Reinaldo Azevedo

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Opinião

Por que PL de Mourão sobre anistia a golpistas é delinquência legislativa

Há uma consulta pública na página do Senado sobre o PL 5.064, do senador Hamilton Mourão (Republicanos), que concede anistia aos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023. Enquanto escrevo, há 478.856 votos "sim" e 516.173 "nãos". Essa estrovenga não vai prosperar, o que é melhor para o país. Mas, às vezes, um diabinho me sopra aos ouvidos: "Ah, Reinaldo, torça para passar, vá... Só para a gente ver o STF declarar inconstitucional aquela porcaria!" Não. "Sem essa, capetinha! Pra que mais confusão? Fico com aquele outro ser alado, o de feições angelicais, que diz: "Vamos torcer para o Congresso afastar essa besteira". E acho que afastará. O texto de Mourão é uma manifestação rara de indigência legislativa. Como parlamentar, é só um general indisciplinado. Vamos ver.

Transcrevo o troço de sua autoria:
O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º Fica concedida anistia, nos termos do art. 48, VIII, da Constituição Federal, a todos que, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023, tenham sido ou venham a ser acusados ou condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

Parágrafo único. Esta Lei não alcança as acusações e as condenações pelos crimes de dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa, porventura ocorridas em razão das manifestações indicadas no caput deste artigo. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO
As manifestações ocorridas no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, constituem conduta deplorável, que merece nossa reprovação, pelo nítido caráter antidemocrático do movimento. Todavia, não se pode apenar indistintamente aqueles manifestantes, pois a maioria não agiu em comunhão de desígnios. Ocorre que os órgãos de persecução penal não têm conseguido individualizar as condutas praticadas por cada um dos manifestantes.
Diante dessa realidade, é inconcebível que sejam acusados e condenados indistintamente por crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Acresce-se o fato de as sessões serem em grande parte, virtuais, sem que se tenha certeza de que sejam ouvidas as sustentações pelos ministros ou até mesmo por assessores, em detrimento do artigo 5o. inciso LV da Constituição da República. Como disse, a maioria não agiu em comunhão de desígnios e estava ali somente para protestar, sem a presença do dolo específico que esses crimes exigem.
As condenações que o Supremo Tribunal Federal vem aplicando aos acusados é, data vênia, desproporcional e, por isso mesmo, injusta.
Então, diante da incapacidade de os órgãos de persecução penal individualizarem e provarem as condutas específicas desses crimes, a única solução que se apresenta é a concessão de uma anistia, com fundamento no art. 48, VIII, da Constituição Federal.
Para que não haja dúvidas, não estamos propondo uma anistia ampla, mas apenas para esses crimes específicos, dada a impossibilidade de identificar objetivamente a intenção de cometê-los. Remanescem, todavia, as acusações e condenações pelos crimes de dado, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa, pois são condutas que podem ser individualizadas a partir das imagens de vídeos que mostraram toda aquela manifestação.
Assim, como forma de promover justiça, peço aos ilustres Parlamentares que votem pela aprovação deste projeto de anistia.
Sala das Sessões
Senador HAMILTON MOURÃO

INDECÊNCIA INATA
Não raro, os valentões de 8 de janeiro de 2023 estão sendo condenados por:
1: tentativa de abolição do estado de direito (Artigo 359-L do Código Penal);
2: tentativa de golpe de Estado (359-M do CP);
3: organização criminosa (Lei 12.850);
4: dano qualificado (Artigo 163 do CP);
5: deterioração do patrimônio tombado (Artigo 62 da Lei 9.605).

Para o glorioso parlamentar, os crimes que têm a ver com o patrimônio (4 e 5) não seriam anistiados. Cada um deles rende pena máxima de três anos. Ninguém cumpriria pena em regime inicialmente fechado. Já os outros (1, 2 e 3), com penas máximas, respectivamente, de 8, 12 e 8 anos, bem, estes seriam "esquecidos".

E isso já nos diz da indecência inata da coisa. Ou ele discorda do julgamento do tribunal — e, pois, na sua opinião, tais crimes não foram cometidos — ou considera que atacar o patrimônio público é ato que não merece perdão, mas tentar abolir o estado de direito e dar golpe de Estado, aí sim!

A JUSTIFICATIVA
Na justificativa, a gente constata que Mourão quer a anistia porque entende que o Parlamento pode se comportar como corte revisora do STF. Como se opõe ao juízo dos juízes, então pretende julgar o julgamento... Inclusive o que ainda não houve. Observem que, segundo este juiz dos juízes,
- a maioria não agiu em comunhão de desígnios:
- o STF e o MPF não conseguiram individualizar as condutas nem têm condições de fazê-lo.

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Para não confessar que está numa cruzada com o objetivo de livrar a barra de pessoas que são do seu campo ideológico, afirma, na prática, que seu intento é fazer do Congresso o Supremo do Supremo. Por esse caminho, o tribunal viraria um quarto de despejo do Legislativo.

ANISTIA DE 1979
O país teve uma Lei de Anistia que fez a história: a 6.683, aprovada em 28 de agosto de 1979, regulamentada depois pelo Decreto 84.143, de 31 de outubro do mesmo ano.

Lê-se o seguinte no Artigo 1º, com Parágrafo 1º da Lei:
"Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política."

Estava em curso a dita "abertura lenta e gradual", e tal peça era fundamental no quebra-cabeça da volta à normalidade institucional. E tudo foi lentíssimo mesmo. A eleição direta para a Presidência só seria realizada dez anos depois, em 1989. A nova Constituição — e a Constituinte tinha a Lei da Anistia como pressuposto — havia sido promulgada no ano anterior. Entendem? A "lei do esquecimento" era uma peça do processo de mudança do regime: da ditadura para a democracia. Mourão quer que a democracia esqueça os que tentaram destruí-la.

E atenção! Em nenhum momento a lei e o decreto de 1979 entram no mérito dos atos que levaram a condenações e punições, ainda que estivessem relacionadas, na esmagadora maioria, a um regime discricionário. "Anistia" política é "esquecimento" na esfera penal — o que não quer dizer, note-se à margem, que não se deva contar a história como ela se deu ou que os atingidos pelos crimes estejam impedidos de buscar reparação no caso de terem sido alvos de agentes do Estado.

O que o estupefaciente Mourão escreve na sua proposta é que ele discorda do resultado do julgamento e que avalia que três dos crimes não foram cometidos. Na sua cabeça oca, o Supremo julga os criminosos, e o Congresso julga o Supremo.

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O tal "PL da Anistia" é, em verdade, uma manifestação de delinquência legislativa como raramente se viu. "E por que seria inconstitucional, Reinaldo?" Porque o PL já indica, desde a justificativa, que o Legislativo decidiu julgar em lugar do Supremo. Pior: houve por bem julgar o próprio Supremo.

Como político, Mourão é só um general indisciplinado. Sua proposta é uma vergonha. Do tipo alheia, é claro!, dada a impossibilidade de ser vergonha própria. Seu projeto está para a boa técnica legislativa como os palavrões em porta de banheiro público estão para um tratado de filosofia. Podem até ser engraçados, mas a gente sabe muito bem as substâncias que os escoltam.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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