Reinaldo Azevedo

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Opinião

Trump diz hoje se continuará a apostar no caos. Os EUA como uma autocracia?

Donald Trump comparece nesta segunda à convenção que vai sagrar — ou melhor: consagrar — seu nome como candidato à Presidência dos EUA pelo Partido Republicano. Não é o único político a ter sofrido um atentado ou a ter escapado de um. Mas é a primeira vez que um partido formaliza o nome de um candidato menos de 48 horas depois de ele ter ficado a um centímetro da morte, quem sabe meio. Isso quer dizer que ele chega ao palanque com a aura de imortal, de sorte que não parece ser apenas uma escolha dos homens, mas também de Deus. Trata-se de um momento muito delicado da democracia americana.

Tudo indica, segundo investigações conduzidas pelo FBI, que Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, agiu sozinho. É filiado ao Partido Republicano, mas já doou no passado uma mixaria a uma organização ligada aos democratas. Nada que sugira, até agora, militância ideológica. Mas e daí?

AS ARMAS
O cara portava um rifle AR-15, semiautomático, comprado legalmente por alguém da família, provavelmente o pai. Com alguma frequência, por lá, é mais difícil conseguir uma cerveja. Havia explosivos em seu carro. Trajava uma camiseta com a inscrição "Demolition Ranch", um canal sobre armas do YouTube com mais de 11 milhões de inscritos. Quando é que a Segunda Emenda, de 1791, que garante a posse praticamente irrestrita de armas, vai chegar ao século 21? Leis não fazem assassinos e psicopatas. Mas elas podem lhes franquear as circunstâncias.

Papo furado? Não mesmo. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes nos EUA ficou em 5,53 no ano passado. Na Europa de igual IDH, com restrições severas para a compra de armas e a proibição do porte em locais públicos, é, em regra, de menos de um quarto. A França destoa um pouco, com 1,4. O país que Trump quer governar é, de longe, o mais violento entre os ricos. Tem uma história sanguinolenta. Mas e a Europa? O solo histórico também não está irrigado com o sangue de gerações? O velho continente, no entanto, conseguiu conter a sua besta, embora ela ande assanhada ultimamente...

VIOLÊNCIA POLÍTICA E MENTIRAS
A violência, também a política, não é um acontecimento raro nos EUA. Felizmente, o tal Crooks falhou. Imaginem as consequências se tivesse logrado o seu intento num país em que parte considerável do eleitorado, que constitui a base fanática da extrema direita, acredita na lorota de que Joe Biden perdeu a eleição de 2020 e de que houve uma grande conspiração para impedir a reeleição do Trump. Cumpre lembrar: aquele que vai ser consagrado hoje como o candidato republicano jamais reconheceu a derrota.

Conseguiu arrastar lideranças do seu partido para articulações francamente golpistas. Derrotado por Biden, tentou arrastar o general Mark Miley, então chefe do estado-maior conjunto das Forças Armadas, para um... golpe. Ao deixar o cargo no dia 29 de setembro do ano passado, Miley discursou:
"Nós não prestamos juramento a um rei, a um tirano, a um ditador ou a um aspirante a ditador. Juramos lealdade à Constituição".

Foi a resposta que deu ao golpista quando este tentou virar a mesa em novembro de 2020.

DETERIORAÇÃO DA DEMOCRACIA
Se Trump tivesse morrido no atentado, sobreviria o caos. O inesperado, portanto, não impôs o pior ao país -- que, não obstante, está sujeito a graves sortilégios. Os esperados.

A Suprema Corte, com maioria conservadora — chamemos pelo nome: reacionária —, decidiu, julgando um caso que diz respeito ao agora candidato republicano, que ex-presidentes têm imunidade absoluta na esfera criminal para atos que digam respeito ao exercício do cargo. Só podem ser processados no caso de ações não relacionadas ao mandato.

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Atenção! Os magistrados arbitravam justamente sobre o incitamento, promovido por Trump, da invasão do Capitólio. É evidente que isso põe o ocupante da Casa Branca acima da lei. Sonia Sotomaior, um dos três votos derrotados, foi ao ponto:
"O presidente dos Estados Unidos é a pessoa mais poderosa do país e, possivelmente, do mundo. Quando usa seus poderes oficiais de qualquer maneira, segundo o raciocínio da maioria [do tribunal], ele agora estará imune a processos criminais. Ordena a equipe dos SEALs [força de elite da Marinha] a assassinar um rival político? Imune. Organiza um golpe militar para se manter no poder? Imune. Aceita suborno em troca de um perdão? Imune."

Entenderam? A parte trumpista dos republicanos no Congresso — e é a maioria do partido — segue o exemplo de seu líder e não reconhece os limites impostos pela democracia. Muitos deles tentaram artifícios ilegais para tirar a eleição de Biden. Se, no Brasil, o TSE e o Supremo serviram de barreira de contenção ao golpismo, nada há hoje, na legislação e na jurisprudência americanas, que impeça o presidente de, se quiser, comportar-se como um ditador. Um dos limites poderia ser o Congresso. Ocorre que há a chance real de Trump se eleger com maioria nas duas Casas. E hás as armas. Miley fez a coisa certa. E se houver quem esteja disposto a fazer a errada?

Trump, rápido como um raio com a orelha sangrando, cerrou o punho logo depois de ser ferido e bradou: "Lutem, lutem, lutem!" Nas redes, seus fanáticos ensandecidos vociferaram teorias conspiratórias as mais disparatadas.

São poucos os analistas que resistem à tentação da afirmação peremptória: "Já está eleito". Ainda não. Como observei aqui em outro texto, Bolsonaro foi esfaqueado a um mês da eleição. Por lá, ainda faltam quase quatro. Mas é claro que a situação é periclitante para os que se importam com os valores da civilidade democrática. Já era assim antes do atentado. Piorou um tanto.

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
O republicano dirá nesta segunda se cava um alçapão no fundo do poço da democracia americana ou se prega a união do país, sem fazer acusações ao léu, no que seria seu primeiro ato de lucidez. Aposto muito pouco nisso por uma razão elementar: ele sempre oferece o que a sua plateia quer ouvir. E ela quer, vê-se nas redes, vingar-se dos "inimigos".

Sei que parece fabuloso, mas é assim: depois da decisão da Suprema Corte, os EUA vão eleger no dia 5 de novembro um candidato a autocrata. Caso Trump vença — e se tiver maioria nas duas Casas do Congresso —, há o risco de assistirmos a um regime de ditadura da maioria naquela que já foi considerada a democracia mais poderosa do planeta. E, pois, se assim for, democracia já não será. Para gáudio dos inimigos da liberdade dos mais variados matizes mundo afora.

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Crooks, com seu rifle comprado na esquina de casa, pode ter sido o voo da borboleta que leva ao caos. A entropia, é certo, já estava em curso.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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