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Barroso acerta e manda apurar genocídio em Terra Yanomami. É a letra da lei
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O ministro Roberto Barroso determinou, por intermédio da Petição 9.585, que autoridades do governo Bolsonaro sejam investigadas, no caso dos yanomamis e de outras comunidades indígenas, por possíveis práticas de genocídio (Lei 2.889); desobediência (Art. 330 do Código Penal); quebra de segredo de Justiça (Lei 9.286) e crimes ambientais (Lei.9.605).
O magistrado pediu o envio dos autos, que tramitam em sigilo, para o Ministério Público Federal, Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Superintendência Regional da Polícia Federal de Roraima. Todos esses entes devem proceder à apuração desses possíveis crimes naquilo que lhes compete. O ministro tomou ainda outras decisões, de que se fala mais adiante:
Escreve o magistrado sobre os autos que estão sendo remetidos a esses diversos entes:
"Os documentos em questão sugerem um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação."
Abaixo, transcrevo ações e omissões de autoridades do governo Bolsonaro que pareceriam piada não fosse o desdobramento trágico. Prestem atenção:
(i) publicação em Diário Oficial, pelo então Ministro da Justiça, de data e local de realização de operação sigilosa de intervenção em terra indígena, determinada por decisão judicial nos autos de processo sigiloso (fl. 70);
(ii) divulgação, pela Coordenação de Operações de Fiscalização - COFIS do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis - IBAMA, por meio de correio eletrônico geral, dirigido aos servidores da instituição, de data e local da operação sigilosa destinada ao combate de ilícitos na Terra Indígena Yanomami, igualmente determinada em autos sigilosos (fl. 1302);
(iii) indícios de alteração do planejamento no momento de realização da Operação Jacareacanga, pela Força Aérea Brasileira - FAB, resultando em alerta aos garimpeiros, quebra de sigilo e inefetividade da iniciativa (fls. 1423- 1424); não participação das Forças Armadas em operação previamente organizada conjuntamente com a Polícia Federal, sob a alegação de deficiência orçamentária, com 3 (três) dias de antecedência de sua realização, comprometendo o planejamento e a efetividade da intervenção, bem como a segurança dos servidores e equipamentos públicos utilizados pela Polícia Federal (fls. 85-91);
(iv) retirada irregular (e aparentemente não explicada) de 29 (vinte e nove) aeronaves ligadas ao garimpo ilegal e apreendidas pela Polícia Federal de seu local de depósito, posteriormente avistadas em operação, a despeito da existência de ordem judicial de destruição dos bens apreendidos (fl. 346);
(v) aparente não controle do tráfego aéreo de Roraima ou de interceptação de aeronave irregular, colocando em risco aeronave comercial de passageiros, com a qual quase se chocou (fl. 350);
(vi) aparente não execução ou simulação de execução do Plano Sete Terras Indígenas, homologado pelo Juízo e destinado à desintrusão dos invasores, com a prestação de informações "inverossímeis", conforme análise do grupo de apoio de peritos do Ministério Púbico Federal (fls. 1354-1429);
(vii) outras ações e omissões voltadas a criar óbices burocráticos à adoção de medidas urgentes e ao cumprimento de decisões judiciais, favorecendo o descontrole da situação de segurança e do combate a ilícitos nas áreas afetadas.
Vejam ali. A gente até custa a acreditar naquilo que lê:
1 - Anderson Torres, ministro da Justiça, antecipou no Diário Oficial futura ação sigilosa;
2 - Ibama também divulgou entre servidores operação sigilosa;
3 - alteração sem explicação de operação militar; alegando falta de recursos; Forças Armadas desistiram de operação conjunta com a PF três dias antes de acontecer, expondo agentes a risco;
4 - aviões apreendidos de garimpeiros devolvidos aos criminosos;
5 - falta de controle do tráfego aéreo de Roraima;
6 - não realização ou simulação da desintrusão de garimpeiros;
7 - ações outras que dificultaram a atuação de órgãos oficiais na proteção aos indígenas.
Observem que o ministro pede àqueles órgãos que procedam à apuração de possíveis crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de Justiça e agressões ambientais. Vamos ver. As práticas relatadas nos itens 1 a 7 são inequívocas. O que vai ali foi efetivamente praticado. E não se duvide, pois, que, quando menos, houve desobediência, quebra de sigilo e crimes ambientais. Mas e genocídio?
GENOCÍDIO
Venham cá: quem, de modo deliberado, faz o que acima se lê está ou não está ciente dos efeitos que pode provocar? Ações e omissões deixaram os indígenas entregues à sanha dos garimpeiros. Eram impedidos, por exemplo, de receber remédios contra a malária. A retirada ilegal do ouro destrói o meio ambiente e tira dos nativos as condições de responder pela própria subsistência.
Relembro o Artigo 1º da lei que pune genocídio:
"Art. 1º [comete genocídio] Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar?lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo."
O ministro mandou apurar se foram cometidas as condutas tipificadas nas alíneas "a" e "c". No primeiro caso, a pena é a de homicídio. Com agravantes, o inferno é o limite — mas não se fica na cadeia no Brasil mais de 30 anos. Uma condenação pela "alínea c" pode render até oito anos de reclusão. E ainda há as outras imputações.
Havia como as autoridades do governo Bolsonaro ignorarem o que estava em curso?
ADPF 709
Barroso é o relator da ADPF 709, de autoria da Articulação dos Povos Indígena do Brasil (APIB), em conjunto com seis partidos políticos: PSB, Rede, PSOL, PT, PDT e PCdoB.
Na petição inicial, os postulantes pediam a instalação de barreiras sanitárias em 31 terras com presença de indígenas isolados e de recente contato; a extrusão dos invasores presentes nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá; a determinação de que os serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS devem ser prestados a todos os indígenas no Brasil, inclusive os não aldeados (urbanos) ou que habitem áreas que ainda não foram definitivamente demarcadas.
Em essência, o Supremo determinou que tais providências fossem tomadas. Como se nota pelo conteúdo da Petição 9.585, as decisões do tribunal não foram obedecidas.
Agora, no âmbito da ADPF 709, Barroso determina que:
1 - a União deverá apresentar diagnóstico quanto à situação humanitária e ambiental de tais áreas e plano de desintrusão, elaborado em interlocução com a APIB, no prazo corrido de 60 (sessenta) dias, a contar da ciência desta decisão;
2 - o plano inclua medidas de controle de espaço aéreo e de interrupção de sinal de Internet sobre as áreas de garimpo (assegurado o sinal das comunidades indígenas), de fiscalização da comercialização de combustível e de proteção permanente das lideranças e comunidades;
3 - a União proceda à desintrusão de todos os garimpos ilegais presentes nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapo, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacaja, com a apresentação de plano com tal objeto junto ao Tribunal;
4 - a abertura de crédito extraordinário em montante suficiente ao adequado cumprimento da decisão judicial.
Barroso intima ainda a União, Ministérios e órgãos federais — o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o Ministério da Saúde, o Ministério da Cidadania, a FUNAI e o Ibama — para a ciência do inteiro teor das decisões para que as providências sejam tomadas.
ENCERRO
Estima-se em 20 mil o número de garimpeiros clandestinos só na Terra Yanomami. Não vão desaparecer da noite para o dia. E, por isso, o governo precisa fazer um plano e apresentá-lo ao Supremo, obedecendo, diga-se, a decisões já tomada no curso da gestão Bolsonaro e que nunca foram cumpridas. Ao contrário: como se vê acima, tudo aponta para ações deliberadas em desfavor dos indígenas, que resultaram na destruição parcial de um grupo étnico.
Em uma palavra: genocídio.