Eleição em SP e no Rio e o retrato anatômico da decadência de Bolsonaro
A sucessão de Jair Bolsonaro na extrema direita já começou. Antes que entre no mérito, algumas considerações importantes.
A eleição na cidade de São Paulo é importante, sabemos, não pelo reflexo que possa ter na sucessão presidencial ou por seu eventual caráter de amostragem do, digamos, "estado ideológico geral". As questões locais, ligadas às tarefas da prefeitura, que tem um impacto importante no dia a dia das pessoas, pesam muito mais, ainda que as rinhas ideológicas se manifestem.
A importância se deve ao fato de que se está a falar de um dos maiores Orçamentos do país, e os políticos se articulam com o poder econômico para dar uma destinação à dinheirama, em maior ou menor conexão com os pobres, a depender da pessoa eleita.
O desempenho dos partidos na formação das câmaras municipais, este sim, guarda intimidade com a futura composição da Câmara dos Deputados, conforme evidências colhidas por Antônio Lavareda, cientista político e especialista em pesquisas. Ele tratou do assunto numa esclarecedora entrevista ao podcast "Reconversa". Não antecipa, por exemplo, uma eleição presidencial. Mas há muito mais.
Por que o pleito na maior cidade do país reveste-se de especial interesse? Junto com a disputa eleitoral, assiste-se a um embate na extrema direita — ela fagocitou a direita democrática — que pode, este sim, impactar a eleição presidencial de 2026. Pode-se dizer que o extremismo demonstra a sua força — corroendo a civilidade política, a racionalidade e, sim, as instituições —, mas que o Bolsonaro é apenas uma chave de identificação da algaravia reacionária. Se Lula é o líder inconteste de correntes progressistas e as lidera em defesa de uma estratégia de conquista de poder, vê-se que o ex-presidente pode ser agravado e desafiado no seu próprio território.
Não deixa de ser curioso. O golpista empedernido — e golpista permanece, como evidenciou no ato micado da Avenida Paulista no dia 7 —, foi obrigado a fazer um tanto de política institucional para sobreviver. E só por isto — porque precisa do apoio da "velha política" para se manter no jogo, para tentar a anistia, para buscar emparedar o Supremo —, aderiu à candidatura de Ricardo Nunes à prefeitura. O prefeito que busca a reeleição não encarna o seu sonho de reacionarismo disruptivo. Nem o dele nem o daqueles que se juntam nas fileiras que lidera. E ele as lidera justamente porque vocaliza as barbaridades que querem ouvir: todas elas reativas, avessas à convivência com a divergência e com a diversidade, contrárias a políticas de reparação da desigualdade.
ASSALTO À CIDADELA
Ocorre que, desde a derrota eleitoral e o ataque golpista às respectivas sedes dos Três Poderes, o dito "Mito" mais se ocupa de tentar salvar-se no Supremo do que de alimentar com despautérios novos, ainda que sobre os temas de sempre, aqueles que já foram chamados "minions" ou "gado". Ou por outra: ele refreou, em larga medida, a produção de distopias disruptivas e contra "o sistema" -- que, está mais do que demonstrado, é o alimento dos movimentos fascistoides. A ignorância de Pablo Marçal é assombrosa, como se percebe por seu discurso. Não é raro que empregue palavras cujo sentido obviamente desconhece. Mas está longe de ser burro.
Ele farejou um Bolsonaro um tanto burocrático, que perdeu parte do "elã vital" — em matéria de extrema direita, deve-se dizer "elã mortal" — que mobilizava rancores primitivos, ódios incuráveis e preconceitos arraigados. Sim, o "Mito" segue sendo o mesmo, mas a sua causa, tudo indica, parece menos "pública" hoje do que antes e mais voltada para o seu próprio interesse. E então surgiu um "coach", que recorreu à Internet, para roubar o patrimônio de um velho. Questão de experiência... E, como se sabe, Marçal o faz reproduzindo a ladainha antediluviana do ex-presidente. E, à diferença de Bolsonaro, pode prodigalizar obscurantismos sem ter de misturá-los com uma questão pessoal: a guerra contra Alexandre de Moraes e o Supremo.
O "pai dos meninos" perdeu a disputa pela reeleição para Lula, um progressista — não um progressista qualquer, é claro! —, mas isso não significou um questionamento de sua liderança. Mais do que isso: mesmo depois dos ataques golpistas, e até por causa deles, manteve-se como a referência da reação. Nem todo o trabalho de elucidação dos fatos feito pela imprensa que se preza nem a militância das várias esquerdas produziram um efeito tão corrosivo na reputação de Bolsonaro como a investida de Marçal.
E isso faz sentido. As desconstruções a que o ex-presidente foi submetido — seja pela via dos fatos, seja pela da crítica política — o caracterizam como um adversário da democracia, uma pessoa tóxica para os direitos humanos, um aspirante a ditador. Ocorre que nada disso abala a sua reputação junto à parcela da população que lhe dá suporte. Ela o aprecia justamente por isso. O jogo de Marçal é outro, como a dizer: "Você hoje está ocupado das suas questões pessoais e já não tem mais o ímpeto necessário para encarnar os valores da extrema direita". Não que um ou outro conheçam a teoria o suficiente para saber o que isso significa precisamente. Não importa. Basta que fale com propriedade ao âmago da desrazão.
