Reinaldo Azevedo

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Opinião

Joias: Voto do TCU sobre Lula não livra a cara de Bolsonaro na PGR e no STF

Pois é...

Eu já tinha sugerido ao presidente Lula que repassasse ao patrimônio público, ou sei lá, doasse a alguma ONG respeitável o relógio Cartier que ganhou da própria empresa em 2005, durante viagem à França. E até observei que não estava obrigado a fazê-lo, mas que seria o mais prudente porque obviamente o caso seria manipulado pelo bolsonarismo. E foi o que se viu nesta quarta no TCU. Ah, sim: diga-se de cara para não deixar aflito o leitor: o que se vota na corte de contas não vincula decisões da Procuradoria-Geral da República ou do STF. Assim, é cedo para Jair Bolsonaro comemorar. Ficou confuso? Explique-se.

Lula ganhou o tal relógio, como se disse, em 2005. No que respeita ao TCU propriamente, inexistia um entendimento sobre a destinação de presentes dados a governantes, o que só aconteceu em 2016, com a publicação do Acórdão 2255.

O texto determinava à Secretaria de Administração da Presidência da República e ao Gabinete Pessoal do Presidente que incorporassem, "com fulcro no art. 3º, parágrafo único, inciso II, do Decreto 4.344/2002, ao patrimônio da União todos os documentos bibliográficos e museológicos recebidos pelos presidentes da República, nas denominadas cerimônias de troca de presentes, bem assim todos os presentes recebidos, nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo Presidente da República".

O relator do texto de 2016, ministro Walton Alencar, entendeu que presentes de alto valor, mesmo que sejam considerados personalíssimos, devem ser repassados ao patrimônio público. Foi com base nesse entendimento que o TCU determinou que Bolsonaro devolvesse as joias e relógios das Arábias...

BOLSONARISTA PROVOCA O TRIBUNAL
O deputado bolsonarista Sanderson (PL-RS) recorreu ao TCU para que este dissesse se Lula não estava igualmente obrigado a devolver o tal Cartier. Começava ali o esforço não para tirar o relógio do petista, mas para criar um fato que busca livrar a cara de Bolsonaro na Justiça.

O relator do caso no TCU foi o ministro Antonio Anastasia. Ele entendeu que presentes, exceto os de caráter personalíssimo, devem, sim, ser incorporados ao patrimônio da União, conforme o acórdão de 2016. Objetou que Lula não estava obrigado a fazê-lo porque recebeu o presente em data anterior à decisão do tribunal. Foi seguido por Marcos Bemquerer, que atua como juiz substituto. Walton manteve o entendimento de 2016.

Eis que surgiu no meio da, digamos, operação o ministro Jorge Oliveira, ex-secretário geral da Presidência de Bolsonaro, que o indicou para a corte de contas. Oliveira entendeu que inexiste lei que disponha sobre a entrega de presentes. Apelou ao direito penal e mandou ver:
"O princípio da legalidade não vale no caso concreto? O direito sancionatório no Brasil é claro: não há crime sem lei anterior que o defina. No Direito Penal é claro. Até o presente momento, não existe no País uma norma clara que trata sobre o recebimento de presentes por presidentes da República".

E, se não existe, segundo seu entendimento, a tal lei, não se cuida, então, de falar em devolução dos presentes. Logo, Lula pode ficar com o Cartier. Foi seguido por Vital do Rego, Aroldo Cedraz, Jonathan de Jesus e Augusto Nardes. Para lembrar: Jonathan chegou ao tribunal pelas mãos do senador Ciro Nogueira (PP-PI), que foi ministro da Casa Civil do governo anterior. Nardes é aquele que mandou mensagens, em novembro de 2022, depois da vitória do líder petista, a interlocutores, cheio de entusiasmo, dizendo que os militares iriam virar a mesa.

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Se você ficou com a impressão de que o Cartier de Lula estava servindo de cavalo de troia das joias milionárias que Bolsonaro decidiu embolsar, bem, você está obviamente com a razão. No TCU, o "caso Bolsonaro" estão sob a relatoria de Nardes. É evidente que as riquezas serão devolvidas ao ex-presidente.

