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Inquérito detalha apoio de militar da Funai a arrendamento de área indígena
O inquérito aberto pela Polícia Federal para investigar o arrendamento de parcelas da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, detalha como a coordenação da Funai em Ribeirão Cascalheira (MT) organizou a cobrança dos fazendeiros arrendatários e elaborou uma agenda para "conferir as marcas de gado", "definir local para o curral" e "medir pastos", conforme instruções fotografadas pela PF numa tabela pendurada na parede da própria coordenação do órgão indigenista.
Por outro lado, a PF desencadeou a operação no último dia 17, com autorização da Justiça Federal e apoio do MPF (Ministério Público Federal), sem antes trazer para os autos qualquer explicação das lideranças indígenas sobre o destino dos recursos pagos pelos fazendeiros. O que colaborou, segundo a defesa do cacique Damião Paridzané, para a "falsa conclusão", agora amplificada em redes sociais por anti-indígenas, de que ele seria o beneficiário pessoal dos arrendamentos.
Damião - um renomado líder indígena que durante décadas encabeçou a luta no Judiciário e no Executivo para a demarcação da terra Marãiwatsédé, após um despejo sofrido pelos xavantes durante a ditadura militar que resultou na morte de dezenas de indígenas - só foi ouvido pela PF após a deflagração da operação, quando teve a chance de falar sobre o destino dos recursos.
'Dinheiro é para toda a comunidade', diz advogado de cacique
De acordo com a defesa de Damião, os recursos que chegavam à conta do cacique eram divididos depois entre 13 outros caciques, cada um responsável por uma aldeia na terra indígena, e tudo voltado basicamente para a aquisição de alimentos. O advogado de Damião, Lélis Bento de Resende, ponderou que a PF poderia ter facilmente comprovado o destino dos recursos se tivesse ouvido casas de comércio nas cidades da região (Bom Jesus do Araguaia, Alto da Boa Vista e Ribeirão Cascalheira), pois as compras de alimentos eram amparadas por notas fiscais e as entregas nas aldeias chegavam a mobilizar carretas, devido à grande quantidade de comida.
"Eram fardos e fardos de arroz, comida, basicamente. Tudo o que o cacique Damião tem feito pela comunidade é para prover a subsistência dos índios, não deixar passarem fome. Hoje em dia o número de indígenas que são internados e que precisam de auxílio nos hospitais é muito baixo em relação ao que era antes. Esse dinheiro é para melhorar a qualidade de vida dos indígenas e para a saúde deles. É para prover a subsistência de toda a comunidade, já que o poder público tem se omitido. O cacique não adquiriu patrimônio, o dinheiro era repassado para os indígenas. Temos como provar tudo isso", afirmou o advogado.
Resende mencionou que as lideranças xavantes participaram de várias reuniões, ao longo dos últimos anos, com autoridades públicas sobre o tema do arrendamento, e portanto a prática não era "nenhum segredo para ninguém" na região. Disse ainda que, quando houve o bloqueio judicial, foram achados apenas R$ 9 mil na conta de Damião, o que demonstra a distribuição dos recursos à comunidade.
"O que a PF está fazendo com o Damião, colocando-o como um bandido, é uma coisa de outro mundo. Porque soltaram [ao público] só o lado deles, sem ouvir o Damião e os outros índios. Coloca ele como um 'bandido que vende a área púbica'. Mas não está vendo que isso está sendo a manutenção de 4 mil índios, que o Estado deveria prover e não está provendo."
O inquérito da PF também cita que com Damião foi encontrada uma camionete Hilux "presenteada" por um fazendeiro mas que continuava registrada em nome dele - a polícia a apreendeu. O advogado explicou que na prática o veículo poderia ser utilizado por toda a comunidade, a depender da demanda da comunidade, como no atendimento a emergências de saúde. Há aldeias na terra indígena localizadas a mais de 250 km de um centro urbano. Por estradas de terra, a viagem dura várias horas.
