Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Lula tem de fazer a conciliação, sim. Mas com quem? Ofereço Mateus 8:5-17
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Não vou fugir ao coro dos que afirmam que Lula tem um desafio gigantesco pela frente, que é buscar, como dizem a "conciliação" ou "reconciliação! Emprega-se uma palavra ou outra, embora haja distância, digamos, temporal entre elas. Uma quer dizer "reunir", "juntar"; a outra significa fazer isso de novo, "ajuntar novamente". No contexto, a conciliação aponta para o entendimento entre diferentes; a "reconciliação", para uma espécie de pax entre aqueles que, unidos um dia, partiram para o confronto.
Lula já comandou uma espetacular conciliação no processo pré-eleitoral — bem como o fizeram aqueles que a ele se juntaram. Vejam o caso de Geraldo Alckmin, seu duro adversário na disputa de 2006. Ambos se conciliaram. Não havia como reconciliar os que nunca estiveram juntos. Também participaram da frente ampla contra os fascistoides quase todos os economistas e operadores do Plano Real. Empresários que nunca votaram no PT ou pertenceram ao círculo de influência de Lula participaram do que não deixou de ser uma operação de risco.
O agora presidente eleito tem sido um conciliador desde o tempo em que estava na cadeia. As mensagens que emanavam da prisão iam no sentido, justamente, da frente ampla para vencer o desatino bolsonarista. Não foi outro o sentido da entrevista que ele concedeu a este jornalista no dia 1º do abril de ano passado. E não há grande novidade nisso. Lula era um conciliador como sindicalista.
A propósito: o PT, desde a sua origem, nunca foi disruptivo; jamais buscou romper a ordem democrática. Ao contrário, empenhou-se em construí-la, ou não teria conseguido se organizar ainda durante a ditadura militar. Que tenhamos enfrentado, em 2022, uma campanha feroz contra "o risco comunista" que seria representado pelo partido dá conta do atraso do debate no Brasil e do grau de pistolagem a soldo a que se dedicaram algumas almas penadas do golpismo.
E a "reconciliação"? Bem, com quem o petista teria de se conciliar "de novo"? Com Ciro Gomes talvez. Bolsonaro está mudo há um dia. Todas as antevisões apresentadas sobre o primeiro turno não se cumpriram por 0,9 ponto percentual — ou, se quiserem, 1,8 ponto na diferença. Essa é a distância que vai dar tempo ao Brasil para tentar salvar a democracia. Não vejo com quem mais Lula possa se "reconciliar". E, para ser franco, não sei se faz sentido perder tempo com isso.
E A CONCILIAÇÃO?
Depende! Conciliar com quem ou com o quê? O líder petista, já destaquei aqui, formou uma frente ampla para vencer a eleição. E, nesses termos, ninguém promete nada a ninguém: houve, para ficar na palavra, uma conciliação entre aqueles que defendem a ordem democrática e repudiam o modelo unitarista bolsonariano, de viés obviamente fascistoide. É aquela gente, para ir à capilaridade do que significa o modelo, que arranca adversários políticos do carro para estapeá-los. Ou que sai pelas ruas dando tiro. Ou que recebe a Polícia Federal com fuzil e granadas.
Frente ampla para vencer a eleição não é sinônimo de frente ampla para governar. Essa é de outra natureza. O futuro governo terá de buscar uma maioria congressual para governar. Partamos da máxima óbvia de que o melhor acordo é sempre o acordo possível. Ou outra: um mau acordo pode ser melhor do que uma boa briga. Mas isso ainda não diz tudo. Afinal, quem ganhou a eleição presidencial foi Lula, não Bolsonaro.
Estou entre aqueles que consideram que o presidente eleito tem de dialogar com qualquer força que esteja disposta a conversar com ele desde que esse entendimento não macule os valores consagrados pela Constituição. Em dias em que tantos apelam ao divino para justificar a violência, a truculência e a morte, eu o farei para celebrar a vida. E os remeto a Mateus 8, 5-17. Um oficial do Exército pede a Jesus que cure um enfermo de sua casa, um empregado. O Messias se dispõe a ir à residência do homem, que, no entanto, recusa a oferta porque diz não se considerar digno de recebe-lo em sua morada, afirmando que bastará uma palavra do filho de Deus para que a cura se efetive. E assim se fez.
Isso passou para as missas católicas na forma conhecida: "Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo" — notem que o "salvar o outro" de Mateus transformou-se em "salvar-se" — salvar-se para a vida eterna. Mesmo os indignos da presença do filho de Deus.
ENTÃO COM QUEM?
Por que eu me volto para Mateus? Porque Lula deve, sim, aceitar a interlocução com todos aqueles que estiverem de boa-vontade, mas é preciso que haja uma palavra para ser admitido à mesa de conciliação: a aceitação das regras do jogo. Não! Não é preciso se converter ao petismo, como não se converteram todos aqueles que ajudaram a derrotar Bolsonaro.
Não se pode manter a conversa impossível. O novo governo tem de encarnar, representar e expressar o triunfo da lei. O discurso de vitória de Lula foi um dos melhores jamais pronunciados na história da República. Seu eixo estruturante está no respeito à Constituição. O presidente eleito pede que se baixem as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. Sim, esse é o caminho. Lula não tem de cobrar a abjuração de ninguém. Mas nem ele nem o Judiciário podem condescender com os mercadores da desordem.
SILÊNCIO
Bolsonaro, até agora, está em silêncio. É um silêncio que fala. Há bloqueios promovidos por caminhoneiros e algumas lideranças ruralistas em pelo menos 13 Estados. Ele não convocou resistência ao resultado das urnas, mas se vê que não desestimula a ilegalidade. Sofreu, claro!, um duro golpe quando Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, tendo atrás de si Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, reconheceu, sem titubear, o resultado das urnas.
Ainda que arruaceiros estejam a falar em golpe, é evidente que o país está em paz. A Bolsa subiu, o dólar caiu, e segue a vida. O único que pode gerar instabilidade até 1º de janeiro é mesmo... Bolsonaro. Ele tem feito outras coisas nestes quatro anos?