Assim não, Lula! Fala sobre a Venezuela é infeliz e leniente com a ditadura
Não. Eu não me tornei, e jamais poderia acontecer, uma dessas figuras detestáveis a que chamo "extremista de centro" — esses delinquentes intelectuais que andam por aí, para citar Fernando Pessoa, esperando "o piscar de olhos dos moços de fretes" do bolsonarismo. De fato, conheço poucas espécies piores do que essa. Caminhei não com o PT, mas na mesma trilha, e o faria de novo — e o farei de novo — contra o biltre fascistoide se preciso. Mas não me peçam para dar o braço para desastres morais, políticos e existenciais como Nicolás Maduro, ditador da Venezuela. "E se for o preço a pagar, Reinaldo?" Não pago. E se não houver espaço público que não seja condescender com um fascista, em sentido próprio, ou com outro, em sentido derivado? Ficarei à margem, tocando a minha lira, nem que solitária seja. Mas não será. Temo mais a estupidez do que a solidão.
As declarações do presidente Lula sobre o que se passa na Venezuela não são dignas da sua história. Notem que falo de "história", não de biografia. Desta, cuida ele mesmo, e não sou gerente da sua reputação. Da outra, posso falar a exemplo de qualquer brasileiro. Pessoas estão morrendo, presidente, no país vizinho porque o tirano de plantão se negou a reconhecer o resultado das urnas. A esmagadora maioria dos venezuelanos não o quer, mas o tiranete resolveu privatizar um povo com suas prefigurações e delírios. Poderiam ser só ideias autoritárias, impróprias, imprudentes, insanas. Mas Maduro não é o Tirano de Siracusa. Este Dionísio da ignorância e da soberba não é o rei filósofo. É só a fachada civil de uma ditadura militar, que se locupleta de um regime fundado na "monocultura do petróleo" — já que todo o resto entrou em falência na Venezuela.
Eu me espanto com a nota do PT. Não sou de esquerda nem me finjo de, como sabe toda gente. Deixei certas utopias, que alguns chamariam distopias, aos 21 anos, e já estou com 62. A essa altura, sobram-me experiências e coisas vividas, infelizmente, e me faltam ingenuidades. Ou redescobri, então, a inocência essencial de não me ver obrigado a justificar o injustificável em nome da causa. Mas sou reverente aos caminhos escolhidos por meus amigos, desde que não ofendam meu sendo se justiça.
IMPRENSA
A má vontade da imprensa com o governo Lula na economia é proverbial. São ouvidos para tratar do assunto os de sempre -- ou sempre os do mesmo setor. Quando escapa uma boa notícia, lá estão os leitores da Ilíada, que obviamente não a leram, a anunciar nuvens carregadas. Com raras exceções, não se tem cobertura jornalística, mas lobby; não se tem jornalismo, mas lixo monetizado. Ocorre que, desta vez, a imprensa é inocente, presidente.
Em entrevista a um canal afiliado à TV Globo na manhã desta terça, Lula viu no país vizinho "um processo em curso". Deu a entender que há não mais do que uma divergência de pontos de vista entre a oposição e o tal Conselho Nacional Eleitoral, presidido por Elvis Amoroso, um esbirro de Maduro. E disse o seguinte sobre o país que agora amontoa seus mortos:
"Vejo a imprensa brasileira tratando como se fosse a Terceira Guerra Mundial. Não tem nada de anormal. Teve uma eleição; teve uma pessoa que disse que teve 51%; teve uma pessoa que disse que teve 40 e pouco. Um concorda, o outro não".
Então vamos, presidente, adaptar essa sua leitura ao que se deu no Brasil no 8 de janeiro:
"Vejo a imprensa tratando como se fosse a Terceira Guerra Mundial. Não tem nada de anormal. Teve um protesto. Teve gente que disse que foi tentativa de golpe; teve pessoa que disse que teve apenas dano ao patrimônio. Um concorda, o outro não."
