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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Assédio-CEF: no altar da hipocrisia, bolsonarismo evoca o Deus da impostura

Ilustração: Ana Luíza Costa
Imagem: Ilustração: Ana Luíza Costa

Colunista do UOL

29/06/2022 04h37

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A situação de Pedro Guimarães, ainda presidente da Caixa enquanto escrevo, tornou-se insustentável. Ele esteve ontem à noite com o presidente Jair Bolsonaro e ficou acertado que deixa o cargo nesta quarta. O desgaste, em caso de permanência, seria brutal. Reportagem de Rodrigo Rangel publicada ontem pelo Portal Metrópoles informa que Guimarães está sendo investigado pelo Ministério Público Federal por assédio sexual. A apuração segue em sigilo. O caso caiu como uma bomba no bolsonarismo. Mais uma.

O repórter falou com algumas das mulheres que levaram adiante a denúncia contra Guimarães. Se o que dizem for verdade, estamos diante do perfil clássico de um assediador, que usa uma posição de poder para tentar obter satisfação sexual, ainda que — ou especialmente por isso — à custa do constrangimento dos alvos de suas investidas — suas subordinadas.

Segundo relato de algumas mulheres à reportagem, a abordagem era feita durante viagens para tratar de produtos, convênios e eventos da Caixa. Guimarães fazia o recrutamento de funcionárias do banco e buscava estabelecer intimidades, especialmente quando hospedados em hotéis.

Transcrevo um trecho:

Beatriz relata que, em uma dessas situações, esteve na porta do quarto de Guimarães para entregar o que ele pedira e, então, foi convidada a voltar na sequência para "discutir a carreira". "Ele falou assim: 'Vai lá, toma um banho e vem aqui depois para a gente conversar sobre sua carreira'. Não entendi. Na porta do quarto dele. Ele do lado de dentro (do quarto) e eu um metro para fora. Falei assim: 'Depois a gente conversa, presidente'. Achei aquilo um absurdo. Não ia entrar no quarto dele. Fui para meu quarto e entrei em pânico". Em outra ocasião, ao atender o chamado, a funcionária encontrou Guimarães de samba-canção: "Ele abriu a porta com um short, parecia que estava sem cueca. Não estava decente. A sensação que tinha era que estava sem (cueca). Muito ruim a sensação". "É hostil", diz Ana, a outra funcionária que relata já ter sido chamada à noite para ir ao quarto de hotel em que Guimarães estava para entregar um carregador de celular. Beatriz afirma que tem crises de pânico quando é escalada para novas viagens. "Tenho pânico de ter que trabalhar com ele. Tenho medo da pessoa. Agora eu tento literalmente me esconder nas agendas", afirma. "Agora, quando viajo, coloco cadeira na porta do quarto. Fico com medo de alguém bater."
"Se ele tem o poder, você tem que fazer"

Todos os relatos têm como pano de fundo a relação de poder e a posição de mando de Guimarães. "A posição em que ele se coloca deixa as mulheres muito constrangidas. Se ele tem o poder, você tem que fazer, tem que fazer o que ele mandar, independentemente do que seja", afirma Thaís, a funcionária que diz ter sido convidada por ele para ir à sauna e, na mesma viagem, recebeu um beliscão. "Ele chega de forma muita invasiva e constrangedora", prossegue.

MERCADO FINANCEIRO E LÉO PINHEIRO

Oriundo do mercado financeiro e genro de Léo Pinheiro, o enrolado ex-presidente da OAS, Guimarães é o mais entusiasmado de todos os bolsonaristas do primeiro escalão. Não contei o número de vezes, mas é certamente o campeão em aparições nas "lives" do presidente e figura quase onipresente em solenidades sobre os mais variados temas. Chegou a pensar em se candidatar, mas desistiu ao receber pesquisas não muito animadoras.

Já ordenou, seguindo algum receituário secreto de técnicas motivacionais, que servidores da Caixa fizessem flexões em público, num estilo, digamos, marcial. A reportagem do Metrópoles informa que gosta de descer a pé os 20 andares que separam do térreo o seu gabinete e, no percurso, vai arrebanhando funcionários do banco, "convidados" a segui-lo. Não fosse o assédio sexual, parece que seria o caso de discutir o assédio moral.

