Reinaldo Azevedo

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Opinião

STF libera emendas sob condições. Ou: A ineficiência a serviço da corrupção

O ministro Flávio Dino, do Supremo, tinha um de dois caminhos no caso da liberação das emendas parlamentares: ou seguia a Constituição, com suas exigências de transparência no gasto público, ou cedia a uma vertente do gangsterismo, que consiste em torrar bilhões do Orçamento sem que se saiba como ou com quem. Inventou-se um regime único de governo no Brasil, já escrevi isso aqui algumas vezes, e o próprio ministro o destacou. Chegaremos lá.

A DECISÃO
Bem, o ministro havia concedido duas liminares suspendendo o pagamento das emendas: a primeira dizia respeito ainda ao chamado "Orçamento Secreto". A outra, atendendo a uma petição do PSOL, sustou a totalidade dos pagamentos até que se criassem critérios de transparência. Um projeto foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Lula. Mas o ministro o considerou insuficiente para atender ao que vai na Constituição.

Dino destravou o pagamento dessas emendas, mas sob condições que não estão contempladas do texto aprovado pelo Congresso. Já seguiram o seu entendimento os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia. Oito a zero, portanto. Enquanto escrevo, não se manifestaram Luiz Fux, Nunes Marques e André Mendonça.

Os restos a apagar das emendas do relator (o antigo Orçamento Secreto) seguem bloqueados se não houver a indicação de autoria.

Mas o que quer Dino e o que o Congresso aprovou?

EMENDAS DE BANCADA:
Decisão do STF - exigência de autoria
"Tais emendas devem ser deliberadas nas respectivas bancadas e comissões, sempre com registro detalhado em Ata, na qual deve conter, inclusive, a identificação nominal do(s) parlamentar(es) "solicitante(s)" ou autor(es) da(s) proposta(s)"
Texto do Congresso
Não prevê a autoria. Apenas se exige que as emendas atendam "aos interesses do país".

EMENDAS PIX
Decisão do STF - plano de trabalho e fiscalização do TCU
"Quanto às transferências especiais ("emendas PIX" - RP 6), reitero (...) a obrigatoriedade de apresentação e aprovação prévias do plano de trabalho, a ser inserido no Tranferegov.br, sob pena de caracterização de impedimento de ordem técnica à execução das emendas. Desse modo, esclareço que somente é possível liberar novas "emendas PIX" (em exercícios vindouros) com a PRÉVIA aprovação do plano de trabalho pelo Poder Executivo Federal (Ministério setorial) (...)
Tendo em vista a proximidade do final do exercício financeiro, fixo o prazo de 60 (sessenta) dias corridos para que seja sanado o requisito quanto aos planos de trabalhos referentes às emendas previstas para o exercício financeiro de 2024 e anteriores, o que não será, neste momento, impeditivo para a sua execução. Não havendo, contudo, a providência determinada, proceder-se-á a nova suspensão e apuração de responsabilidade civil e criminal.

TCU
"Também fica explicitado que o ciclo completo de fiscalização e da aprovação das contas derivadas de 'emendas PIX' - que deve ser prestada nos mesmos moldes aplicados às transferências com finalidade definida - é de responsabilidade do Tribunal de Contas da União.

Texto do Congresso - parecer que sim, mas não...
Atende, em linhas gerais, as exigências formais de transparência, mas não prevê o plano de trabalho para as emendas deste ano e passadas nem a fiscalização do TCU. Parece um detalhe besta, mas não é. Sem o crivo do tribunal, não se tem um controle federal dos recursos, uma vez que o dinheiro entra diretamente no caixa das Prefeituras.

EMENDAS DE COMISSÃO
Não há divergência importante entre o texto do Congresso e a decisão do Supremo, ressaltando-se que as Emendas de Comissão não podem atender a interesses individuais.

EMENDAS DESTINADAS A ONGS
Decisão do STF- Entidades têm de ter um site com dados públicos
"Reitero a determinação [de] publicação dos valores recebidos de emendas por ONGs e demais entidades do terceiro setor em seus sítios na internet. Sem tal publicação devidamente atestada, a execução das emendas permanece suspensa. A CGU deverá aferir o cumprimento da decisão, com a apresentação de Relatório, no prazo de 30 (trinta) dias corridos, para novas deliberações desta Relatoria."
Texto do Congresso
Não prevê que as ONGs publiquem as decisões em suas páginas na Internet. Notem que Dinos diz "reiterar a determinação". Vale dizer: o STF já atinha assim decidido, e o Congresso ignorou a existência.

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RESTOS A PAGAR DAS EMENDAS DO RELATOR (antigo "Orçamento Secreto")
Decisão do STF - Sem transparência, não haverá retomada do pagamento.
"(...) ficam superados os obstáculos à retomada da execução dos restos a pagar das "emendas de relator", desde que não haja nenhum impedimento legal ou técnico e todos os registros estejam no Portal da Transparência e no Transferegov.br, incluído a identificação nominal do(s) parlamentar(es) "solicitante(s)", vedada a substituição pelo Relator do Orçamento. Isso vale para todos os exercícios (pretéritos e futuros), conforme decidido em 2022. (...) Se houver identificação e publicação da origem e do destino das emendas, no tocante ao ano de 2024 e anteriores, a execução é possível (...). Consequentemente, nas hipóteses em que não houver informações adequadas, a suspensão continuará vigente".