De repente, o "statu quo" da extrema direita ficou bagunçado porque parte importante do seu eleitorado passou a obedecer a um comando que lhe pareceu, se não mais legítimo, mais autêntico ao menos, embora Marçal, nas hostes do extremismo, seja um neófito. Mas e daí? Bolsonaro também foi um dia. Era um reacionário desde sempre, mas a sua conversão à mistura de Deus com bobajada da Faria Lima é relativamente nova.
Tudo indica que Marçal não vai para o segundo turno, mas isso é menos importante do que o fato de que demonstrou que a fortaleza dos ódios pode ser assaltada por outro aventureiro. Farei uma pausa para falar do Rio, o que ajuda a compor o quadro, e depois volto a São Paulo
RIO
Some-se a essa investida dos fatos contra Bolsonaro aquilo a que se assiste na disputa pela Prefeitura do Rio. Só um evento verdadeiramente formidável -- ou um erro histórico das pesquisas de opinião -- tira a reeleição de Eduardo Paes (PSD). E, tudo indica, no primeiro turno.
Os poderes miraculosos de Bolsonaro de transferir voto a quem lhe der na veneta entraram em falência, lembrando que ele venceu Lula na cidade por 52,66% a 47,34% no segundo turno. Se o jornalismo conservador ou francamente reacionário se diverte com o fato de que Lula, até agora, não transferiu votos de maneira convincente a Guilherme Boulos em São Paulo — onde o presidente venceu a disputa —, o resultado até agora, convenham, está longe de ser vexaminoso.
Mas e Alexandre Ramagem no Rio? Paes, é verdade, fez uma ampla política de alianças na cidade, que não se limitou aos partidos. Conquistou também fortalezas do voto considerado bolsonarista, como as igrejas evangélicas. Seria uma tolice atribuir o resultado só ao declínio na figura de Bolsonaro. O talento do prefeito na articulação tem um grande peso. Fato: este, por ora, esmaga os superpoderes daquele. O ex-presidente está sendo desafiado na sua própria cidadela, a extrema direita, em São Paulo, e humilhado em sua base política, no Rio. Nesse caso, uma articulação política competente e, vá lá, um candidato muito fraco se encarregam de evidenciar seus pés de barro.
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Tarcísio de Freitas (Republicanos), o governador de São Paulo, não desistiu de Ricardo Nunes nem no auge da turbulência. Ao contrário: acabou comprando briga com o "coach", a despeito da migração do eleitorado bolsonarista, e se colocou como fiador da candidatura do prefeito à reeleição.
Aos reacionários endinheirados de São Paulo e do país — que não têm pensamento assim tão distinto do de Bolsonaro, mas não rasgam dinheiro nem apreciam excesso de incertezas —, é evidente que se robustece a figura de Tarcísio como líder da extrema direita e, eventualmente, da direita, quanto esta demonstrar onde se esconde.
Tarcísio fez carreira no serviço público nos governos petistas, mas é uma invenção política de Bolsonaro, não se cansando de lhe demonstrar gratidão. Tanto é assim que um governador de estado, que tem sérios e graves encargos institucionais, exibiu a irresponsabilidade de comparecer a um ato que pede o impeachment de um ministro do Supremo e anistia a golpistas.
Na encolha, no entanto, ele costuma deixar claro que prefere menos crispação e confronto. Bem, nessas coisas, só acredito vendo. E eu o vi no palanque da insensatez. De toda sorte, no embate de São Paulo, repeliu a ameaça Marçal em vez de se render a ela. Ao fazê-lo, registrem aí, a criatura se tornou um pouco mais independente do seu criador.
AFETOS SANGUINOLENTOS DE NUNES
Também merece menção o Ricardo Nunes que pode sair das urnas, se vitorioso. Numa entrevista à revista Oeste, defendeu a CPI do Supremo, atacou Alexandre de Moraes e se disse contra a suspensão do X. O moderado do MDB, do mesmo partido de Michel Temer, resolveu exercitar seus afetos sanguinolentos, numa campanha eleitoral em que precisa, a um só tempo, repelir Marçal, mas competir com ele em reacionarismo.
É uma estratégia: sua turma considera que o eleitorado não bolsonarista que já tem está assegurado e que o incerto é justamente a fatia extremista, atraída por Marçal. Se ela migrasse em massa para o "coach", haveria o risco de o prefeito não passar para o segundo turno. Assim, vejam vocês, temos o candidato de Temer em São Paulo a defender uma inconstitucional CPI do Supremo e a atacar o ministro indicado pelo ex-presidente.
Longe de mim sustentar que Nunes está fingindo ser o extremista de direita que não seria. Se alguém decide falar de si mesmo as piores coisas e exibir os piores instintos, não serei eu a dizer: "Ah, você não é tão mau assim..." Se ele diz ser, então acredito. Mas a história não deixa de existir.
Parece-me que até esse Nunes a babar besteiras indica mais a fragilidade do que a força de Bolsonaro. Depois de resistir, o prefeito aderiu a essa pauta, no fim das contas, em parceria com Tarcísio, para fazer as vontades do líder decadente, mas ainda influente, com o objetivo de atravessar o deserto. Caso reeleito, veremos se continuará a ser um inimigo do STF à frente da prefeitura.
ENCERRO
Bolsonaro adora se mirar em Lula. É quase patológico. Perdeu mais uma para a sua nêmesis. O processo sucessório no PT ou no campo progressista está longe de começar. Não há nem sinal. Na extrema direita, no entanto, já está em andamento. O Mito tinha pés de barro. E todos sabem que ainda vai para a cadeia.
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