Vamos tratar dos quatro anos de Jair Bolsonaro à luz dessa escolástica do caos:
"Vejo a imprensa tratando como se fosse a terceira guerra mundial. Não tem nada de anormal. Teve protesto. Teve gente que disse que Bolsonaro queria dar golpe de Estado quando afirmou que não haveria eleição se não houvesse voto impresso e quando apresentou minuta de golpe para representantes das Forças Armadas. Teve pessoa que disse que o então presidente fez apenas uma consulta. Um concorda; o outro não".
Vamos recontar a história da covid segundo o abismo moral:
"Vejo a imprensa tratando como se fosse a Terceira Guerra Mundial. Não tem nada de anormal. Teve protesto. Teve gente que disse que Bolsonaro fez campanha contra as vacinas e contra o distanciamento social, dificultando o combate à pandemia; teve pessoa que disse que não. Um concorda; o outro não".
A essência da relativização do mal está na destruição de critérios e de valores. E se pode justificar qualquer coisa.
Os erros de Lula não param por aí. Disse que as pessoas contestam os resultados numa eleição sempre que a diferença é pequena e lembrou o recurso de Aécio Neves (PSDB) contra a eleição de Dilma Rousseff em 2014. Pois lembro de placar mais apertado: a unção de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 contra Jair Bolsonaro. Estamos falando de 50,9% contra 49,1%. Se sou defensor dos golpistas que invadiram as respectivas sedes dos Três Poderes, recorro a essa fala do vitorioso por margem tão apertada em favor dos meus clientes. A questão não está no inconformismo, presidente, mas nos meios, seja para recorrer contra a derrota, seja para certificar a vitória.
Os meios, presidente, não justificam os fins. Nunca. E Maquiavel, note-se, nunca escreveu essa besteira. Os meios qualificam os fins. Quem escreveu? Eu mesmo.
Está tudo errado.
Lula ainda lançou uma espécie de divisa que poderia ser uma síntese da autodeterminação dos povos, não servisse, neste momento, para justificar um regime homicida:
"Eu, enquanto cidadão do planeta Terra, cidadão brasileiro, presidente, acho que é preciso acabar com a ingerência externa nos outros países. A Venezuela tem direito de construir o seu modelo de crescimento e de desenvolvimento sem que haja um bloqueio. Cada um constrói o seu processo democrático; cada um tem o seu processo eleitoral."
Mas, então, esse é um discurso sem lugar, e Lula nem deveria estar a falar dessas coisas.
TUDO É LAMENTÁVEL
A geopolítica faz do Brasil um país importante na América Latina. O líder brasileiro foi vítima de um golpe judicial, que o tirou da disputa de 2018 e permitiu a eleição de sua nêmesis. Quem o condenou se tornou ministro daquele que não teria sido eleito sem a sua condenação.
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OLHAR APURADO
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Quero receberFoi a sua aposta e da sociedade na saída judicial, apontando os vícios do processo, que lhe devolveu a elegibilidade. Ao mesmo tempo, setores importantes da sociedade se mobilizaram contra as tramoias golpistas no curso do mandato do então incumbente e mesmo depois de consolidada a sua derrota. Fez-se uma luta também institucional.
Será que o líder petista enxerga tão mais longe do que todos nós e é capaz de antever belezas e primícias no que está em curso, que a todos escapa? Estará, de algum modo, empenhado em alguma estratégia que não pode ser percebida por nós, os simples? Acho que não. O mundo nem sempre é óbvio, e gostaria muito de estar errado. Mas não estou.
Na prática, o presidente está sendo leniente com um regime que ou não vai se sustentar ou vai se manter à custa de cadáveres. E é evidente que os canibais de Maduro estão com fome. E, com sede, pedem mais sangue.
Não critique a imprensa, presidente, quando esta ousa acertar. Ou O senhor contribui para deixá-la mal-acostumada.
ENCERRO
Volto ao começo. "E aí, Reinaldo? O que vai ser no futuro?" É certo que não cedo "ao piscar de olhos dos moços de frentes do bolsonarismo" ou de algum outro fascismo qualquer. "E se tiver de condescender com alimárias como Nicolás Maduro?" Nunca vai acontecer. Temo mais a estupidez do que a solidão.
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