fariam o quê? Condecorariam os pastores Gilmar Santos e Arílton Moura? Nenhum país é uma ilha, o que vale também para os que são. Diante do mundo, como é que se explicaria a quartelada? O combate ao comunismo? Ah, não cola mais. O esquerdista Gustavo Petro acaba de vencer a eleição na Colômbia, país do continente com a maior presença de militares americanos, e ninguém ousou falar em desrespeitar a vontade popular.

O escândalo do MEC é só mais uma evidência de uma gestão que seria desastrosa ainda que não fosse golpista. Mais de 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil. A insegurança alimentar atinge quase 60% da população — precisamente, 58,7%. Estamos falando de 125 milhões de pessoas. Os números são da rede Penssan, que reúne pesquisadores de universidades e instituições de todo o Brasil. Seis em cada 10 brasileiros não têm comida suficiente para satisfazer suas necessidades diárias no país que é o segundo maior exportador de alimentos do mundo.

Quando ainda deputado, Jair Bolsonaro chegou a lamentar que o golpe militar não tivesse matado ao menos "uns 30 mil".

Quantos cadáveres tem em mente? Não bastam os mais de 670 mil da Covid?

Golpe em nome do quê? Contra quem?

Quem ameaça hoje o futuro dos brasileiros e do Brasil?

Os militares que pensam e ponderam deveriam rezar todos os dias para Bolsonaro ser derrotado. Assim, podem dar início à volta ao papel que lhes reserva a Constituição. A Carta lhes confere a tarefa de defender o Brasil e os brasileiros em situações específicas e muito graves.

Matar esfomeados não está entre suas atribuições. E depois ainda teriam de condecorar Milton Ribeiro, Gilmar Santos e Arilton Moura. Em nome de Deus, da Pátria e da família.