'Semileais' à democracia querem eleitor como único juiz de crimes de Marçal
A última palavra dos idiotas é deixar Pablo Marçal em paz nas redes, a cometer crimes eleitorais em penca porque, vejam vocês, "se mexer, piora, e ele cresce". Imagino esses gigantes do pensamento a medir o direito penal com a mesma régua com que medem o direito eleitoral. Na sua fórmula genial, a melhor maneira de combater os criminosos é descriminando (ou "descriminalizando", como se escreve por aí) o próprio crime. É um raciocínio asnal. É claro que, numa democracia, o adversário tem de ser vencido pelo voto. Já o inimigo das regras do jogo tem de ser vencido pela Polícia e pela Justiça. In casu: Pablo Marçal não tem de ser banido da disputa porque fala asneiras, porque é um reacionário asqueroso ou porque pretende ser o líder da extrema-direita. Ele tem de ter o registro cassado porque já cometeu crimes eleitorais em penca. Que parte os sonsos não entenderam?
OS SEMILEAIS
Leiam com atenção o que segue em negrito:
"Durante anos, a política no Brasil e a política nos Estados Unidos pareceram seguir caminhos paralelos. Não faz muito tempo, os dois países elegeram figuras de extrema-direita que ameaçaram a democracia. A eleição de Donald Trump em 2016 nos inspirou a escrever 'Como as Democracias Morrem'. Jair Bolsonaro foi eleito dois anos depois (no ano em que 'Como as Democracias Morrem' foi publicado). Bolsonaro admirava Trump abertamente, e a mídia americana o descrevia como o "Trump dos Trópicos".
(...)
A regra básica da democracia é que os políticos aceitem os resultados das eleições, ganhando ou perdendo. E nem Trump nem Bolsonaro estavam dispostos a perder. Trump se tornou o primeiro ocupante da Presidência dos Estados Unidos a não aceitar a derrota e conspirou para subverter os resultados da eleição de 2020, num esforço que culminou na violenta insurreição de 6 de janeiro de 2021.
Bolsonaro trabalhou para solapar a legitimidade da eleição de 2022 no Brasil, alegando, sem fundamento, ter havido fraude. Tudo indica que ele tentou conseguir apoio militar para invalidar o pleito, e, quando isso não funcionou, seus seguidores invadiram as sedes dos três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
(...)
Donald Trump continua sendo uma ameaça iminente à democracia americana. (...) Já no Brasil, Jair Bolsonaro vem sendo politicamente marginalizado, e a crise democrática dá sinais de ter sido, em grande parte, superada. Em outras palavras, o Brasil rechaçou a recente ameaça a democracia, ao contrário dos Estados Unidos.
A principal diferença entre os dois países é o comportamento dos líderes políticos, especialmente os da direita.
Um presidente autocrático sozinho jamais é suficiente para matar uma democracia. Os autocratas precisam de cúmplices — políticos tradicionais que tornam possível a sua existência. O cientista político espanhol Juan Linz os chama de 'democratas semileais' — políticos tradicionais que toleram, ajudam e protegem os autoritários.
Diante de uma ameaça autoritária, políticos comprometidos com a democracia — que Linz chama de 'democratas leais' — fazem três coisas: condenam publicamente o comportamento antidemocrático e agem para responsabilizar os culpados, ainda que sejam aliados ideológicos; expulsam as figuras autoritárias de suas fileiras, recusando-se a nomeá-las ou a indicá-las para cargos públicos; trabalham com forças pró-democracia de todo o espectro ideológico para isolar e derrotar extremistas antidemocráticos.
Democratas semileais não fazem nada disso: em vez de expulsar figuras autoritárias, eles as toleram, entram em acordo e até colaboram discretamente com elas; em vez de repudiar o comportamento autoritário de seus aliados, minimizaram o aceitam esse comportamento, ou simplesmente se calam; recusam-se a trabalhar com rivais ideológicos para isolar autoritários, mesmo que a democracia esteja em perigo."
RETOMO
São trechos do prefácio brasileiro de "Como Salvar a Democracia", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do já clássico "Como as Democracias Morrem".
Observem que os autores se referem aos "políticos semileais" à democracia, que condescendem com os autoritários. Falei sobre eles ontem aqui, ao comentar "A Anatomia do Fascismo", de Robert O. Paxton. O exemplo mais eloquente é o conservador Franz von Papen, que decidiu ser vice-chanceler de Hitler na Alemanha na certeza de que estava, a um só tempo, combatendo as esquerdas e contendo o furor disruptivo do "cabo austríaco". O resultado é conhecido.
Seguem Levitsky e Ziblatt no prefácio:
"Este livro mostra que a semilealdade pode matar a democracia. Uma lição importante que pode ser extraída de colapsos democráticos anteriores -- na Itália, na Alemanha e na Espanha nas décadas de 1920 e 1930; na Argentina, no Brasil e no Chile nos anos 1960 e 1970 -- é que, quando partidos ou políticos tradicionais toleram, protegem e possibilitam a ação violenta ou antidemocrática de extremistas, as democracias enfrentam dificuldades.
Quando comparamos os políticos de direita dos Estados Unidos depois de 2020 com os do Brasil depois de 2022, a diferença é gritante. Nos Estados Unidos, líderes republicanos têm sido esmagadoramente semileais, tolerando consistentemente e até tornando possível o autoritarismo de Trump. A maioria deles, por exemplo, se recusou a aceitar publicamente os resultados da eleição de 2020. De acordo com o 'Republican Accountability Project, 86% dos membros republicanos do Congresso fizeram declarações públicas pondo em dúvida a legitimidade do pleito."
