Reinaldo Azevedo

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Opinião

Internet: Constituição e Código Civil impõem responsabilidade a 'big techs'

No dia 8 de janeiro de 2023, a invasão das respectivas sedes dos Três Poderes foi transmitida ao vivo, "do lado de dentro", pelos golpistas. Enquanto depredavam os prédios, materializando o intento de destruir as instituições, faziam pregações explícitas em favor da deposição de Lula e exigiam uma intervenção militar. As redes serviram ainda para aglutinar os ocupantes das áreas adjacentes aos quartéis. Elas eram o principal instrumento do, por assim dizer, "ânimo da tropa". As 884 páginas do inquérito do golpe evidenciam não haver um hiato entre o "putschismo" de Jair Bolsonaro e os, vamos dizer, "insurgentes" contra a democracia. Ao contrário: os golpistas graúdos tinham o controle do movimento. O general Mário Fernandes chegou a tratar da questão com o próprio Bolsonaro, como relata a Mauro Cid.

As redes, obviamente, sabiam de tudo. Não era necessário que um juiz determinasse, num domingo, que a transmissão fosse interrompida, por exemplo, para que percebesse que as plataformas haviam se transformado em instrumentos para o cometimento de crimes graves. Tanto pior quando conhecemos a lógica a que servem os algoritmos. As campanhas de ódio engajam — e, pois, remuneram muito mais o promotor do desatino, mas também o potentado que abriga a página ou o perfil. Não existem nem almoço nem hospedagem gratuitos. Não se trata de uma simples parceria. Há, de fato, sociedade na distribuição dos benefícios financeiros.

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Imagem: Paula Villar/Jornal da USP

Bem, se alguém esperava que, depois de tudo, as redes permaneceriam imunes, impunes e incólumes a um processo de regulamentação, dizer o quê? Apostaram que o Supremo, que dá a palavra final sobre a Constituição e as leis em caso de confronto de visões de mundo, escolheria o caminho da anomia, da desordem e do suicídio institucional. Deu-se ao Congresso a chance de cumprir a sua obrigação. A soma da extrema-direita com a extrema burrice resultou em nada. Então...

E aqui não se cuida de afirmar que, se o Congresso não legisla, que o faça o Judiciário. Seria uma simplificação tola do que está em curso. Há direitos e garantias fundamentais na Constituição que estão sendo permanentemente agredidos pela ausência de uma legislação que regule as redes — e uma corte suprema não pode compactuar com a promoção do desrespeito à ordem legal. Como foi provocada a se manifestar em quatro casos concretos, cabendo-lhe, pois, decidir, não existe a hipótese da omissão.

MARCO CIVIL, CONSTITUIÇÃO E CÓDIGO CIVIL
Onde está o "é da coisa" do debate? No Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que viola a Constituição e o Código Civil. Reproduzo:
"Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."

O "intuito" pode ser nobre; a consequência é desastrosa.

Esse artigo viola o fundamento da própria Constituição, cuja síntese, quero crer, está até excessivamente detalhada no Artigo 5º. O caput resume, para depois se estender em minudências:
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:"

E se seguem 74 incisos e quatro parágrafos.

O "neminem laedere" é um dos pilares da Constituição. Tradução literal: "a ninguém ofender" -- vale dizer: ninguém tem licença para causar danos a terceiros. O Código Civil Brasileiro, no Artigo 186, expressa o significado desse valor:
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito"

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Tal fundamento se completa no Artigo 927 do mesmo código, com seu eloquente Parágrafo Único:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

Em síntese:
-- a Constituição consagra o princípio da responsabilidade;
-- o Código Civil assegura que ninguém está livre de responder por danos causados a terceiros, bastando, note-se, que haja nexo de causalidade, pouco importando a intenção ou disposição do agente.

A ideia, ínsita ao Artigo 19 do Marco Civil da Internet, de que a não responsabilização civil é precondição da liberdade de expressão é uma aberração e uma armadilha na qual os progressistas caíram na década passada. E na qual as "big techs" e seus lobistas, disfarçados de ONGs apenas dedicadas a ideias celestes, insistem ainda hoje. O argumento é indemonstrável. Até porque não existe nenhuma outra atividade no Brasil que esteja livre da responsabilização civil em caso de dano a terceiros. As "big techs" reivindicam essa condição com base em quê? Quanto aos lobbies, bem, sei por que o fazem, né? É uma profissão antiga essa...

A fulcro do debate nada tem a ver com liberdade de expressão. Trata-se de temor de natureza financeira. Até porque os "hóspedes" das "big techs" já respondem civil e criminalmente por aquilo que veiculam. E já sabemos que "hospedar conteúdo" constitui a razão de ser do negócio dessas gigantes.

O ARTIGO 21
No debate, costuma-se ignorar o Artigo 21 do Marco Civil. Lá se lê:
"Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo."

Perceberam? Para determinados temas, uma simples notificação basta para gerar a responsabilidade também dos provedores. Então pode ser assim com conteúdos que digam respeito à violação da intimidade, mas não com aqueles que promovem em tempo real uma tentativa de golpe de estado? Tenham paciência!

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CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
As empresas dispõem de tecnologia e ferramentas para exercer o dever do cuidado. Se produzissem suco de laranja e comprassem a fruta de terceiros, não poderiam acusar apenas seus fornecedores se a mercadoria vendida nas gôndolas dos supermercados provocasse, sei lá, diarreia nos consumidores -- ainda que uma investigação sobre a contaminação pudesse alcançar também seus parceiros.

Se escolheram esse negócio — e que negocião! —, não há como se eximir, por princípio, da corresponsabilidade por aquilo que está sendo veiculado, se restar evidente, como evidente era 8 de janeiro de 2023, que não havia como ignorar o que estava em curso. E não apenas naquele dia. Houve uma escalada golpista, e as redes potencializaram os intentos criminosos.

CONCLUO
Digam-me alguma outra atividade no país que esteja, por definição, livre da responsabilização civil, e então direi: também ela, junto com as "big techs" têm de se subordinar à lei. E o Poder Judiciário, quando provocado, existe para isso.

É falácia de lobistas a conversa de que o Supremo estaria legislando. Com efeito, o Legislativo não legislou. Mas não será por isso que o Judiciário deve deixar de julgar.

Os inconformados que leiam a Constituição e o Código Civil.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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