Cacique denunciou coordenador da Funai, que foi mantido no cargo
O inquérito de mais de 600 páginas deixa claro que a prática do arrendamento - que hoje envolveria 15 "grandes fazendeiros", segundo a PF, e mais de 70 mil cabeças de gado dentro da terra indígena - era de pleno conhecimento do órgão indigenista do governo federal, a Funai, na figura do seu coordenador na região, que por sua vez já havia comunicado a prática à presidência do órgão, em Brasília, ainda em agosto de 2020, por ofício. Era com o responsável pelo órgão, que tem o papel de defesa dos direitos indígenas, que o cacique Damião tratava dos assuntos relativos ao arrendamento.
Ainda assim, em outro ponto minimizado pela investigação policial, o próprio Damião denunciou o coordenador da Funai e pediu sua saída do cargo. Numa manifestação (nº 20210083763) registrada pela Sala de Atendimento ao Cidadão do MPF de Cuiabá no dia 14 de setembro de 2021, Damião, então representado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), informou ter ouvido falar de um suposto depósito de R$ 50 mil em benefício de um funcionário da Funai feito por um fazendeiro na conta bancária de uma terceira pessoa.
"Xavantes de Marãiwatsédé queremos que o Coordenador sai da coordenação, ele tem que estar longe da Funai de Ribeirão Cascalheira. Obs: Reconhecemos que esse tipo de atitudes da Funai é considerado por nós Xavante como corrupção, um crime com [contra] a comunidade de Marãiwatsédé", escreveu Damião. O coordenador citado por Damião nunca foi retirado do cargo. Ele foi preso pela PF na operação do último dia 17.
A carta foi citada apenas uma vez rapidamente em um único relatório da PF, já na fase final da deflagração da operação.
Ocorre que, ao longo da investigação, a denúncia de Damião foi corroborada pela PF. A polícia apontou que, em setembro de 2021, um total de R$ 50 mil foi transferido, em parcelas, da conta bancária da filha de um pecuarista da região, Gelson Pereira Barros, para a conta de uma microempresa controlada pela esposa de um policial militar da ativa de Manaus (AM), Gerard Maxmiliano Rodrigues de Souza, que, segundo a PF, "prestava serviços" à Funai e era "muito ligado" ao coordenador do órgão indigenista.
Ouvido pela PF, Barros disse que fez o pagamento porque queria participar de um suposto "projeto" sugerido pelo pessoal da Funai que, segundo ele, reuniria dez arrendatários dentro da terra indígena. Só ficaria na área "quem aderisse ao projeto". Barros disse que foi orientado a dar o dinheiro à Funai, "que ficaria responsável por repassá-lo aos indígenas". Ele fez as transferências, porém foi obrigado a sair da área do mesmo jeito. A partir da expulsão, cobrou a devolução do dinheiro. Segundo Barros, ele parou com as cobranças depois que Souza lhe mandou, por telefone, a fotografia de um revólver.
'Vamos pressionar o pessoal a pagar', diz militar em telefonema
A coordenação da Funai em Ribeirão Cascalheira é ocupada pelo suboficial da reserva da Marinha Jussielson Gonçalves Silva, que estava fora do serviço público desde 2018 e nunca havia trabalhado na Funai, mas foi nomeado para o cargo em 18 de março de 2020 durante a gestão, no MJ (Ministério da Justiça), do agora pré-candidato à Presidência, o ex-juiz federal Sérgio Moro. O ato de nomeação foi assinado pelo então braço direito de Moro, o secretário-executivo do MJ e delegado da PF Luiz Pontel de Souza.
Um relatório da PF descreve que, em fevereiro, durante uma conversa informal com policiais federais, Silva se gabou de ter sido colocado no cargo pelo GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência. Em suas redes sociais, Silva já publicou fotografias, sem data, em que aparece fardado ao lado do agora presidente Jair Bolsonaro.
