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Rubens Valente

'A proposta do governo Bolsonaro ao índio é o genocídio', diz subprocurador

Abrigo de indígenas em Belém - ONG SóDireitos/Divulgação
Abrigo de indígenas em Belém Imagem: ONG SóDireitos/Divulgação

Colunista do UOL

19/04/2020 16h53Atualizada em 19/04/2020 20h09

"É um 19 de Abril amargo porque a vida indígena nunca esteve passando por tanto risco, nunca esteve tão periclitada, desde que os portugueses chegaram por aqui. Infelizmente temos um presidente [Bolsonaro] que não concorda com o estatuto indígena, acha que não tem que demarcar terra e que os indígenas devem ser integrados. Isso será uma questão de vida ou morte para eles."

Na data em que o calendário oficial celebra o Dia do Índio, o subprocurador-geral da República Antonio Carlos Bigonha, 55, coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Ministério Público Federal), vinculada à PGR (Procuradoria Geral da República), em Brasília, vê em curso um processo de "retrocesso ao período pré-democrático e pré-constitucional". Em fevereiro, Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto pelo qual pretende autorizar inúmeras atividades econômicas em terras indígenas, como mineração e agricultura até com o uso de sementes transgênicas.

"Falo isso porque o presidente da República disse que não vai demarcar nenhum milímetro de terra e quer transformar o índio num parceiro de ruralistas. Foi justamente o modelo adotado pelo governo brasileiro e que dizimou o índio até a Constituição de 1988. O SPI [Serviço de Proteção ao Índio, que existiu de 1910 a 1967] tinha por objetivo transformar o indígena em 'cidadão' e trabalhador rural. O atual avanço da fronteira agrícola, que atua com a valorização dos commodities, está trazendo de volta esse paradigma, com muita força. Mesmo que seja uma ideologia de boa fé, ela traduz um vetor de genocídio indígena. Porque o integracionismo pressupõe um contato com a sociedade não indígena, o que conduz à morte dessas civilizações."

Bigonha considera este Dia do Índio "o mais grave" desde a Constituição de 1988. O subprocurador diz que na época do Descobrimento, no século 16, o Brasil contava cerca de 4 milhões de indígenas. O número foi desabando, com massacres e epidemias de várias doenças trazidas pelos não indígenas, até chegar a cerca de apenas 220 mil indígenas em meados dos anos 80. A partir da promulgação da Constituição, em 1988, que assegurou direitos indígenas de forma inédita no país, principalmente a demarcação e usufruto das terras tradicionais, a população passou a crescer ano a ano, atingindo, em 2020, algo em torno de 1 milhão de indígenas.

Para Bigonha, como as garantias constitucionais dos indígenas estão sob ameaça no governo Bolsonaro, o grande risco é o retorno à fase pré-Constituição. "Se o presidente da República retrocede no estatuto constitucional, ele está, ainda que involuntariamente, promovendo uma política genocida. Que ao longo do século provocou a quase extinção da população indígena. É uma constatação muito triste, que faz esse 19 de Abril um dia de grande reflexão. Talvez de lá para cá seja o dia mais grave da nossa causa indígena."

Pandemia

Além das mudanças na legislação, os indígenas agora se veem pressionados na pandemia do novo coronavírus, que já havia matado três indígenas e contaminado 27 no país até a sexta-feira (17), última vez que os números foram atualizados. Há duas semanas, Bigonha participou de uma reunião entre membros da Frente Parlamentar Indigenista do Congresso, o presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, e outros membros do governo.

Na conversa, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde, e a Funai prometeram ações para permitir o isolamento social dos indígenas, além de reforçar o atendimento à saúde. Mas quando o presidente da Funai se manifestou sobre segurança alimentar, Bigonha disse que ficou mais uma vez clara a agenda do governo.

