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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Haiti: raio cai 2 vezes no mesmo lugar, mas Lula não tem de repetir um erro

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Imagem: freepik

Colunista do UOL

06/12/2022 03h03

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O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, encontrou-se na manhã de ontem com Jake Sullivan, conselheiro da Segurança Nacional da Casa Branca; com Juan Gonzalez, diretor sênior para Assuntos do Hemisfério Ocidental, e com Ricardo Zuñiga, vice-secretário para assuntos do Hemisfério Ocidental. Participaram da reunião o ex-chanceler Celso Amorim e Fernando Haddad, possível futuro ministro da Fazenda. Antes, Sullivan já havia conversado com o senador Jaques Wagner (PT-BA). Depois da diplomação, Lula pode se encontrar com Joe Biden, antes ainda da posse. É evidente que isso dá uma medida do prestígio do petista e prova que o Brasil voltou ao tabuleiro mundial. Falaram sobre questões climáticas, guerra da Ucrânia, situação política da Venezuela e... Haiti. E é aqui que mora o problema. Dizem que raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Besteira. Pode cair duas, dez, incontáveis vezes. Quem controla? O que não é aceitável, aí sim, é cometer duas vezes o mesmo erro.

Os EUA estão ansiosos por uma ação no Haiti. É pouco provável que consigam obter uma autorização da ONU para tanto. A Rússia é membro permanente do Conselho de Segurança e tenderia vetar a medida Assim, uma eventual nova "missão de paz" poderia ser uma espécie de força multinacional com características de tropa de intervenção. Quem topa essa loucura? Biden teve um comportamento bastante firme em defesa do cumprimento das regras do jogo no Brasil. Oficializado o resultado das urnas, apressou-se em telefonar para Lula. Restava evidente que os EUA não aceitariam uma solução que não reproduzisse a vontade da maioria. Aplauda-se o comportamento. Mas uma nova intervenção no Haiti? Ah, isso não!

Sempre considerei um erro o Brasil ter aceitado o comando da Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti. Tropas brasileiras integraram a força de 2004 a 2017, e alguns nomes agaloados do governo Bolsonaro passaram pela missão — que, vamos convir, não era de paz, mas de guerra. A força multinacional da ONU tinha licença para matar. E matou.

Dos 12 comandantes brasileiros da Minustah ao longo dos anos, quatro foram para o primeiro escalão do governo do Mito mitômano: Augusto Heleno (2004-2005), Santos Cruz (2007-2009), Floriano Peixoto (2009-2010) e Luiz Eduardo Ramos (2011-2012). Edson Lean Pujol (2013-2014) viria a ser comandante do Exército. Fernando Azevedo e Silva, que ocupou o Ministério da Defesa, foi chefe de Operações do comando brasileiro naquele país, função depois exercida por Otávio Rego Barros, que chegou a ser porta-voz da Presidência. O mais-ou-menos-bolsonarista Tarcísio de Freitas, governador eleito de São Paulo, também passou pelo Haiti.

Todos, exceto Tarcísio, são generais. Só Heleno e Ramos entregarão as chaves do palácio junto com Bolsonaro. Os outros foram derrubados ou pelo próprio presidente ou pela malta de extrema-direita que o cerca. A deposição politicamente mais violenta foi a de Santos Cruz, que entrou em rota de colisão com os filhos do mandatário e caiu em desgraça junto às milícias bolsonaristas, ao tempo ainda em que Olavo de Carvalho era o guru da escumalha.

A instalação da Comissão Nacional da Verdade marca o fim da cordialidade entre os militares e o governo petista. As manifestações de insatisfação foram muitas. Leiam, a propósito, o livro "Poder Camuflado - Os militares e a política: do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro", de Fabio Victor. Que se note: a dita-cuja não existia para punir ninguém, mas para contar a história. Não entrarei nisso agora. Uma das razões por que me opunha à participação do Brasil na missão — pior ainda quando obteve o seu comando — foi proporcionar aos soldados brasileiros a experiência de, como já chamei, "polícia da sociedade", ainda que em solo estrangeiro.

Não há grande segredo nas razões que levaram o primeiro governo Lula a se engajar na missão. O presidente brasileiro sempre defendeu um novo concerto global que reflita a importância e o papel que os países têm hoje no mundo. O arranjo que aí está reflete o fim da Segunda Guerra. Queria, e há de querer de novo, um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança. Entendeu-se que um país com essas pretensões não pode se negar a participar de certos esforços multinacionais em favor da paz.

Velho brocado latino diz: "Se queres a paz, prepara a guerra". E caberia acrescentar: "Se vais à guerra, é preciso saber de que paz está a falar". Fabio Victor recupera uma entrevista de Bolsonaro ao "Jornal Nacional" na campanha de 2018. Afirmou sobre a atuação dos brasileiros no Haiti:
"Nós, no Haiti, tínhamos uma forma de engajamento: qualquer elemento com uma arma de guerra, os militares atiravam dez, vinte, cinquenta tiros. E depois ia ver o que aconteceu. Resolveu o problema rapidamente".

É o que ele entende por "resolver". Numa invasão à Cité Soleil, em 2005, sob o comando de Heleno, a Minustah deixou 60 mortos. Ademais, está aí o Haiti como tema ainda da conversa entre o governo americano e o presidente eleito.

No livro citado, há uma declaração de Gilberto Carvalho, ex-chefe de gabinete de Lula e diretor da Escola Nacional de Formação do PT. Diz, de modo muito eloquente e, entendo, correto:
"Todo mundo sabe hoje que a experiência do Haiti é reconhecida como a ocasião que permitiu, de um lado, o aperfeiçoamento das técnicas de combate ao inimigo interno, na medida em que, lá, eles combatiam as gangues e o crime organizado, e, de outro, uma aproximação muito forte entre o generalato brasileiro e americano."

José Genoino emendou em entrevista a Breno Altman:
"Nós tínhamos que ter dito que a solução do problema era de política pública, não militar (...). Nós fortalecemos as GLOS [Operações de Garantia da Lei e da Ordem] e alimentamos uma expertise militar que não era o caso".

ENCERRO
Como resta evidente, os militares brasileiros precisam de menos protagonismo, atendo-se às suas funções constitucionais, ao invés de mais. E já estão reservadas a eles tarefas muito importantes na defesa da integridade do território brasileiro.

A "geração Haiti" nas Forças Armadas parece constituir uma severa advertência de que ainda é preciso, vamos dizer, burilar entre os nossos soldados o sentido de uma ação em país estrangeiro a serviço das Nações Unidas. Não se trata de um treino para eventual intervenção interna nem de uma experiência de guerra pela qual todo verdadeiro soldado deve passar. Uma frase de Augusto Heleno, primeiro comandante da Minustah e uma das vozes da extrema-direita no governo Bolsonaro, evidencia o tamanho do equívoco. Assim ele definiu sua experiência no Haiti:
"Eu era um médico sem doente. A missão de paz foi o doente da minha carreira".

Que o presidente Lula tenha claro que, desta feita, o Brasil tem de se apresentar se não como a cura — que pode ser pretensão excessiva e irrealizável —, como, ao menos, aquele que minora o sofrimento do outro. Não podemos dar uma nova chance a que se confunda a paz com a doença.

Muitos agaloados passaram a achar que, aos olhos da caserna, o Haiti também é aqui. E, no entanto, não é.