Farsa de Marçal contra Boulos e questão à imprensa: até quando vamos errar?
A farsa armada por Pablo Marçal contra Guilherme Boulos é escancarada. O cara é safo o bastante para saber que a mentira seria logo desmoralizada pelos fatos. E daí? Ele aposta no efeito residual da falcatrua lançada nas redes. Qual é o seu limite? Vai até onde a Justiça permitir que vá — e isso inclui desmoralizar a própria... Justiça.
As evidências da armação estão em todo canto. Quero aqui me fixar num aspecto em que tenho insistido desde que esse picareta resolveu tomar de assalto parte da cidadela bolsonarista. E não porque tenham valores distintos, mas justamente porque ele é cria daquela costela.
Há tempos dirigi um questionamento ao próprio jornalismo e às empresas de comunicação. Como faço parte da comunidade, empregarei o pronome "nós", destacando, não obstante, que me insurgi contra a presença deste senhor nos debates desde sempre.
Temos de refletir sobre a nossa responsabilidade pelo vulto que tomou Pablo Marçal. A lei não impunha a sua presença nos debates. Ele nem sequer dispunha de tempo no horário eleitoral porque seu partido é uma dessas ficções que só existem nas dobras da legislação. Não tem existência de fato.
Vejam a facilidade com que um pistoleiro contra as instituições entrou em milhares de lares brasileiros, expandindo a sua bolha na Internet. Não queria, obviamente, debater, confrontar ideias, fazer propostas, apresentar um plano de governo. Seu objetivo, alcançado plenamente com a nossa — da imprensa — ajuda, era ofender, espezinhar, atacar reputações, distribuir acusações a esmo, promover arruaça, criar factoides...
Em ao menos duas oportunidades, ele próprio admitiu a atuação farsesca. Numa entrevista ao podcast Flow, afirmou que, deliberadamente, fazia coisas idiotas porque era disso que os brasileiros gostavam. Num vídeo, confessou que a cena da ambulância, em que simulava passar mal em razão da cadeirada, era uma armação.
"Ah, mas não cabe ao jornalismo impor esse filtro; afinal, espelhamos o que está na sociedade..." Errado. Divirjo. Acho que isso corresponde a renunciar a algumas balizas éticas que têm de disciplinar todos os indivíduos, independentemente de seu ofício. E, pois, devem valer também para o jornalismo.
Demos microfone para Marçal vilipendiar fundamentos comezinhos da vida civilizada, da tolerância, da pluralidade, da democracia. As regras dos debates foram se tornando mais rígidas em razão da sua presença, mas ele sempre foi esperto o bastante para não fazer o que era proibido e apelar ao rol infinito das imprevisibilidades que não têm como ser, por óbvio, previamente vetadas.
Procurem no dicionário o sentido da palavra "decoro". Encontrarão "recato no comportamento; decência, acatamento das normas morais, dignidade, honradez, pundonor, seriedade nas maneiras, compostura". Dada a definição, é impossível estabelecer nas normas de um debate: "É proibido ser indecoroso". Logo alguém indagaria: "Mas o que é isso?" E lá estava Marçal na certeza de que seria indecoroso, como se ele fosse um fardo com o qual os democratas tinham de arcar.
E não! Ele não era. E outros, como ele, que crescentemente virão nesta era dos "palhaços macabros" que brotam nas redes aos borbotões, não serão. Mas, para tanto, será preciso que a gente tenha a coragem de deixar claro que o regime democrático não é aquele em que tudo pode. E que o espírito da tolerância há de cultivar a tolerância zero com os intolerantes.
Sempre há o saudosista dos tempos do "vença o melhor argumento...", como se fosse possível, na já manjada metáfora, jogar xadrez com um pombo na esperança de que triunfará o mais hábil. Não há vitória possível, e ele ainda fará cocô na cabeça do oponente.
Parte da corrosão que sofre a democracia decorre justamente da leniência das instituições com aqueles que querem solapá-la. Nas democracias, o jornalismo não é um ente do Estado, mas tem um aspecto indubitavelmente normativo. Ou não é verdade que estamos, dia sim, dia também, a cobrar retidão dos homens públicos?
Marçal não é o primeiro. Antes dele, houve Bolsonaro. Também não será o último. Se as redes precisam ser reguladas para combater verdadeiras organizações criminosas que operam no espaço virtual, entendo que o jornalismo deve tomar cuidado para que a atividade não se torne caixa de ressonância daqueles que, triunfando, destruirão o regime de liberdades em que existimos — jornalistas e não jornalistas.
Ajudamos a dar corpo a um farsante perigoso. Foi um erro. E sei que vamos repeti-lo muitas vezes. Até quando?
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