"A intervenção dele foi toda para elogiar a 'parceria' dos indígenas parecis [em Mato Grosso] com produtores rurais, que é justamente a assimilação, o modelo integracionista. Se isso for adotado em larga escala no país, como me parece que pretende o governo, pela Funai, é o integracionismo genocida. Fora do contexto da pandemia, é uma pretensão muito discutível dos pontos de vista histórico e jurídico. Mas no contexto da pandemia é uma agenda de morte para os indígenas."

"Falávamos da segurança alimentar, que é importante para que os indígenas possam subsistir durante o isolamento social. Aí o presidente da Funai disse que 'os parecis são um modelo, eles exploram a soja, e agora estão pagando R$ 1,6 mil para cada indígena. Esse é o modelo que é o sonho para os indígenas, a autonomia indígena'. Mas transformar o índio em agricultor é matar o indígena. Temos hoje um completo descompasso entre as necessidades indígenas e a direção da Funai", disse Bigonha.

O subprocurador disse que o MPF continuará fazendo as gestões "perante a Justiça e o Executivo", mas a responsabilidade sobre os rumos da política indigenista no contexto da pandemia "recai sobre os ombros da Funai e sobretudo do presidente da República. Eles terão que assumir a responsabilidade, tomar as providências que o contexto gravíssimo requer, ou responder pelas consequências. O MPF pode muito mas não pode tudo. A palavra está com o Executivo e a ação também. Ele é que dispõe dos recursos".

Durante a semana passada, subprocuradores e procuradores de primeira instância reagiram a uma decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras, que pediu aos ministros do governo Bolsonaro que lhe encaminhassem as recomendações que têm recebido de membros do MPF sobre a pandemia.

Além desse embate, outra área de tensão entre Aras e membros do MPF é o tema da proteção aos direitos do meio ambiente e das minorias, como os indígenas. Em diversas manifestações, Aras fala sobre um compromisso da sua gestão na PGR com a pauta econômica do país.

"A gente deve ter parcimônia com o que o diz o PGR sobre os índios e populações tradicionais porque, ao contrário dos outros procuradores-gerais anteriores, ele não entende dessa matéria. Eu sou um neófito, entendo pouco, mas ele não entende praticamente nada de direitos indígenas. Daí essa incompatibilidade que ele enxerga entre a economia do homem branco e as atividades dos indígenas. Não há dicotomia nenhuma. A Constituição não estabelece essa dicotomia", disse Bigonha.

'Melhorando de vida'

Neste domingo (19), o presidente da Funai, Marcelo Xavier, divulgou um vídeo sobre o Dia do Índio. "Como presidente da Fundação Nacional do Índio, venho hoje parabenizar todos os indígenas que fazem do Brasil um país melhor. Ao todo são cerca de 1 milhão de índios, de 305 etnias, que falam 274 línguas, uma riqueza cultural inestimável. Muitos deles vêm se destacando com atividades sustentáveis, como a produção de café, de castanha e grãos. Com isso, estão gerando renda para as suas comunidades e melhorando de vida, o que é uma ótima notícia."

"Em 2020, como todos sabem, estamos enfrentando uma pandemia, o coronavírus, que terá reflexos na vida de todos os brasileiros. A Funai está adotando medidas urgentes e necessárias para que os indígenas estejam protegidos. Estejam certos disso", diz o presidente da Funai, no vídeo.

PGR

Procurada para comentar as menções a Aras, a PGR afirmou, em nota, que a Constituição "reconhece os direitos dos indígenas brasileiros e lhes confere garantias comuns a todos os cidadãos e as que lhes são inerentes por natureza e singularidade".

O órgão afirmou que "nesta gestão da PGR resolvemos litígios de 40 anos envolvendo a comunidade ashaninka, no Acre, e estamos em vias de solucionar o conflito dos guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul, e de outros grupos no Amazonas. A PGR vem cumprindo a Constituição sem viés partidário".

"O Dia do Índio são todos os dias, para gáudio das nossas raízes culturais, e todos têm o direito de participar da tomada das decisões políticas, como cidadãos, inclusive velando pelos grupos isolados", diz a nota.