Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"Lei Mercadante"? É só má vontade biliosa. A Lei das Estatais e Bolsonaro
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Chamam por aí de "Lei Mercadante", mesmo em textos que deveriam ser apenas informativos, a mudança da Lei das Estatais (13.303) — aprovada, por ora, apenas pela Câmara —, que baixa de 36 meses para 30 dias a quarentena que impede que pessoas ligadas à militância partidária ocupem cargos de direção em empresas públicas ou mistas. O apelido é uma distorção factual. Há ainda uma agressão à lógica, embora o nome do futuro presidente do BNDES deva, sim, ser evocado no debate.
É evidente que imprensa e mercados decidiram ser comportar como zagueiros encardidos nos calcanhares de atacantes adversários — e, também resta claro, esses adversários são os petistas. A cada fala, a cada escolha, a cada sinal, vem a sentença condenatória: "Este será um governo da irresponsabilidade fiscal". A nova gestão não começou, mas se conta a história desde o fim. Os absurdos ditos e prodigalizados por Jair Bolsonaro na reta final de 2018, já eleito então, não renderam três gotas dos litros de bile secretada contra o futuro governo do PT.
O caso da Lei das Estatais — a cuja mudança me oponho agora, noto — já pode ser considerado um clássico dessa reação biliosa. E não é difícil demonstrá-lo. Comecemos pela questão lógica. A Câmara mudou uma lei. Bastaria, para tanto, maioria simples, mas se conseguiu placar superior ao necessário para aprovar até uma PEC: 314 votos a 66 — notando-se, à margem, que uma emenda constitucional precisa de 308. A ser assim, se o futuro governo Lula, que será hegemonizado pelo PT por vontade expressa do eleitorado, está com todo esse poder, então se pode prever uma aprovação fácil da PEC da Transição, não é mesmo? E fácil não é.
OS NÚMEROS
Vamos ver alguns números -- nota: sempre se considera aqui o total de parlamentares que votaram, não o tamanho das bancadas. Com efeito, o PT deu 40 de seus 40 votos. O PSB, base do futuro governo, contribuiu com 19 de 21. Os dois votos da Rede foram favoráveis. O PV cedeu outros dois de 3. O PC do B entregou os oito. Mas será mesmo o texto um "Projeto Mercadante"?
Entre os 314 que se alinharam com o projeto, estão 29 do PP. O Republicanos colaborou com 29 adesões — só dois se opuseram. No União Brasil, 13 de 29. No reacionário PSC, meio a meio: 3 a 3. Só cinco dos 29 do PSD resistiram à proposta. Uma única defecção entre os oito do direitista Podemos. Houve unanimidade contrária entre os oito do novo. Até entre os 50 votos do PL se conta uma adesão: justamente a do bolsonarista Onyx Lorenzoni.
Negar que o texto, dado o placar, contou com a adesão de futuros governistas corresponderia a resistir ao óbvio. Os números falam. Mas falam também para demonstrar que a mudança da lei interessava e interessa ao Centrão. O texto foi posto em votação em meio às negociações da PEC de Transição, que tem sido tratada como o grande monstro da irresponsabilidade, consideração que, parece-me, abriga muito de fundamentalismo irrefletido. Mas isso provará, acho eu, o tempo. Há momentos em que não adianta malhar em ferro frio. A ideia fixa turva a visão.
A mudança da lei não era uma reivindicação do PT — até porque havia e há precedente para justificar a nomeação de Mercadante para o BNDES sem precisar alterar o texto. Mudar a Lei das Estatais a toque de caixa é parte da negociação com o Centrão. Há quem defenda que a única saída é trombar com a tropa de Lira. Bem, eu não acho e nem vou me ater a isso agora. É preciso caminhar para se constituir um novo equilíbrio de forças na política. A formidável degradação da vida pública não se fez em um dia, e sua correção demanda tempo, entre avanços e recuos. A alternativa é a perspectiva disruptiva, que não recomendo a ninguém. E ainda que restasse como "a" saída, seria preciso ver se o acúmulo de forças autorizaria o confronto.
O PRECEDENTE NO BNDES
Estou entre aqueles que entendem, na letra da lei e em precedente firmado, que a nomeação de Mercadante para o BNDES dispensa a mudança do texto legal. Vamos aos que vai no Parágrafo 2º e Incisos do Artigo 17:
§ 2º É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:
I - de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II - de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
III - de pessoa que exerça cargo em organização sindical;
O futuro presidente do BNDES comandava a Fundação Perseu Abramo, que não é considerada órgão partidário e exerceu a coordenação do governo de transição, em função não remunerada. Dá pano pra manga? Dá, sim. Então se avance.
Reproduzo abaixo, porque bem sintetizado, caso de Fábio Almeida Abrahão, em reportagem do Valor Econômico:
"A ata de uma reunião do comitê de elegibilidade BNDES de 29 de julho é o documento mais recente que Aloizio Mercadante tem em mãos para tentar demover os vetos surgidos contra seu nome para a presidência do banco estatal. Nesta ata está consignada a análise da indicação de Fábio Almeida Abrahão para o cargo de diretor de concessões de privatizações. Assessor especial do Ministério da Economia e sócio de duas empresas de logística, das quais se afastou para exercer suas atividades públicas, Abrahão teve escrutinada sua atuação na campanha de 2018 junto ao PSL, legenda pela qual o presidente Jair Bolsonaro se elegeu. O artigo 17, parágrafo 2, inciso II da Lei das Estatais veta a indicação de participante em "estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral". O comitê, no entanto, considerou que a participação de Abrahão se deu pela "contribuição intelectual para a elaboração de plano de governo na área de infraestrutura". Sua indicação foi aprovada por unanimidade pelos três integrantes do comitê de elegibilidade, Otho Cezar de Carvalho, Paulo Marcelo Serrano e Luciana Dias."