DESARRANJO INSTITUCIONAL E DESCALABRO BILIONÁRIO
A íntegra da decisão de Dino está aqui. Acreditem: o ministro lida com a transparência possível no que se refere ao passado e tenta ajustar as liberações futuras às exigências constitucionais. Mas estamos no reino do despropósito.

Sobre a impossibilidade de mapear a autoria e o destino de emendas do relator do passado, escreve o ministro:
"Cogitando ser verdadeira a reiterada afirmação das advocacias do Senado e da Câmara de que é impossível recompor plenamente o itinerário percorrido para a execução pretérita de parte expressiva das emendas parlamentares, temos a gravíssima situação em que BILHÕES DE REAIS do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos, na medida em que tais informações, até o momento, estão indisponíveis no Portal da Transparência ou instrumentos equivalentes. Registro ser pouco crível que a execução de bilhões de reais do dinheiro público tenha se dado sem ofícios, e-mails, planilhas, ou que tais documentos existiram e foram destruídos no âmbito dos Poderes Legislativo ou Executivo."

Mais um pouco? Ele avança, citando relatório da Controladoria Geral da União:
"Como se verifica, o cenário evidenciado pela CGU, em todos os relatórios apresentados, é de descumprimento dos requisitos constitucionais de transparência e de rastreabilidade relativamente à execução das emendas parlamentares de todas as modalidades (RP 6, RP 7, RP 8 e RP 9). Os relatórios - que ora constituem prova nos autos - confirmam que a elaboração e a execução de parcela relevante do orçamento público ocorrem com a naturalização do desvio de balizas normativas, a partir de uma engrenagem flagrantemente inconstitucional, montada especialmente a partir do ano de 2019, quando os bilhões de reais alocados pelo Congresso Nacional foram se multiplicando em escala geométrica, simultaneamente a descontroles e opacidades, quadro que se estende à Legislatura atual.

É precoce afirmar - e nem se constitui objeto específico destas ações (processos estruturais) - que houve ou há crimes em razão da esdrúxula situação constatada. Mas é de clareza solar que JAMAIS HOUVE TAMANHO DESARRANJO INSTITUCIONAL COM TANTO DINHEIRO PÚBLICO, EM TÃO POUCOS ANOS. Com efeito, somadas as emendas parlamentares entre 2019 e 2024, chegamos ao montante pago de R$ 186,3 bilhões de reais."

REGIME ÚNICO
Vamos ver a que mecanismos recorrerá o Congresso para driblar uma vez mais a Constituição. Com acerto, observa o ministro Dino:
"Não é excessivo afirmar que hoje, no mundo, há os países A) presidencialistas; B) parlamentaristas; C) semipresidencialistas; e D) o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das Nações."

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É singular porque, ainda que houvesse um sistema eficaz de prestação de contas, continuaríamos a ter o Congresso, por intermédio do emendismo, a usurpar competência que é do Executivo. Adicionou-se a tal aberração uma outra: dados os mecanismos para driblar a transparência, o Legislativo fica com mais de 20% do que sobra de recursos discricionários para o Executivo, mas não tem — ou não tinha, vamos ver... — de prestar contas pela destinação desse dinheiro nem pela eficácia do desembolso.

COMO É NOS OUTROS PAÍSES
Referindo-se a estudo de Hélio Tollini, ex-consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados, e Marcos Mendes, economista do Insper, Dino transcreve:
"Nos países membros da OCDE, os parlamentos, em geral, têm a função de discutir as prioridades nacionais e de fiscalizar a execução do orçamento, e não de interferir diretamente na sua elaboração, tampouco na execução do orçamento, destinando recursos para as bases eleitorais dos parlamentares, como ocorre no Brasil.

Não nos parece que essa grande alavancagem do Legislativo sobre o orçamento seja justificada pelo fato de o Brasil ter um regime presidencialista. Afinal, na nossa amostra de 11 países, temos 4 que são presidencialistas (EUA, México, Chile e Coreia do Sul) e um semipresidencialista (França). Em nenhum deles o poder dos parlamentares para emendar o orçamento é tão grande, em especial no que diz respeito a emendas para enviar recursos para bases eleitorais, que é o cerne do processo de alteração orçamentária no Brasil.

Tampouco se pode dizer que a escalada das emendas reflete um reequilíbrio de forças entre Poderes que contribua para fortalecer a democracia. O conhecimento acumulado sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro indica que o fortalecimento excessivo do Legislativo, do qual o aumento das emendas é parte, tende a levar a instabilidade política e crises.

Em um sistema reconhecido por eleger presidentes sem maioria no Congresso, por ter um número elevado de partidos com representação no legislativo, baixa diferenciação ideológica entre partidos, alto grau de individualismo dos parlamentares na condução dos seus mandatos e interesse destes em beneficiar suas bases eleitorais e seus financiadores de campanha, é inevitável que um alto poder de emendar o orçamento gerará pulverização de recursos em pequenos itens de despesa, priorização de projetos políticos individuais em detrimento de políticas públicas de interesse geral, uso de recursos federais para políticas que deveriam ser financiadas pelos governos locais, rigidez da despesa induzindo desequilíbrio fiscal crônico e propensão à corrupção."

E é precisamente o que temos. Atenção, caras e caros: com absoluta transparência, o modelo em curso já não presta. Sem ela, o que se tem é um assalto multibilionário aos cofres públicos. Temos a ineficiência a serviço da corrupção.

Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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