Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Extrema direita faz troféu do lixo moral; medo ela tem é do valor do mínimo

Reprodução/EBC; Reprodução
Imagem: Reprodução/EBC; Reprodução

Colunista do UOL

26/10/2022 06h55

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Será que o eleitor de Jair Bolsonaro repudia coisas como "pintou um clima com meninas de 14, 15 anos", arruaça em igrejas ou tiros disparados por um celerado contra policiais federais? Vamos ver.

A literatura recente sobre o perigo que correm as democracias mundo afora é farta. E, por óbvio, só é assim porque o modelo está sob ataque permanente. Seus inimigos estão organizados, estruturados e são fartamente financiados. Mais: usam as redes sociais com mais rapidez e destreza do que os democratas.

Ou talvez não seja bem isso: como não têm limites, fazem coisas permitidas por sua amoralidade essencial e sabem que lidam com adversários no geral escrupulosos. Querem um exemplo até besta? Um lado produz "fake news"; o outro cria mecanismos de checagem para denunciá-las. Adivinhem o que avança com mais rapidez... Vale dizer: o elemento que destrói o pacto civilizatório age; os que tentam preservá-lo reagem. Até que as empresas e plataformas não sejam devidamente responsabilizadas por abrigar a mentira industriada, vai se enxugando gelo.

Volto ao ponto lá das primeiras linhas. Àqueles afinados com a Constituição, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, com os valores necessários a uma vida em sociedade, parece insuportável — insano até — que um político, sendo presidente da República, diga, referindo-se a supostas meninas prostitutas (e que prostitutas não eram) o "pintou um clima". Mais: o presidente da República disse três vezes que garotas venezuelanas, que estavam aprendendo um ofício, faziam programa.

Estava mentindo. Se não estivesse, teria prevaricado. Na hipótese de se acreditar que o presidente realmente se confundiu, seria de indagar: "Mas ele fez o quê?" Se mentiu, se deliberadamente falseou a realidade, tem-se uma falha moral grave. Se acreditava na impressão que tornou pública, deixou de tomar providências que seu ofício lhe impunha. André Mendonça, um dos ministros de Bolsonaro no Supremo (segundo o próprio presidente), rejeitou de pronto pedidos de abertura de investigação e ainda resolveu dar uma bronca nos peticionários. Ou por outra: para Mendonça, nada aconteceu. Se, porventura, um dia, o presidente vier mesmo a topar com crianças se prostituindo e se nada fizer, haverá o ministro para dizer que errados estão os que apontam a omissão do chefe do Executivo.

Esse caso pode não ter dado votos a Bolsonaro. Não creio que um indeciso tenha, a partir desse evento escabroso, visto, enfim, um motivo para aderir à sua candidatura. Mas não nos enganemos: os que já haviam escolhido a candidatura do presidente com ele permaneceram alinhados porque o valor que torna aquilo tudo intolerável não orienta as escolhas dessa gente.

Talvez não aceitasse as mesmas falhas num vizinho, especialmente se os alvos dos disparates fossem suas respectivas filhas ou irmãs. Sendo coisa do "Mito", haverá, como houve, o massacre de desinformação nas redes assegurando tratar-se tudo de uma mentira, de uma armação dos adversários. Num podcast, o presidente teve a cara de pau de dizer que jamais havia associado as meninas à prostituição. Ora, o caso todo só existe em razão da acusação que fez. O absurdo pode não ter dado voto. Mas não tirou.

CASO JEFFERSON
E o atirador Roberto Jefferson? Observem: nesse episódio, nem mesmo se consegue criar uma fantasia para sobrepor aos fatos porque o próprio protagonista do desatino não permite. Ele confessa sem qualquer receio que despejou, sim, mais de 50 tiros contra os policiais e que usou três granadas. A sua situação como CAC, note-se, é irregular.

Muitos de nós gostamos de pensar que, nessa e em outras situações, o eleitorado de Bolsonaro vai acordar para a realidade. Ora, se um criminoso reage com essa violência contra policiais que cumprem uma ordem judicial, parece haver algo de errado. Ademais, o uso da arma como instrumento de luta política é uma das teses mais caras ao sr. presidente da República. A associação entre os dois é explícita.

