Milei pratica estelionato já antes da posse. E 'carajo' e 'Dios' numa frase
É claro que Javier Milei já descumpriu, antes mesmo de tomar posse, a quase totalidade das promessas que o alçaram à vida pública, tornando letra morta as palavras de ordem da campanha. O cara da motosserra na mão vai ter de aprender a se comportar com urbanidade. E terá de dividir o poder com as "castas" que tanto atacou. O mau palhaço que mesmerizou a Argentina perdeu a eleição. O que venceu é um prisioneiro dos respectivos apoios de Maurício Macri e Patrícia Bullrich. Ademais, terá de lidar com um Congresso que não lhe será servil.
O destrambelhado (A Liberdade Avança), confirmando os prognósticos da maioria dos institutos de pesquisa, venceu o peronista Sergio Massa (União pela Pátria) no segundo turno da eleição presidencial, realizada neste domingo. Ou talvez se possa dizer de outro modo: o governo foi derrotado por 55,6% a 44,3%, com 99,2% dos votos apurados. Vamos lá. Duas afirmações contra as aparências:
1: o "libertário" do primeiro turno foi derrotado pelo "político tradicional" no segundo;
2: o desempenho do ministro da Economia, que anunciou se licenciar para facilitar a transição, evidencia o temor que desperta o agora vitorioso.
MEDO
Começo pela segunda. A situação econômica é de tal sorte calamitosa que chega a ser espantoso que quase 45% dos votantes tenham escolhido a continuidade, ainda que sem continuísmo. Massa pertence à direita do peronismo; vale dizer: era um opositor interno do kirchnerismo
Nas prévias de agosto, o dito "libertário" havia marcado 30,04%; o candidato oficial, apenas 22,46%, perdendo, então, para a soma de Patrícia Bullrich (17,82%) e Horácio Rodrigues Larreta (11,85%). O futuro se anunciava sombrio para o governismo.
O primeiro turno, no entanto, ocorrido no dia 22 de outubro, pareceu acenar com a virada: afinal, o desempenho de Milei (29,98%) foi ligeiramente pior do que o das prévias, e o peronista ganhou 6,64 pontos: 36,68%. Bullrich (Juntos Pela Mudança), por sua vez, não conseguiu somar os apoios do conservadorismo tradicional, ficando com 23,83% apenas.
Uma semana depois da primeira rodada, uma crise de combustíveis praticamente parou o país — e é claro que a conta caiu nos ombros do homem forte da economia. A Argentina é produtora de petróleo e gás, mas tem enfrentado problemas de refino, que não vêm ao caso agora, e estava sem dólares para importar o produto.
Na semana seguinte, as pesquisas já indicavam a vitória do doidivanas. Reitere-se: a falta de combustíveis foi só um bom cabo eleitoral da oposição num momento crucial da corrida. A inflação no período de 12 meses, até outubro, bateu em 143%, e a pobreza atinge 40% da população.
Nesse contexto, convenham, o surpreendente é que o nome do União Pela Pátria tenha alcançado 44,3% no segundo turno. E isso tem, sim, a ver com o justo medo despertado pelo porra-louca de costeletas — não grande o suficiente para lhe tirar a vitória. Se um ganhou 7,62 pontos entre as duas etapas, o outro cresceu 25,62, um salto de 85,4%. Mas o que aconteceu no intervalo de pouco menos de um mês?
OS DOIS MILEIS
O ministro teve de responder, desde sempre, pelo péssimo momento da economia e viu secar suas chances junto com as bombas de gasolina. Só isso não explica a ascensão espetacular da exótica figura em tempo tão curto. Há um conjunto de fatores.
O ex-presidente Maurício Macri e Burllrich anunciaram, no dia seguinte ao primeiro turno, o apoio àquele que os esculhambava como exemplos de políticos tradicionais, que teriam levado a nação à ruína. Não têm certamente nenhuma simpatia por ele, mas gostam ainda menos do peronismo, do kirchnerismo e do governo de Alberto Fernández.