Uma das principais peças da investigação contra Silva e seu papel nos arrendamentos é um telefonema interceptado pela PF com ordem judicial no último dia 1º de fevereiro. O cacique Damião se mostrou contrariado com a informação de que fazendeiros estariam se reunindo com servidores da Funai para discutir o arrendamento sem o conhecimento das lideranças indígenas.
"Não, cacique. Não é escondido não. A gente não falou com o senhor que vai começar a medição do pasto, pra aumentar o valor do arrendamento?", indagou o suboficial da Marinha, segundo a transcrição feita pela PF.
"E por que não aparece lugar onde que pra medir? Agora fazer reunião lá na sala, da Funai. O que é isso!", responde Damião.
"Olha só, a gente tá chamando um por um pra explicar o que a gente vai fazer com relação à medida do pasto, a gente falou pro senhor que ia fazer isso. O senhor deu a autorização. O senhor lembra que a gente falou: 'Cacique, tem gente que tá com muito pasto que tá pagando pouco. A gente vai medir pra poder atualizar esse valor'. Aí o senhor falou: 'Tudo bem'. [...] Eu só posso ir lá quando o cara tiver lá na área dele, a gente num pode entrar lá na área e não ter o dono lá do gado porque a gente tá levando drone e estamos pagando pelo drone", disse Silva.
O coordenador da Funai argumentou com Damião que seu objetivo era aumentar os valores dos arrendamentos porque "tem gente roubando o senhor, cacique". Ele contou que, em um dos casos, era para o fazendeiro pagar "200 mil [reais] e paga 80 mil".
"Até o ano que vem o senhor tem que tá ganhando um milhão e meio [de reais], até o ano que vem. [...] Essa semana agora que vem já vamos começar a pressionar o pessoal pra fazer o pagamento, tá?", disse o coordenador da Funai.
Após a deflagração da operação, a PF foi ao prédio da coordenação da Funai em Ribeirão Cascalheira. Lá encontrou, na parede um controle sobre as atividades do arrendamento em Marãiwatsédé.
"Foi possível constatar que naquele local [Funai] funciona uma espécie de escritório que gerencia os 'contratos de arrendamento rural' da Terra Indígena. Além das cópias dos contratos de arrendamento sobre as mesas, na parede do escritório encontra-se afixado cartaz de controle de atividades sobre a Terra Indígena Marãiwatsédé, em que se identifica como tarefa 'a fazer' conferir as marcas do gado e definir local para o curral e tarefa 'feita' medir pastos", diz o relatório da PF.
PF interceptou telefonema para o presidente da Funai
Em outro momento da investigação, um grupo de policiais federais procurou diretamente Silva. De acordo com o relatório policial, o suboficial da Marinha "afirmou para os agentes da PF que o recebimento dos arrendamentos é controlado através do envio dos comprovantes de pagamento para um grupo de Whatsapp administrado pela CR [Coordenação Regional] da Funai, que os pagamentos devem ser realizados até o dia 15 de cada mês e que hoje a TI 'lucra' R$ 899 mil por mês com os arrendamentos".
Nesse encontro, diz a Funai, Silva foi instado pelos agentes a apresentar "a lista dos arrendatários e a localização dos pastos que cada um está alugando". No entanto, diz a PF, houve "várias tentativas e falsas promessas", sem resposta.
No dia 18 de fevereiro, a PF interceptou um telefonema de Silva para o presidente da Funai em Brasília, o delegado da PF Marcelo Xavier. Na ligação, conforme a transcrição da polícia, Silva reclamou das cobranças da PF, que supostamente deveriam ter sido feitas oficialmente por meio de um processo administrativo. Xavier deu apoio ao coordenador e disse que as requisições da PF deveriam ser oficializadas.
Silva disse que foi "constrangido" pela equipe da PF e Xavier se mostrou muito contrariado com os policiais.