Se o segredo de aborrecer é dizer tudo, então que se diga. Havendo alguma diferença substancial entre Mercadante e Abrahão, ela pode se dar em favor do petista. Não terá de se afastar de sua atividade empresarial para descaracterizar o que seria conflito de interesses.
O PRECEDENTE ARREGANHADO DA PETROBRAS
Se estamos a falar sobre cumprir o que determina a Lei de Responsabilidade das Estatais -- e eu me oponho, reitero, à mudança --, convém negociar também com o Centrão em fez de sair por aí a chamar o troço de "Lei Mercadante". Cumpre lembrar como Caio Mário Paes de Andrade chegou à presidência da Petrobras. Alguém se dispõe a demonstrar a fidelidade à disposição legal? Fica o desafio.
Então vejamos ao que dispõe parte do Artigo 17 como exigência inegociável para que alguém ocupe cargo na direção de estatal ou de empresa de economia mista:
Art. 17. Os membros do Conselho de Administração e os indicados para os cargos de diretor, inclusive presidente, diretor-geral e diretor-presidente, serão escolhidos entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento, devendo ser atendidos, alternativamente, um dos requisitos das alíneas "a", "b" e "c" do inciso I e, cumulativamente, os requisitos dos incisos II e III:
I - ter experiência profissional de, no mínimo:
a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, na área de atuação da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou em área conexa àquela para a qual forem indicados em função de direção superior; ou
b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:
1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa de porte ou objeto social semelhante ao da empresa pública ou da sociedade de economia mista, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2 (dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;
2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;
3. cargo de docente ou de pesquisador em áreas de atuação da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
c) 4 (quatro) anos de experiência como profissional liberal em atividade direta ou indiretamente vinculada à área de atuação da empresa pública ou sociedade de economia mista;
II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado;
Não vou me estender sobre a biografia de Paes de Andrade, que vocês encontram em todo canto. Formado em Comunicação Social e sem jamais ter passado perto de uma petroleira, não preenchia os requisitos para ocupar o cargo. Foi nomeado. E não se produziu nem um décimo dos óbices agora alardeados.
ENTÃO SE VAI PARA O VALE-TUDO?
"Já que se desrespeitou a lei antes antes, então se desrespeita também agora?" Por óbvio, não. Mas a diferença de alarde diz menos sobre minhas eventuais concessões com a transgressão à lei -- e não acho que as pratique -- do que sobre aqueles que resolvem apelar ao fundamentalismo seletivo, de ocasião.
Onde estavam alguns dos indignados de agora quando a lei foi solenemente ignorada no caso da nomeação do presidente da Petrobras? Insisto: não acho que o texto, mesmo sem mudança, impeça a nomeação de Mercadante, mas ele impedia, sim, a assunção de Paes de Andrade à Presidência da Petrobras. Ademais, será sempre preferível mudar a lei, ainda que uma mudança ruim, do que ignorá-la. Ou alguém discorda?
A LEI E AS NOMEAÇÕES POLÍTICAS
Nos 13 anos de governo petista, sem a Lei das Estatais, a Petrobras teve cinco presidentes -- nos oito anos de governo Lula, apenas dois. Nos quatro de Bolsonaro, já são quatro. Um deles, José Mauro Ferreira Coelho, ficou apenas dois meses no cargo. E a "estabilidade" pretendida pelo governo veio por intermédio de alguém que estava inabilitado para a função segundo a lei.
Eu não patrocinaria agora uma mudança da 13.303 porque isso passa uma mensagem ruim em momento particularmente delicado. De toda sorte, a vinculação partidária de um dirigente não é o único meio, nem o mais evidente, para se promover política pública de baixa qualidade ou para abrir caminho para a roubalheira. Quem estiver em dúvida deve escarafunchar as relações entre as "emendas do relator" e a Codevasf, por exemplo. Uma indicação partidária explícita pode, ao menos, ser vista. O problema está no que não se vê.
INCOMODANDO MAIS AO ENCERRAR
E vamos correr o risco de incomodar mais um pouco: alguém que tenha exercido função partidária, pela letra da lei como está (o Senado ainda não aprovou a mudança), teria de ficar 36 meses em quarentena. Certo. Notadamente depois da independência do BC, poucos cargos são tão importantes na República como o de diretor da autoridade monetária, certo? Desde que o indicado se livre de seus vínculos no setor privado, pode exercer a função sem nenhum óbice. Ao sair, bastam seis meses de quarentena e pode atuar sem amarras: se quiser ou tiver condições, pode abrir banco, corretora, consultoria ou vender salsicha. Não conheço ninguém que tenha feito essa última escolha.
Há um pressuposto aí: a atividade partidária seria necessariamente suja viciosa e requerer a desinfeção; a atuação no setor privado seria limpinha, cheirosa, virtuosa e asséptica. Um interesse seria, por princípio, ilegítimo, e o outro não.
Alguém é capaz de jurar que assim é?