Que nada! O próprio Bolsonaro veio inicialmente a público para igualar Jefferson ao Supremo — estariam todos errados —, como se aquela violência fosse uma reação aceitável e proporcional. Mudou um pouco mais tarde, pressionado por alguns políticos influentes do seu entorno. E olhem que, desta feita, o presidente nem teve o endosso unânime dos fanáticos: uma parte o criticou por não ter feito a defesa explícita do criminoso. Continuarão a votar no seu "Mito", é certo, mas deram mostras de que o querem ainda mais violento.

Afinal, todos ali são inimigos do STF e do TSE, alvos principais da cruzada fascistoide. Ao tribunal eleitoral — e isto também pode ser encontrado na grande imprensa —, imputa-se a imposição de "censura prévia", o que é escandalosamente mentiroso. Não se impõe nada previamente. Mas cada um arque com aquilo que disser. Até porque o Código Eleitoral pune, sim, quem veicula notícias falsas. Mais: direito de resposta também não é censura. O efeito Jefferson, no entanto, se existir, é marginal.

ARRUAÇA EM APARECIDA
É claro que o espetáculo protagonizado por bolsonaristas em Aparecida foi grotesco, seja pela intolerância política, seja pelo sequestro do domínio religioso para a causa eleitoreira, o que é muito mais evidente entre evangélicos. Pastores se converteram, com raras exceções, em prosélitos políticos e caçadores de votos. Alguns buscam até mesmo cassar -- com dois "esses" mesmo -- o direito de um fiel frequentar a igreja caso evidencie a intenção de votar em Lula.

O que Bolsonaro ganhou com aquela bagunça em Aparecida? Ainda que a resposta seja "nada", dá-se como certo: não perdeu. E olhem que aquele episódio deu início a uma série de protestos truculentos dentro dos próprios templos católicos. Parece que o episódio da Basílica foi uma espécie de senha.

SALÁRIO MÍNIMO E DEDUÇÕES
É claro que temas como os acima elencados têm de estar nas campanhas. Mas não se deve perder o pé da realidade por delicadeza ou em razão de uma esperança excessiva na capacidade de julgamento do próximo.

Esquerdistas, liberais autênticos (não alguns "clowns" do reacionarismo que reivindicam essa condição), democratas, a direita esclarecida (sim, existe e quase já chegou a lotar um Kombi), bem, toda essa gente tem, sim, de denunciar essas e outras aberrações porque a política deve ter um caráter também didático. Mas é muito importante ter claro que os convertidos não vão abandonar o seu "mito" em razão dessas violências. Numa entrevista, o presidente disse, por exemplo, não ter visto "nada de contundente" nas denúncias feitas por várias mulheres contra Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa. Choca? Sim. Mas quais pessoas estão estarrecidas? As "bolsominas" não hesitariam em chamar os relatos CONTUNDENTES de "armação de feministas e esquerdistas".

Então esclareço agora o entretítulo: é preciso, sim, botar a boca no trombone e evidenciar o que o bolsonarismo tem de deletério para uma vida civilizada, deixando claro por que ele não é compatível com um regime democrático. É preciso manter acesos os archotes de uma vida digna e respeitosa. Mas nem esses nem outros descalabros tendem a tirar votos de biltre, embora não se possa dizer que deem — de resto, servem para manter a tropa mobilizada.

Entendo que as ideias que andaram circulando pelo Ministério da Economia — como a desindexação do salário mínimo (e é preciso explicar o que quer dizer) e o fim da dedução no Imposto de Renda de gastos com saúde e educação — podem ser muito mais efetivas para, por exemplo, impedir uma migração de pobres e de setores da classe média para a nau dos insensatos. E, por certo, é preciso evidenciar a bandalheira corrupta daqueles que chegaram ao poder como a síntese de todas as virtudes, além da política homicida de Saúde no caso da covid-19.

Isso tudo dispensa certos pressupostos valorativos que, sendo fundamentais, estão, ainda assim, menos à flor da pele do que o pão de cada dia dos pobres. É preciso reconstruir os valores da vida democrática, mas me parece que as ideias que circulam na pasta de Guedes e o rastro de mortos podem criar mais dificuldades para a reeleição. Eles costumam transformar em distinções tudo o que consideramos máculas detestáveis da extrema direita.

Afinal, pensem bem: tudo aquilo que indigna os decentes é um trunfo para os indecentes e para aqueles que se converteram à indecência.