De fato, parte considerável dos conservadores brasileiros admitiu o resultado da eleição — coisa que a esmagadora maioria dos republicanos não fez —, ainda que uma facção barulhenta do Congresso, fiel a seu líder, continue a acusar uma suposta fraude eleitoral em 2022 e faça oposição sistemática ao governo, pouco importando o que esteja em votação. A "semilealdade" também no Brasil é expressiva, ainda que distante do que se vê no Estados Unidos. E há um outro fator fundamental, também destacado pelos autores no seu prefácio.
OS TRIBUNAIS
Leiam mais esta passagem:
"Por fim, enquanto líderes republicanos pretendem apoiar a candidatura de Trump em 2024, mesmo que ele seja condenado por tentativa de golpe, no Brasil, os tribunais proibiram Bolsonaro de concorrer a qualquer cargo público por oito anos -- e pouquíssimos políticos de direita saíram em sua defesa. Embora a decisão do Tribunal Eleitoral tenha sido controversa, poucos políticos brasileiros atacaram a legitimidade do Judiciário ou alegaram que o ex-presidente estava sendo vítima de perseguição. Portanto, Bolsonaro não só está legalmente proibido de concorrer a presidente como, pelo menos por hora, parece estar politicamente enfraquecido, de maneira que, enquanto o Partido Republicano continua ligado a Trump, o que lhe permite continuar ameaçando a democracia americana, a maioria dos políticos de direita no Brasil se distanciou de Bolsonaro, deixando isolado"
Há aí o registro fundamental do papel da Justiça na contenção do golpismo e na inabilitação daquele que tramou contra a democracia — e rejeito, como sabem, que a decisão do TSE tenha sido "controversa". Levitsky e Ziblatt exageram um tanto a dizer que Bolsonaro está "isolado". Não está. Ainda é o maior líder da direita brasileira e tem uma bancada expressiva na Câmara e no Senado. Já nem se diga que são "semileais" à democracia. A relação é mesmo de deslealdade.
Ainda que se encontrem imprecisões quando lido o texto nas suas minudências, é evidente que a dupla enxergou corretamente as particularidades do Brasil — virtuosas no que respeita à manutenção da democracia — em contraste com o que se deu e se dá nos EUA.
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Quero receberTer havido uma direita no Brasil que reconheceu o resultado das urnas foi, sim, importante para evidenciar que o pretendido golpe daria com os burros n'água, embora muitos tenham decidido ir até o fim. O próprio Bolsonaro, e há evidências em penca, estimulava, com meias-palavras e silêncios, a virada de mesa. Não aconteceu.
A JUSTIÇA ELEITORAL
Ambos têm razão quando afirmam, mais adiante, que "a resposta a direita brasileira à crise desencadeada por Bolsonaro foi mais favorável à democracia do que a resposta americana à Trump". Mas esbarram de novo em certo exagero quando escrevem: "Como os políticos brasileiros, via de regra aceitaram o resultado da eleição de 2022, condenando de maneira veemente a insurreição de 8 de janeiro, e cooperaram com as investigações sobre os esforços bolsonaristas para enfraquecer a democracia, a ameaça representada por Bolsonaro perdeu força".
Sim, perdeu, mas o trabalho realmente importante foi feito pela Justiça Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito dos inquéritos de que Alexandre de Moraes é o relator, notadamente o 4.781, que abriga parte considerável da investigação sobre as ações golpistas.
Não fosse a atuação dos tribunais, o desfecho poderia, sim, ser outro. Se é fato que houve por aqui uma direita conservadora que lamentou, mas aceitou a vitória do Lula, cumpre não superestimar o seu papel: sem a força dos dois tribunais, a coisa teria ido para a breca. Não faltam aos EUA defensores da democracia; não falta aos Estados Unidos uma direita democrática legalista— parte considerável dos democratas, diga-se; não faltam aos Estados Unidos a certeza de que Trump tentou golpear a eleição. Mas faltam aos Estados Unidos leis e um aparato judicial que possam inabilitar um golpista.
DE VOLTA AO COMEÇO
Os semileais à democracia também estão entre nós. E um dos seus modos de ser é se articular contra o magistrado que encarnou justamente o triunfo da legalidade democrática em oposição às tramoias golpistas. E é certo que me refiro a Alexandre de Moraes.
Esses mesmos "semileais" se manifestam de novo agora, inclusive na imprensa. Diante dos crimes cometidos por um tal Pablo Marçal, propõem que sejam os eleitores os únicos juízes aptos a barrar a sua ascensão. A ser assim, a eleição se torna não a arena em que os contendores disputam em igualdade de condições, mas o instrumento de absolvição dos que cometerem crimes com mais habilidade.
A urna deve, sim, acolher a vontade do eleitor. Mas o eleitor não se converte em juiz de absolvição de criminosos.
Numa democracia, creio, é também um dever da imprensa:
- condenar publicamente o comportamento antidemocrático, cobrando a responsabilização de culpados;
- defender a expulsão de figuras autoritárias da vida pública;
- alinhar-se com forças pró-democracia de todo o espectro ideológico para derrotar os extremistas antidemocráticos.
Ou devemos ser isentos na disputa entre a corda e o pescoço?
Cabe, sim, ao eleitor a palavra final desde que sua vontade não seja previamente sequestrada pelo crime. A democracia é o regime em que nem tudo pode.
Tudo pode na tirania — para o tirano e seus amigos.
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