Ainda que vacina fosse raiz do Bolsonaro réu por golpe, o que mudaria? Nada
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Impressiona a facilidade com que a turma de Jair Bolsonaro se aproveita da ignorância de boa parte da imprensa sobre questões legais, especialmente quando dizem respeito a direito penal. Mais: como os bolsonaristas exercem severa vigilância da imprensa, impera em certos nichos uma espécie de má consciência a dizer: "Você é culpado ou culpada de se alinhar com teses que a fascistada diz serem de esquerda; prove que não é um esquerdista e evidencie a sua isenção entre a democracia e os fascistoides". E aí começam a prosperar absurdos na boca e na pena de quem tem o dever ético de informar, de esclarecer, mesmo quando opina. Nota, como se necessária fosse: o meio do caminho entre democracia e fascismo é a morte da democracia e o triunfo do fascismo de bons modos — dentro do possível, claro!
Paulo Gonet, procurador-geral da República, pediu o arquivamento da investigação que apura o eventual envolvimento de Jair Bolsonaro na fraude de registros de vacinação. Afirma Gonet que não se encontraram provas autônomas que corroborassem a delação de Mauro Cid, segundo quem, destaque-se, foi o então presidente a lhe solicitar a inclusão de dados falsos em registro oficial: "Somente o colaborador afirmou que o presidente lhe determinara a realização do ato", observando que a lei "proíbe o recebimento de denúncia que se fundamente 'apenas nas declarações do colaborador'; daí a jurisprudência da Corte exigir que a informação do colaborador seja ratificada por outras provas, a fim de que a denúncia seja apresentada."
É isso mesmo. É o que dispõe o Artigo 3º-A da Lei 12.850, a saber:
"Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos."
Essa disposição foi acrescentada à lei em 2019, justamente para impedir os abusos cometidos pela Lava Jato. Delação, em suma, não é prova. Segundo o procurador, não apareceu nenhum outro elemento que indicasse que o pedido partira de Bolsonaro: "Essa solicitação [de Bolsonaro] é elemento de fato central para que a conduta típica, crime de mão própria, lhe possa ser imputada".
Acrescenta:
"Com relação, especificamente, a Jair Bolsonaro, foi inserido, em 21.12.2022, dado ideologicamente falso sobre a sua imunização e de filha menor no sistema SI-PNI do Ministério da Saúde. As informações foram excluídas do sistema menos de uma semana depois, em 27.12.2022. Não há indício de que o certificado haja sido utilizado, tendo sido dito que fora inutilizado pouco depois de impresso".
Gonet também pediu que se arquive a investigação contra o deputado federal Gutemberg Reis (PMDB-RJ).
Antes que chegue ao ponto lá do primeiro parágrafo, uma dúvida: agora acontece o quê? Alexandre de Moraes, o relator, pode atender ao pedido da PGR e mandar arquivar. Acredito que fará isso. Também pode pedir novas diligências. O que pode? Obviamente, não tem como pôr em votação a abertura de ação penal porque o Órgão acusador está a dizer que não é o caso. Vejamos.
E Mauro Cid? Bem, ele cometeu um crime que está documentado, não é? Observem que o procurador-geral não está dizendo que houve um engano: "Ah, não aconteceu nada..." Aconteceu. O crime de inserção de dados falsos em documentos oficiais foi cometido por Cid. A questão está contemplada em seu pacote de delação.
SERÁ QUE BOLSONARO NÃO SABIA?
"Olhem aí, estão vendo? Não houve crime nenhum e, mesmo assim, prenderam Cid..." Esse é o alarido das redes. Epa! Quem disse que não houve? O crime está mais do que documentado. Tanto é assim que o tenente-coronel segue implicado. E esse é um de seus, digamos, feitos que integram o pacote de benefícios que negociou, que pode ou não ser concedido.
Não estou no fundo da consciência de Gonet. Considerando, no entanto, seu padrão intelectual, acho que ele tem dificuldade de acreditar — a exemplo deste escriba e de qualquer pessoa razoável — que um militar graduado, com excelente formação profissional, treinado na disciplina e no respeito à hierarquia, iria proceder à falsificação de dados da vacinação do presidente de sua filha sem que este soubesse. Não sei qual é a impressão ou certeza íntima do procurador-geral, mas tenho pra mim que ele também deve achar essa hipótese muito pouco provável. A gente pode, na mesa do bar, dizer o que der na telha sem medo de errar porque quase ninguém tem medo de errar na mesa do bar, certo? "Ora, como é possível que Bolsonaro não soubesse?"
Não havendo, no entanto, e assim quer a lei, nenhum outro elemento de prova autônoma além da delação — e é isso o que nos diz Gonet —, só lhe resta pedir o arquivamento. Você até pode dizer que essa exigência do devido processo legal acaba contribuindo para que muitos pilantras se safem da Justiça. E eu devo lhes dizer: isso é verdade. Acontece que esse mesmo fundamento impede que muita gente inocente acabe sendo punida por aquilo que não fez.
O que estes tempos afascistados não compreendem sobre o devido processo legal é que não existe troca justa num regime que, sob o pretexto de ser implacável com os culpados, acaba punindo inocentes.
AGORA OS MANIPULADOS
"Mas esperem: esse caso das vacinas não está na raiz da prisão de Mauro Cid, de mandados de busca de busca e apreensão, e essa não é uma espécie de pré-história que contribuiu para deslindar a arquitetura golpista?" A resposta é "sim", embora a tramoia golpista, por óbvio, não fosse nem causa nem consequência da fraude do documento. Segue a pessoa prudentemente curiosa: "Se, no entanto, o procurador-geral chegou à conclusão de que não há evidência de crime de Bolsonaro naquele registro, além da afirmação do Mauro Cid, isso não compromete todo o resto?"
Bem, essa é a versão que o golpismo está soprado aos ouvidos, ou às orelhas, daquela má consciência a que aludi no primeiro parágrafo. Que diabo de ilação é essa? Em primeiro lugar, o crime de Mauro Cid, no caso do registro das vacinas, foi comprovadamente cometido. Se, no curso dessa investigação, a Polícia Federal desvendou um circo de horrores, com atrações muito mais horripilantes do que a fraude em registro de vacina, os investigadores deveriam ignorá-los? Isso é uma sandice.
Imagine um policial que estivesse investigando o roubo de um caminhão carregado de Chicabon — aquele sorvete que a viúva de um texto de Nelson Rodrigues chupava à tarde, no portão, depois de ter enterrado o marido de manhã — e tropeçasse, vamos dizer, num homicídio ou em tráfico de drogas ou de armas... Deveria fazer o quê? "Ah, vou cuidar dos picolés".
DIFERENTE
Na manifestação enviada a Moraes, Gonet afirma:
"A situação destes autos difere substancialmente da estampada na PET 12100, em que provas convincentes autônomas foram produzidas pela Polícia Federal, em confirmação dos relatos do colaborador".
Alguém poderia perguntar:
"Mas você não acha, Reinaldo, que, se Cid falou a verdade sobre tanta coisa em relação à tramoia golpista, referendada por dados colhidos pela investigação, ele deve ter falado a verdade também nesse caso, quando disse que Bolsonaro lhe encomendou que fraudasse seu cartão e o da filha?" Eu acho que sim, já disse.
Ocorre que aquilo que acho ou deixo de achar não leva ninguém a ser processado, condenado etc. Com Gonet é diferente. Não há dúvida de que ele é um homem poderoso. Ocorre que, como procurador-geral, é muito menos livre para dar opiniões do que eu, que não tenho poder nenhum.
Em silêncio, fez a coisa certa outra vez.
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