Gleisi, 'essa mulher bonita', 'superinterpretação' e o esgoto bolsonarista
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Se não houver nenhuma atrapalhação, vamos acompanhar, o governo Lula lançou ontem um programa poderoso, desde que usado com prudência. O empréstimo consignado, com desconto em folha, agora para empregados do setor privado, pode contribuir para baratear o crédito, uma das formas de se exercitar, sim, a democracia, como lembrou o ministro Fernando Haddad (Fazenda). Em meio a tanta coisa relevante, no primeiro dia de vigência das Tarifas de Trump contra o Brasil, uma fala do presidente chamou a atenção da imprensa e despertou a reação do esgoto moral bolsonarista. Chegarei lá.
Num dado momento, Lula resolveu exaltar a sua relação com o Congresso e afirmou o seguinte:
"E é muito importante trazer aqui o presidente da Câmara e presidente do Senado. Porque uma coisa, companheiros, que eu quero mudar, estabelecer uma relação com vocês -- E POR ISSO EU COLOQUEI ESSA MULHER BONITA PARA SER MINISTRA DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS --, é que eu não quero mais ter distância entre vocês. Eu não quero que alguém ache que o presidente da República está distante do presidente da Câmara, está distante do presidente do Senado. Não! Nós temos que mostrar para a sociedade que nós somos, em lugares diferentes, pessoas com o mesmo compromisso de defender a soberania deste país, defender o bem-estar do povo brasileiro e melhorar a vida de todo mundo. É assim que nós vamos reestabelecer a nossa relação".
Vou aqui discordar de modo claro e inequívoco da leitura que alguns fizeram da frase intercalada por Lula em seu discurso, que vai em destaque no trecho transcrito. Apontaram uma manifestação machista e uma associação imprópria — e seria se assim fosse — entre o papel que Gleisi Hoffmann desempenhará e sua aparência física. Há amigas queridas e gente que respeito que avançaram por aí. É um erro.
Seja na expressão literal do presidente, seja na sua relação histórica com Gleisi, nada há que sugira que ele a escalou para tarefas cruciais, em momentos verdadeiramente agônicos do partido e do governo, em razão de sua aparência física. As acusações de machismo — e vamos ver a derivação teratológica que tal ilação assumiu no vomitório bolsonarista — me parecem decorrentes de um caso de superinterpretação que induz uma super-reação. No livro "Interpretação e Superinterpretação", Umberto Eco nota: "Pode ser um pouco rude eliminar o pobre autor como algo irrelevante para a história de uma interpretação".
VAMOS VER
Quais adjetivos que Lula poderia ter empregado em lugar de "bonita" sem que gerasse estranhamento? E, suponho, o problema não está no substantivo porque, até onde acompanho, reivindicam-se mais mulheres no primeiro escalão. Vamos lá: "petista", "leal", "severa", "experiente", "exigente", "disciplinada", "determinada", "trabalhadora", "dedicada", "gentil"... A uma mulher se podem atribuir todas as qualidades, parece, que a fortaleceriam, em pé de igualdade, com os homens. O que a fragilizaria então? Ser chamada de "bonita"?
E não! O presidente não está a dizer — e seria "rude eliminar o pobre autor como algo irrelevante na história da interpretação" — que o trabalho de Gleisi será facilitado porque ele a considera ou porque ela é bonita. Isso não está lá. Leia-se o conjunto da fala. É falso que ele tenha estabelecido ali uma relação de causalidade. Cuidado! Essa é a leitura abjeta que fez um discípulo do "Coiso"... Vivemos, é fato, dias um tanto complexos. Recomendo que os homens se abstenham de fazer comentário sobre a aparência de profissionais mulheres em qualquer ramo de atividade, exceto naqueles em que determinados atributos são importantes para o exercício profissional. Pode ser um excesso de cuidado, mas é o mais prudente. Posto isso, avancemos.
OS LEGADOS DE LULA E TAREFAS DE GLEISI
O autor não é irrelevante na história da interpretação, certo? Lula tem dois legados: um deles são os seus mandatos, que passam, embora deixem uma herança. O outro é o PT, com a vocação da permanência. Ele a fez presidenta no momento mais delicado da história da legenda, em 2017, quando se fez necessário atravessar o deserto. No ano seguinte, foi preso e permaneceu 580 dias encarcerado. Sob o comando de Gleisi, o petismo disputou o segundo turno em 2018, resistiu à voragem fascistoide e reconduziu a maior liderança operária da história do Brasil à Presidência da República. Bastam uma frase intercalada e um adjetivo, uma miserável palavra, para reescrever a história? Não. Se tivesse dito apenas "eu coloquei essa mulher", não haveria margem para leituras enviesadas. "Ser mulher" pode, ainda bem! "Ser mulher bonita" é que o X do problema.