A aproximação com os chamados "políticos tradicionais" deu à luz um novo postulante, muito mais moderado, que teve a cara de pau de afirmar, no debate final, que as propostas que fizeram dele um furacão eleitoral não passavam de distorções de seu pensamento, fabricadas pelos inimigos.
Já não valiam mais as promessas de cortes severos nos subsídios a tarifas públicas — o que, se efetivados, podem elevar ainda mais a inflação —; o fim das férias remuneradas e de indenização trabalhista; a dolarização da economia (só quando for possível, claro...); o rompimento com o Mercosul; a privatização da saúde e da educação; a liberação de armas; a venda livre de órgãos... Seria tudo parte, disse ele, da "campanha do medo".
Mais: concedeu algumas entrevistas em que ficou evidente seu despreparo e brutal ignorância da máquina pública. Foi esmagado por Massa no debate final. Mas aí aconteceu algo que se viu mais de uma vez no Brasil: um confronto tem de ser vencido sem humilhação, sob o risco de o derrotado despertar a solidariedade do público. Chamei a atenção para esse aspecto em intervenções no UOL, na BandNews FM e no BandNews TV.
Em síntese, a direita tradicional convenceu a maioria do seu eleitorado de que Milei era um risco menor do que a continuidade; ele próprio fez questão de deixar claro que não tinha mais compromisso com as bobagens que dizia antes, e as evidências, ainda mais claras entre o primeiro e o segundo turnos, de que não bate bem dos pinos provocaram adesão em vez de repulsa.
E AGORA?
O vitorioso assume a Presidência no dia 10 de dezembro. A escolha de sua equipe vai indicar que papel terão na sua gestão os veteranos Macri e Bullrich, que o forçaram a lavar a retórica. As bravatas contra o Mercosul e contra o Brasil talvez não prosperem porque, objetivamente, seria o seu país o maior prejudicado.
A dolarização da economia pressupõe, se me permitem a crueza, a existência de dólares — justamente o que eles não têm. Como pretende realizar a mágica? Não abriu mão da extinção do Banco Central, mas, para tanto e para quase todo o resto, depende da aprovação de medidas no Congresso.
Os peronistas terão 34 dos 72 senadores — o "A Liberdade Avança", apenas 8. Na Câmara, seus adversários diretos contam com 108 dos 257 deputados; ele, com 37. Dado que inexistem por lá um Centrão ou um Arthur Lira e que não há também um sistema de emendas parlamentares como o que inventamos por aqui, a cooptação se torna bem mais difícil. Terá de demonstrar muita habilidade política para não ser esmagado.
PRIMEIRO DISCURSO
Em sua primeira fala depois da vitória, fez um chamamento à união, o que é absolutamente estranho à sua pregação e à sua trajetória. E apelou a uma citação encoberta:
"Todos aqueles que quiserem se juntar à nova Argentina são bem-vindos. Sabemos que há pessoas que resistirão, que querem manter seus privilégios. A eles eu digo: dentro da lei, tudo; fora dela, nada".
O lema, vejam que coisa!, marcou o retorno de Juan Domingo Perón ao poder em 1973.
Conciliador, mas sem renunciar ao papo-furado que o levou à Presidência -- e que, entendo, pode marcar a sua derrocada, uma vez que dificilmente conseguirá entregar o produto que vendeu --, houve por bem fazer proselitismo de uma nova aurora:
"Hoje, uma forma de fazer política acabou. Chega do modelo empobrecedor da casta. Quero lhes dizer que a Argentina tem um futuro, mas esse futuro existe se for liberal. Não estamos aqui para inventar nada, mas para fazer as coisas que a história já mostrou que funcionam".
E concluiu assim:
"Viva la libertad, carajo! Dios bendiga a los argentinos"
Em nove palavras, conseguiu juntar "libertad, carajo, Dios e argentinos".
Se a direita tradicional o mantiver na linha, de modo a que o estelionato eleitoral governe em seu lugar, chega ao fim do mandato. Se decidir ser fiel a si mesmo, cai. E aí dirá um palavrão.
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