Reinaldo Azevedo

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Opinião

Quem transformou o STF em alvo e por quê? Padre Vieira ajuda a responder

Será que eu, Reinaldo Azevedo, acho que o STF sempre acerta, como acusam alguns tontos? Não. E tenho para prová-lo o que já escrevi. Um exemplo? Talvez uma centena de textos contra a proibição da doação de empresas a campanhas. Minha tese, que está em todo canto, desde 2015: vai estimular o caixa dois e incrementar a presença do crime organizado na política porque este tem dinheiro vivo não rastreável. Bingo! Opa! Se pareceu trocadilho, foi sem querer.

Mas eu sou do tipo que sempre presta atenção, também, em quem está fazendo a crítica, não é? Bugalho não passa a ser alho, ou o contrário, a depender da moralidade de quem faz a afirmação. Mas calma lá! A ignorância pauta o de boa-fé, e a safadeza, o de má-fé, ainda que ambos sustentem uma inverdade, certo? E, por óbvio, a bonomia não faz do bugalho uma cabeça de alho. Às vezes, é preciso seguir o provérbio: "Verba mouent, exempla trahunt" — "as palavras movem, os exemplos arrastam."

Meu histórico, em textos, áudio e vídeo, de críticas a decisões de ministros do tribunal é longo. Mas jamais me neguei e me negarei a olhar quem está apontando o dedo contra o tribunal. Ademais, é preciso, diante da crítica, saber quem quer o quê. Exclusivismo moral? Uma ova. Cada um faça o que lhe der na telha, nos limites da lei. Estou no debate como qualquer um.

Sou leitor assíduo de Padre Vieira. Do Vieira racional. No "Sermão do Bom Ladrão", encontra-se o trecho notável sobre as personagens Seronato e Sidônio Apolinar:
"De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Nou cessat simul furta, vel punire, vel facere -- 'Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer'. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só."

É bem possível que Seronato estivesse mesmo ocupado em roubar e em castigar quem roubava. Se, no entanto, Sidônio Apolinar estava apenas atacando a concorrência ao fazer a acusação e ainda com pretensões monopolistas, então a sua crítica era desqualificada.

Posso discordar do conteúdo de decisões monocráticas, por exemplo. Impedir o magistrado de conceder liminar, no entanto, corresponde a vedar o acesso à Justiça de importantes representantes da sociedade. Ademais, a partir de 2022, o ministro que conceder liminar deve submeter a decisão imediatamente ao pleno — quando é cabível —; se mantida, tem de ser reavaliada a cada 90 dias pelo relator ou pelo conjunto dos ministros. Também os pedidos de vista se esgotam em três meses. Foram mudanças importantes da gestão da ministra Rosa Weber, que já deixou a Casa.

Assim, a tal PEC já aprovada pelo Senado e que agora conta com a anuência da CCJ da Câmara é, na prática, inútil, ainda que sua inconstitucionalidade seja patente. Há uma diferença gigantesca entre defender menos decisões monocráticas e mais celeridade e simplesmente proibi-las. Mas é preciso que se olhe, sim, quem está querendo proibir. Qual é o nome do Seronato da hora ou do Sidônio Apolinar? Eu não me calei, por exemplo, quando o ministro Luiz Fux demorou mais de quatro anos para levar a plenário a sua decisão que estendia o auxílio-moradia para todos os membros do Judiciário e do Ministério Público — só para citar um caso, fiel àquele provérbio latino.

A patuscada de querer repetir a "Polaca" — Constituição da ditadura do Estado Novo, de 1937 — na Carta Cidadã de agora, conferindo ao Congresso o poder de revisar decisões do Supremo, é de tal sorte absurda que não requer muitas prosopopeias. A sua inspiração, a exemplo, da original, é o fascismo.

Estava lá no Artigo 96 da Constituição do Estado Novo:
"Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.

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Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.

O Parágrafo Único só caiu com o fim da ditadura, em 1945. A iniciativa cabia ao ditador, mas vejam que a decisão era do Congresso, como agora, só que por dois terços. Os bacanas resolveram trocar por três quintos.

MAS QUEM SÃO ESSES SETONATOS E SIDÔNIOS?
Mas quem são esses que estão a afirmar que bugalho é alho, com o apoio entre envergonhado e descarado de certo colunismo? Os exaltados, os que mais batem bumbo, são os bolsonaristas, os mesmos que defendem anistia para os golpistas e, bem..., para "o" golpista. O Centrão entra com os tamborins...

