Estado vai pagar tratamento de jovem viciada em crack internada 70 vezes em Minas Gerais
A empregada doméstica Sônia Cristina Moreira, 42, diz ter “renovado as forças e a esperança” nesta semana após decisão da Justiça de Minas Gerais, no último dia 22, pela internação compulsória da filha mais velha, de 24 anos, em uma clínica particular especializada em dependentes químicos, no interior de São Paulo.
A mãe conseguiu na Justiça a determinação de o Estado bancar o tratamento, orçado em R$ 18 mil por nove meses de confinamento em Atibaia (64 km de São Paulo). Ao todo, segundo a mulher, foram mais de 70 internações em oito anos, período que Sônia descreve como um “calvário” na luta para que a primogênita largasse o vício adquirido aos 17 anos.
Jurista apoia decisão
Para o jurista Ives Gandra Martins, professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do ponto de vista constitucional, o governo teria que arcar com os custos de internação de todos os cidadãos em situação de risco à saúde. "Na prática, sabemos que não há recursos suficientes para isso. Se todas as pessoas procurassem a Justiça, talvez isso não fosse possível."
Em relação aos altos custos do tratamento, Martins afirma que "a Constituição não trata de valores". "Se existem dez instituições capazes de oferecer o mesmo tratamento, por exemplo, deve-se optar pela mais barata. É o princípio da razoabilidade. Mas, quando não há alternativa, o Estado também é obrigado a oferecer o tratamento. É o caso de remédios muito caros que são a única saída para determinadas doenças, que o Estado deve pagar", afirma
Sônia recebeu a reportagem do UOL Notícias em sua casa, onde móveis são trancados a cadeados por conta do vício da moça. O imóvel fica no bairro Boa Vista, região leste de Belo Horizonte. Ela relatou o drama pelo qual ela e a família passam com o vício da garota. Segundo a mulher, Carolina Alves Pereira, 24, começou a fumar maconha aos 14 anos, na escola.
“Às vezes, dava vontade de desistir. Não sei de onde tirei forças para prosseguir”, revelou. Segundo a mulher, depois de ter adquirido o vício em crack, a jovem começou a vivera períodos fora de casa.
“Ela foi só piorando. As internações não adiantavam, e, na maioria das vezes, era só ela sair do local onde estava internada para voltar a consumir a droga com mais apetite. Ela sumia e passava dias sem a gente saber onde estava”, disse a mãe da garota.
De acordo com Sônia Cristina, a filha, que tem uma criança de três anos, hoje sob seus cuidados, fugia dos locais onde era internada ou adotava comportamento que, em algumas oportunidades, fez com que a direção do local a expulsasse da unidade de tratamento.
“Quando ela sumia, eu ia atrás dela, geralmente na Pedreira Prado Lopes (favela localizada na região noroeste da capital mineira) e a encontrava toda suja, jogada na calçada e com vários ferimentos por causa de surras que ela tomava nesses locais”, disse Sônia. “Ela passou a roubar as coisas em casa e na rua. Ela já foi presa por causa de um desses roubos na rua, levou toda a roupa que nós tínhamos no guarda-roupa para trocar pela droga.”
Conforme Sônia, em meio ao caos que se transformou a vida da filha, ainda houve um aborto. “Ela estava grávida de seis meses. Mas apanhou tanto, que ao sofrer o aborto o feto caiu no chão, foi uma coisa horrível”, afirmou.
NO RIO DE JANEIRO
Nas unidades de acolhimento compulsório da Prefeitura do Rio, os menores só saem ao cumprir 18 anos ou por determinação do juizado de menores, após provar terem se livrado do vício com a comprovação de uma equipe multidisciplinar. O crack é a principal dependência tratada no instituto.
Segundo Sônia, quando a filha ficou grávida da neta, agora sob seus cuidados, disse ter “implorado’ aos responsáveis pelo local onde a internou para que ao menos tentassem segurar a jovem até o parto da criança. “Passados três meses que teve a minha neta, ela voltou às drogas.”