Lula teria, segundo se comenta, ficado furioso por ter sido usado como instrumento para livrar a cara de Bolsonaro. Bem, parece-me que aconteceu exatamente assim. Por isso mesmo eu havia defendido, e defendo ainda, que entregue o relógio ao patrimônio público.

MESMA TESE DA DEFESA DE BOLSONARO
A tese a que recorreu Oliveira é rigorosamente aquela que passou a ser adotada, a partir de um determinado momento, pela defesa de Bolsonaro. Quando o caso veio à luz, houve um clima de barata-voa, e as versões variavam do "eu nunca soube de joia nenhuma" até "é tudo culpa de Mauro Cid". Posteriormente, o advogado Paulo da Cunha Bueno passou a insistir na inexistência de uma lei que obrigasse seu cliente a devolver as joias.

Ontem, depois do julgamento, ele comentou:
"É uma decisão acertada, vamos usar, sim. Não há legislação especifica, e o TCU estava legislando, como bem pontuou o ministro Jorge Oliveira".

NÃO SE MISTUREM ALHOS COM BUGALHOS
A decisão do TCU, então, livra a cara de Bolsonaro na esfera penal? Só não se pode dizer que uma coisa nada tem a ver com outra porque, afinal, os objetos de uma e de outra são os mesmos, mas estamos falando de esferas distintas.

A propósito: os casos também são estupidamente diferentes. Ainda que um Cartier avaliado em R$ 50 mil não seja exatamente mixaria, há uma diferença brutal entre o presente que a empresa deu a Lula e as joias fabulosas que Bolsonaro decidiu passar nos cobres. Se o valor, por si, não define o crime, as estratégias a que recorreram um e outro também são distintas. E são elas que remetem ao direito penal.

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Lula, a rigor, não apelou a nenhum truque. Ao contrário: a partir de um determinado momento, passou a usar o relógio. Entendeu — e, de fato, não se cuidava do assunto em 2005 — tratar-se de um presente pessoal. Não mobilizou serviçais para operações clandestinas.

A PF indiciou Bolsonaro por associação criminosa, lavagem de dinheiro e apropriação de bens público. Há outros 11 implicados. Paulo Gonet, procurador-geral da República, tem até o dia 21 de agosto para se manifestar. Pode pedir mais diligências, entender que não houve crime nenhum ou, então, oferecer denúncia — nesse caso, o STF decide se abre a ação penal, hipótese em que o ex-presidente viraria réu, ou não.

"Mas Gonet pode ignorar a decisão de cinco dos nove ministros do TCU, Reinaldo?" Não haveria como ignorar, ainda que quisesse. Mas ela absolutamente não vincula a PGR ou o STF.

TRUQUE
O procurador-geral não é do tipo que se deixe pegar por armadilhas e artimanhas. Notem que Jorge Oliveira não quis saber se o tribunal de que é membro tinha ou não um entendimento a respeito do caso julgado. E tinha. Desde 2016, com base em um decreto de 2002. Isso teria bastado para que dissesse: "Lula pode ficar com o relógio porque é disto que se cuida aqui; o caso antecede decisão desta corte de contas, como lembra o ministro Anastasia".

Mas ele preferiu ignorar o próprio tribunal para lançar uma tese na área penal que poderia ser assim sintetizada: "Não há lei que determine a entrega do presente. Só há um decreto e uma decisão deste TCU; logo Lula não tem de devolver o relógio porque não cometeu crime."

Ocorre que não há procedimento investigatório nenhum contra o atual presidente, mas há contra o anterior, aliado de Oliveira e de outros dois dos quatro ministros que o seguiram.

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ENCERRO
Ao fugir da seara própria a um Tribunal de Contas, ignorando jurisprudência da Casa, e mergulhar na questão penal, parece evidente que Oliveira tentou condicionar a posição de Gonet sobre o caso Bolsonaro, indo além das suas sandálias. E cumpre lembrar ao concluir: o imbróglio das joias não se limitou a usar ou a não usar um presente, a entregá-lo à União ou guardá-lo na gaveta. Elas integram até mesmo o roteiro de fuga daquele que tentou incendiar o país e foi se homiziar em Orlando.

No TCU, as favas em favor do ex-presidente estão contadas, é claro! Mas não na PGR ou no STF. Não necessariamente.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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