No fim do ano passado, informa o Metrópoles, um grupo de funcionárias decidiu romper o silêncio e denunciar o assédio. Cinco delas aceitaram falar com a reportagem. Resta a Guimaraes dizer que vai deixar a Caixa para não prejudicar Jair Bolsonaro e coisa e tal e, é evidente, para se defender.

Sua situação é a pior possível. Se a abordagem agressiva entre iguais na hierarquia do trabalho já é inadmissível, tanto pior quando o assediador se vale de uma posição de poder. Expõe-se o duplo aspecto político da ocorrência: a) o machismo, vamos dizer, estrutural, que entende que a mulher pode receber uma investida indevida porque desfrutável; b) a mulher como alvo do predador, que pode mais.

BOLSONARISTA RAIZ

Guimarães sempre fez questão de se mostrar um bolsonarista raiz, daqueles que não hesitam em recorrer às armas. No seu caso, nada menos de 15! O arsenal de um patriota. Vocês se lembram daquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020, em que ficou evidente a desordem que é o governo Bolsonaro, quando o presidente expressou, então, entre palavrões, o desejo de controlar a Polícia Federal?

Pois bem, tratou-se lá do caso da mulher e da filha de uma parlamentar que teriam sido detidas pela Polícia porque estavam nadando em Copacabana, embora houvesse a proibição expressa de usar o mar em razão da covid. Guimarães disse o que aconteceria se o episódio envolvesse uma filha sua:

"Que porra é essa? O cara vai pro camburão com a filha. Se fosse eu, ia pegar minhas quinze armas, e eu ia morrer. Porque, se a minha filha fosse pro camburão, eu ia matar ou morrer. Que isso? Tava nadando! É uma atleta olímpica. Você tira a pessoa, a pessoa tá nadando, com 14 anos. Eu tenho uma filha, Maria, de 14 anos. Se a minha filha fosse pro camburão, ou eu matava ou morria. Que isso?"

Vejam aí: se a imposição de uma restrição policial, que valia para todo mundo, já levaria Guimarães a usar o seu arsenal, pode-se imaginar o que ele considera justo que pais, maridos, irmãos e namorados — além, é claro!, das próprias vítimas — façam com um assediador, não é mesmo? Seria preferível para as vítimas, para a Caixa e para o investigado que tudo não passasse de um equívoco, não é? Mas, infelizmente, não parece ser o caso.

Nesta terça, o então e ainda presidente da Caixa acompanhou Bolsonaro em mais um evento. Questões:
- Guimarães sabia que estava sob investigação, certo?;
- ele alertou o presidente que estava sob escrutínio do Ministério Público Federal?;
- se avisou, Bolsonaro não deu bola?

ELEITORADO

As mulheres, que compõem mais de 50% do eleitorado, estão entre as categorias que mais rejeitam Bolsonaro. Dizem que não votam nele de jeito nenhum 55% dos brasileiros; entre as mulheres, esse índice alcança 61%. Segundo a pesquisa Genial/Quaest, 48% das mulheres votam em Lula no primeiro turno; só 24% escolhem Bolsonaro.

O episódio Pedro Guimarães certamente não ajuda a candidatura de Bolsonaro entre as mulheres — e, havendo um mínimo de vergonha na cara, nem entre os homens.

Esse é um governo que não dá bola às políticas de reparação e de defesa da mulher. Ao contrário até: há uma mais do que indiscreta misoginia. Nos últimos tempos, a mulher tem servido apenas como coadjuvante do proselitismo antiaborto — tão brutal que os biltres tiveram a ousadia de tratar uma menina de 11 anos como mãe, não como uma criança.

Bolsonaro terá de largar a mão de Guimarães, ou este o leva ainda mais para o buraco. Os amigos do presidente têm colaborado bem pouco com os seus anseios. E não porque se inventem coisas contra esses patriotas, mas porque eles são, afinal, aquilo que são. Ajoelham-se no altar da hipocrisia e rezam ao Deus da impostura.