45 pedras de crack e ameaças de morte
De acordo com relato de Sônia, que tem mais duas filhas, a jovem tornou-se uma consumidora compulsiva de crack, chegando ao ponto de fumar 45 pedras da droga. “Ela conseguiu arrumar um dinheiro e comprou tudo em pedra. Enquanto não acabaram as 45 pedras, ela não sossegou. Foi uma coisa desenfreada, compulsiva mesmo.”
A empregada doméstica também revelou que a filha está “jurada de morte” por traficantes de favelas de Belo Horizonte e da região metropolitana. “Ela, quando quer a droga, tenta de todas as formas consegui-la, nem para que para isso tenha que enganar as pessoas, os traficantes, é uma situação terrível’, disse a mãe, para quem a filha deve dinheiro a vários fornecedores de crack.
A mulher disse que somente após ter tido auxílio da Defensoria Pública do Estado, que entrou com ação para que a jovem fosse declarada interditada, ou seja, incapaz de responder pelos seus atos, é que houve um alento na situação da filha.
EM SÃO PAULO
Desde 2008 há 27 equipes especiais de Saúde da Família destinadas ao atendimento da população em situação de rua. Esse grupo, segundo a pasta, conta com "pessoal capacitado" para "um grande desafio": conquistar a confiança, conhecer e convencer a população vulnerável a aderir ao tratamento de sua saúde e, principalmente, ao tratamento da dependência.
Desde 2009, Sônia tentava a interdição na Justiça. O entrave, segundo ela, é que a dependente dela se valia de vários artifícios para não se submeter ao exame clínico necessário à interdição.
“Ela fugia dos locais e não queria de jeito nenhum fazer o exame. O juiz se valeu dos vários relatórios, que comprovaram as inúmeras internações dela, para dar a decisão favorável.” Sônia disse que poderá ver a filha a cada 30 dias, além de ter direito a falar com ela uma vez por semana pelo telefone. “Disseram-me que ela está participando das terapias”, alegrou-se a mãe.
Estado
A Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), à qual a Subsecretaria de Políticas Sobre Drogas está subordinada, informou que até o momento não foi intimada nem recebeu a decisão judicial sobre o caso. Somente após ser acionada e que o órgão vai se pronunciar, mas adiantou que o caso é inédito no Estado.
Já a Defensoria Pública de Minas Gerais informou que caso semelhante ocorreu no Estado, em julho deste ano. No entanto, a Justiça havia determinado ao governo mineiro o custeio do tratamento de uma menina de 14 anos viciada em crack.
OPINIÃO
Psicólogos ouvidos pela reportagem do UOL Notícias questionam se a internação é a melhor saída. Muitos defendem que o tratamento do dependente químico saia do campo da segurança e passe a ser abordado pelo viés da saúde pública.
Segundo o juiz Geraldo Claret de Arantes, da 3ª Vara de Família de Belo Horizonte, um oficial de Justiça vai intimar a Procuradoria-Geral do Estado sobre a sua decisão nos próximos dias.
Arantes disse que o Estado pode recorrer da decisão, o que ensejaria a saída da jovem da clínica em São Paulo. Ainda conforme o magistrado, o recurso seria uma coisa “corriqueira”, mas ele disse esperar que o governo tenha a “sensibilidade” de não recorrer para “ao menos salvar a vida desta moça”.
“A Defensoria Pública informou que a clínica estava ciente disso (da possibilidade de recurso). Ela (clínica) acolheu a jovem e está fazendo o tratamento ciente de que pode haver o recurso”, afirmou.
De acordo com o magistrado, sua decisão teve o cunho de despertar ações “mais práticas” sobre o que considerou ser (uso do crack) uma epidemia no país. “O objetivo é suscitar o debate, porque o que a gente não pode é ficar vendo milhares de jovens, embora o problema atinja pessoas até mais idosas, vítimas desse mal que está assolando o país”, relatou.
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