Mas há mais. No dia 28 do mês passado, veio a público a informação de que era a deputada a escolhida para o ministério das Relações Institucionais, o cargo político mais importante do governo. Não foram poucos os colunistas e as colunistas que viram na escolha uma "guinada de Lula à esquerda". O presidente teria optado por uma petista dura, irascível, "inimiga de Fernando Haddad". Ela só não foi chamada de "santa" e de "bonita". É possível, diga-se, que muito machismo e muita misoginia, inclusive na pena de mulheres, tenham sido recobertos por manifestações de antipetismo explícito.
Mas que se note — e convém não ser rude com o autor, colocando-o na interpretação: Lula escala a "mulher bonita" para a dificílima tarefa da coordenação política naquele que é, segundo a quase unanimidade dos analistas, o momento mais difícil dos seus três mandatos. Quantas foram as colunas que já decretaram a derrota do presidente em 2026 e a vitória da direita? Os extremistas de centro estão verdadeiramente obcecados com essa ideia. Em certa medida, os ataques dirigidos a Gleisi, por ocasião da sua indicação, buscavam descaracterizar até a sua condição de mulher: Lula teria escolhido um "quadro" para tentar impor a linha justa do partido.
Lembram-se dessa crítica? O presidente nomeou aquela que considera um de seus melhores quadros ou a "mulherzinha" do fabulário machista? Convém pensar.
A HORA DOS ABJETOS
Nas milícias digitais bolsonaristas, também se fez uma leitura, digamos, de "gênero", sexualizada, da fala do presidente. E, por óbvio, isso se deu à moda deles.
O deputado Gustavo Gayer (PL-GO) escreveu:
"É impressão minha ou LULA ofereceu a Gleisi Hoffmann como um cafetão oferece sua funcionária em uma negociação entre gangues?"
Como ele é quem é, achou pouco. Prosseguiu, aí evocando também o deputado Lindbergh Farias, marido de Gleisi:
"E aí @lindberghfarias? Vai mesmo aceitar o seu chefe oferecer sua esposa para o Hugo Motta e Alcolumbre como um cafetão oferece uma GP?
Sua esposa sendo humilhada pelo seu chefe e vc vai ficar calado?"
Tinha ainda dirigido uma ofensa, com conotação sexual, a Davi Alcolumbre (União-AP), presidente do Senado. Mas, corajoso como é, apagou.
O deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Câmara, se manifestou:
"Desprezíveis os insultos do deputado Gustavo Gayer contra o Presidente @LulaOficial, a Ministra @gleisi, o Presidente do Senado, @davialcolumbre, e o Líder do PT, @lindberghfarias.
A eles, manifesto minha total solidariedade.
É preciso dar um basta definitivo em comportamentos como o desse Senhor, que desonra e desmoraliza o parlamento brasileiro.
O decoro parlamentar é uma regra que impõe limites para proteger o Congresso Nacional da degradação moral.
Tendo em vista a gravidade desse fato, vou requerer ao presidente @HugoMottaPB e a todos os líderes dos partidos desta Casa, o apoio necessário para que seja aberto processo no Conselho de Ética, a fim de apurar e punir o desonroso parlamentar.
Achando-se muito engraçado e safo, Gayer respondeu:
"Deixa eu ver se eu entendi.
Lula humilha e trata a Gleisi como um objeto. Ninguém do PT sai em defesa dela. Eu saio em defesa da Geisi condenando a fala do LULA.
Todo o PT parte pra cima de mim me acusando de machismo.
É isso mesmo?"
Define o Código de Ética da Câmara:
Art. 4º Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:
I - abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § 1º);
Art. 5º Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:
II - praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa;
X - deixar de observar intencionalmente os deveres fundamentais do Deputado, previstos no art. 3º deste Código.
Entre os deveres fundamentais, previsto no Artigo 3º, lê-se:
VII - tratar com respeito e independência os colegas, as autoridades, os servidores da Casa e os cidadãos com os quais mantenha contato no exercício da atividade parlamentar, não prescindindo de igual tratamento;
É claro que Gayer está abusando de uma prerrogativa — no caso, a imunidade parlamentar, prevista do Artigo 53 da Carta. Transforma garantia constitucional num instrumento para atacar a honra da ministra, do presidente e de um colega,
Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara, tem de decidir se quer presidir uma das Casas do Congresso Nacional ou um bando de arruaceiros.
ENCERRO
Outros extremistas da direita fanfarrona referiram-se à fala de Lula. Não que estivessem se colocando como defensores das mulheres, é claro! Até porque o ataque não aconteceu. Seu prazerzinho perverso era outro: regozijavam-se com o que, objetivamente, não tinha acontecido -- uma manifestação machista de Lula contra Gleisi -- com a mesma satisfação com que um perverso assiste à queda de um puro. Era como se dissessem: "Lula é machista como nós", o que, como está demonstrado, é falso. O contexto prova que é. A história prova que é.
Convém não se misturar com essa gente, ainda que seja por alegados bons motivos. Até porque os motivos jamais serão bons.
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