"Coisa de moleque! Coisa de moleque isso aí, tá? [...] Eu vou dar ciência já do caso ao corregedor lá de Mato Grosso, ao corregedor nacional da Polícia Federal e já vou acionar nossa corregedoria pra atuar nisso aqui. Pode ficar tranquilo", prometeu o presidente da Funai.
Xavier indagou se Silva estava "se negando a fornecer os documentos". O coordenador disse que não, "eu só quero que ele formalize". O presidente da Funai disse que "algo muito estranho" estaria ocorrendo na delegacia da PF em Barra do Garças.
"Pode ficar tranquilo aí que você tem toda a sustentação aqui. Pode ficar sossegado", disse Xavier.
Militar comunicava 'todos os seus atos', diz defesa
Em nota à coluna, a defesa dos três investigados (Jussielson Silva, Gerard Maxmiliano Souza e Enoque Bento de Souza), representada pelos advogados Leonardo da Mata, Alex de Abreu e Larissa Carneiro, disse que "todos os atos praticados" pelo coordenador da Funai "foram inseridos no sistema interno de informação do órgão denominado de SEI, de acesso irrestrito dos seus superiores hierárquicos".
"Além disso, os investigados remeteram cópia das informações acerca da existência de exploração ilícita nas áreas indígenas à Procuradoria da República e Policia Federal, órgãos com sede em Barra do Garças (MT)", afirmaram os advogados.
A defesa disse que "as prisões dos investigados são desproporcionais aos fatos, desobedecem a legislação e a jurisprudência dominante vigente". "Nenhum arrendatário, muito menos as lideranças indígenas, verdadeiros exploradores das terras foram presos, o que demonstra que a 'corda arrebentou' para o lado de pessoas inocentes, enquanto os verdadeiros exploradores das áreas estão gozando de sua liberdade, fato que ficará provado no decorrer do processo", disse a defesa.
"A exploração de terras indígena existe há mais de cinco anos, antes mesmo de o coordenador assumir tal função. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) começou a ser elaborado pelo MPF, Funai, população indígena xavante e detentores e criadores de rebanho bovino, em um processo cível, porém, não concluído, de modo que sempre foi pública e notória a informação das explorações das terras, cujas autoridades eram sabedoras de tudo que estava ocorrendo", disse a nota da defesa.
Sobre o depósito na conta da empresa da mulher de Gerard Maxmiliano, a defesa disse que ela "é proprietária de uma empresa de consultoria para aquisição de armas de fogo e curso de tiros, a defesa desconhece a relação do depósito com a investigação".
Funai diz que "não coaduna" com "conduta ilícita"
Procurada pela coluna, a Funai em Brasília afirmou, em nota, que "não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita e está à disposição das autoridades policiais para colaborar com as investigações".
O órgão confirmou ter recebido um ofício de Jussielson Silva, em agosto de 2020, no qual relatava os arrendamentos e pedia providências. A Funai disse que pediu "maior detalhamento" à coordenação regional. Um novo relatório foi enviado a Brasília sobre o caso em 28 de junho de 2021.
Com isso, diz a Funai, a presidência do órgão "reuniu as informações e as encaminhou à Polícia Federal", conforme ofício datado de setembro de 2021 e endereçado ao então diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. Em seguida, foi enviado um ofício "ao procurador federal da República Everton Pereira Aguiar Araújo, do Ministério Público Federal (MPF) de Barra do Garças (MT)".
"O expediente encaminhado ao procurador serviu de subsídio para reunião que foi realizada entre a Assessoria da Presidência da Funai e o referido procurador federal, na data de 3 de novembro de 2021, por videoconferência. Após a conclusão da apuração dos fatos encaminhados aos órgãos competentes para a devida persecução penal, naturalmente a Funai encaminharia o caso para atuação do seu órgão correcional interno, caso fosse identificada a participação de servidores de seu quadro funcional."
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