Tchetchetcheretetê das bets leva 20% do Bolsa Família; não pode ficar assim
Os números são alarmantes, chocantes, estupefacientes. Beneficiários do Bolsa Família apostaram nas bets, só no mês de agosto, R$ 3 bilhões, o que corresponde a 20% do total que saiu dos cofres públicos para esse benefício. A realidade é certamente pior e mais assustadora porque esse é apenas o dinheiro repassado via Pix. Esses dados, que são do Banco Central, não incluem os desembolsos por meio de cartões de débito e de crédito. Dos 20 milhões de beneficiários, 5 milhões fizeram apostas. Do total de apostadores, 70% são chefes de família e são os realmente cadastrados no programa. Só nesse universo, foram R$ 2 bilhões em apostas. O valor médio por pessoa é de R$ 100, e o do Bolsa Família, de R$ 681,09. Em agosto, foram repassados para o programa de renda R$ 14,1 bilhões.
Nota técnica do BC informa:
"Para identificar as pessoas em grande vulnerabilidade financeira, utilizou-se a informação de beneficiários do PBF [Programa Bolsa Família] existente em dezembro de 2023. Cerca de 17% desses cadastrados apostaram no período. A proporção de apostadores é praticamente a mesma quando se examina apenas quem de fato recebe o benefício governamental, os chefes de família".
Segundo Roberto Campos Neto, presidente do BC, houve uma piora na inadimplência que poderia ser atribuída a esse fator:
"Não é um trabalho do Banco Central olhar as bets, mas há uma preocupação. O que a gente tem feito é tentar ajudar o governo e o Congresso com os dados que a gente tem. Uma coisa que tem gerado preocupação na ponta é que o crescimento é muito grande".
Ainda o relatório do BC:
"Esses resultados estão em linha com outros levantamentos que apontam as famílias de baixa renda como as mais prejudicadas pela atividade das apostas esportivas. É razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira".
E obviamente é assim.
O levantamento é precário e pode ser apenas a ponta do problema. Observa a nota do BC:
"[Muitas empresas] o fazem sob nomes que não correspondem aos divulgados na mídia, e várias delas não estão corretamente classificadas no setor econômico apropriado. Além disso, muitas dessas empresas não atuam exclusivamente no setor de apostas, podendo ser substituídas ao longo do tempo, o que torna a análise ainda mais complexa.".
O levantamento foi encomendado pelo senador Omar Aziz (PSD-AM). Ele acionou a PGR para que as bets sejam retiradas do ar enquanto não houver a regulamentação severa do setor.
Estima-se que, ao longo deste ano, as transferências via Pix para essas empresas, ou que nome tenham, somaram de R$ 18 bilhões a R$ 21 bilhões por mês. Segundo o BC, "com base nas transferências que são feitas dessas empresas para pessoas físicas, estimamos que aproximadamente 15% do que é apostado seja retido pelas empresas, com o restante distribuído aos ganhadores a título de prêmio". Essa retenção mensal ficaria, portanto, entre R$ 2,7 bilhões e R$ 3,15 bilhões por mês. Nessa proporção, R$ 450 milhões/mês dos recursos do Bolsa Família vão para as empresas de apostas.
As Polianas poderiam dizer: então não é assim tão ruim porque, afinal, 85% voltam para os que jogam. Errado! Ou não estaríamos lidando com apostas, não é mesmo? A esmagadora maioria fica a ver navios porque só alguns ganham. O mecanismo é concentrador de renda no universo dos que entram nessa. E até a renda do pobre acaba participando dessa farra.
FAZER O QUÊ?
Bem, de imediato, defendo a proibição total de funcionamento das empresas enquanto não se tem uma regulação a mais severa -- na hipótese de esse troço continuar legal. E não estou convencido de que deva. É preciso fazer um elenco de argumentos favoráveis e contrários ao seu funcionamento. Eu não tenho a menor dúvida de que os malefícios superam em muito os benefícios.
Ainda assim, caso se chegue à conclusão de que é melhor manter a atividade legalizada, então, que se proíba a publicidade. Perguntem especialistas em comportamento ou em cérebro, e eles dirão que estamos a lidar com os mesmos mecanismos que induzem o vício.
Os liberaloides, que são uma derivação demencial do liberalismo, hão de dizer que cada um faz do seu dinheiro o que bem entende. Como se sabe, há por aqui até os crentes na seita "Javier-Mileinarista" que não veriam mal nenhum no livre comércio de órgãos humanos...
No que respeita aos apostadores que recebem o Bolsa Família, há de se criarem, quando menos, algumas dificuldades adicionais. Preconceito contra pobre? Não! É que os quase R$ 170 bilhões/ano do programa têm um peso importante no Orçamento. E isso diz respeito a todos os brasileiros. Também aos pobres que não estão no programa.
Já que é possível identificar os cadastrados que decidem apostar, que sejam advertidos de que isso pode valer como um sinal de alerta para eventual revisão da necessidade do benefício. O Estado não pode ser um provedor de vícios para enriquecer os tubarões do jogo.
E Aziz adverte que o problema é mais grave porque o levantamento do BC inclui apenas 56 empresas. E acrescenta:
"O pessoal não está jogando, está doando o dinheiro. E estamos falando só de Pix; fora cartão de crédito e outros meios de pagamento. E isso sem contar as famílias que estão se endividando e pedindo dinheiro para agiota".
É o tchetchetcheretetê de sempre no Brasil, que faz alguns bilionários e pode tornar os pobres ainda mais pobres. Que, ao menos, parte dessa fortuna não implique mera transferência de recursos públicos para os nababos.
O correto seria proibir essa excrescência. Mas isso é improvável. Que, ao menos, se tenha uma regulação severa. E o primeiro passo é proibir a propaganda em qualquer meio, incluindo "big techs".
Em evento sobre democracia na ONU, o presidente Lula comentou:
"O Brasil sempre foi contra cassino, qualquer tipo de jogo de azar. Hoje, através de um celular, o jogo está dentro da casa da família, da sala. Estamos percebendo no Brasil o endividamento das pessoas mais pobres tentando ganhar dinheiro, fazendo aposta. É um problema que vamos ter que regular, senão daqui a pouco vamos ter cassino funcionando dentro da cozinha de cada casa",
É preciso saber quando estamos diante de uma realidade escandalosa. E que pune justamente os mais pobres.
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