Os primeiros dão continuidade ao golpismo por outros meios. Os outros estão inconformados desde que o STF votou a inconstitucionalidade do Orçamento Secreto, decisão ignorada sem solenidade pelos valentes — o que corresponde a mandar às favas a Constituição e a determinação judicial em nome do que entendem ser "autonomia entre os Poderes". Nesse caso, dar-se-ia ao Congresso a faculdade da autocracia ou de Poder Moderador. Como o ministro Flávio Dino suspendeu o pagamento de emendas, então os valentes decidiram retaliar. E ainda com ameaças, a exemplo daquela feita por Ciro Nogueira, presidente do PP: cuidado com a composição do Senado a partir de 2027!

Até parece, e assim não é, que um eventual processo de impeachment de ministro do STF estaria imune ao próprio tribunal. Por intermédio de um projeto de lei, querem aprovar o crime de hermenêutica e, de outro, dar ao plenário o poder de pôr para tramitar pedidos de impedimento. Em síntese: querem usar maiorias de ocasião para transformar o Supremo num tribunal também de ocasião. E há quem ouse falar em "segurança jurídica" ao tratar do assunto. Qual segurança? A da Corte da hora? Não é outro espírito, não nestes tempos, da definição de mandatos para ministros.

COMEÇANDO A CONCLUIR
E vamos parar com a conversa torta de que, para combater o golpismo, o STF teve de apelar a decisões excepcionais, mas que seria a hora de começar a voltar à normalidade.

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Não reconheço excepcionalidades. Ou então digam onde estão para que se possa fazer um combate claro à tese ou às teses, seu lá. A única coisa que me pareceu fora da normalidade entre 2019 e 2022 foram as patranhas subversivas do próprio presidente da República, com desdobramentos que chegam até estes dias.

Porque, como é evidente, o golpista ainda não desistiu de atacar as instituições.

As votações no Supremo não são a voz de Deus na Sarça Ardente, de modo que temos de ouvi-las sem nem olhar a fonte de onde emanam. Tudo pode e deve ser discutido na democracia, desde que não se duvide de que as decisões têm de ser cumpridas.

Ademais, não há Justiça possível quando investigados, réus e condenados ambicionam ser juiz dos juízes.

Não há dúvida, como lembrou o ministro Flávio Dino, que o constituinte originário deu, e nem poderia ser diferente, ao Congresso a faculdade de legislar. Mas conferiu ao Supremo, Artigo 102, a guarda da Constituição. E tal guarda não começou e terminou no dia da promulgação da Carta. Trata-se de um fazer-se permanente, e não há hipótese de a Corte ser subsumida pelo Legislativo da hora...

"Ah, mas aí um ministro pode até mandar apagar incêndio?..." É certo que ele não é chefe do Corpo de Bombeiros ou de brigadistas. Sugiro, no entanto, aos indignados que leiam o Capítulo VI da Constituição, intitulado "DO MEIO AMBIENTE", que traz o Artigo 225 e mais sete parágrafos. O primeiro se desdobra em oito incisos. Mais: o meio ambiente é direito fundamental, segundo o Inciso LXXXIII do Artigo 5º. Protegê-lo é uma das tarefas da União segundo o Artigo 23, compartilhada com Estados, DF e municípios (Artigo 24). O substantivo parece no Artigo 129, quando trata das atribuições do Ministério Público; no 145, que trata das tarefas do Sistema Tributário Nacional; no 153, sobre a cobrança de impostos; no 170, sobre a ordem econômica; no 173, sobre a organização de cooperativas; no 186, sobre a função social da propriedade; no 200, sobre o SUS; no 220, vedando a propaganda de produtos lesivos à área. Sim, aqui, os trogloditas hão de reclamar porque "a nossa (deles) liberdade" de pregar a devastação estaria sendo ameaçada...

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CONCLUINDO
Não há boa-fé na turma que chama bugalho de alho. Não há boa-fé nos Seronatos e Sidônios. Não há boa-fé naqueles empenhados em atacar o Supremo menos de um ano e dez meses depois daquele 8 de janeiro de 2023.

Quem está batendo e por quê?

O mundo é feito de escolhas, claro! Alguns preferem se ligar à tradição que leva à "Polaca" e a regimes fascistas. Meu vínculo iengociável é com a democracia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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