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Com seca, mar invade rio São Francisco e deixa água salgada

Piaçabuçu (AL) tem 3.500 pescadores que sobrevivem da pesca no São Francisco - Beto Macário/UOL
Piaçabuçu (AL) tem 3.500 pescadores que sobrevivem da pesca no São Francisco Imagem: Beto Macário/UOL

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Piaçabuçu (AL)

02/08/2016 06h01

Ao chegar ao povoado de Potengy, em Piaçabuçu (142 km de Maceió), o cheiro de mar dá as boas-vindas na tradicional comunidade de pescadores no litoral sul de Alagoas. Mas distante 7 km do oceano, o local deveria ter outro cheiro, de rio, já que fica às margens do São Francisco. Acontece que a seca e a consequente redução da vazão do "Velho Chico" fez com que o mar invadisse ainda mais o leito do rio. A água salgada serve para o abastecimento da cidade e fez peixes marítimos serem capturados onde antes era água doce.

A vazão normal média liberada para pelas barragens de Sobradinho e Três Marias (BA) é de 1.300 m³/s (metros cúbicos por segundo). Desde 2013, a vazão vem sendo reduzida por conta da seca que atinge o Nordeste. Naquele ano, foi reduzida para 1.100 m³/s e foi caindo até, no final do ano passado, chegar aos 800 m³/s. Cada m³ equivale a 1.000 litros.

A redução ocorreu após decisão da ANA (Agência Nacional de Águas) em dezembro de 2015. Sem chuvas regulares desde então, existe a previsão de uma nova redução em breve.

A medida causou prejuízos à população de Piaçabuçu. Como o abastecimento na cidade depende exclusivamente do rio, a água ofertada atualmente aos moradores é salgada. Para piorar, na cidade não há saneamento básico, e todos os dejetos são jogados no rio.

Piaçabuçu 1 - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Piaçabuçu não há saneamento básico, e todos os dejetos são jogados no rio
Imagem: Beto Macário/UOL

O São Francisco tem uma importância vital na cidade: Piaçabuçu tem uma das maiores comunidades de pescadores de Alagoas, com 3.500 cadastrados na colônia do município.

Jaelson Costa Santos, 60, é um deles. Ele diz que houve uma "mudança grande" no comportamento dos peixes na parte baixa do rio com o menor volume de água.  "A gente agora só pega peixe do mar aqui no rio. Só quando a maré está baixa é que ainda encontramos algum peixe de água doce, mas, mesmo assim, em quantidade menor. Mudou demais depois que baixou o nível."

O presidente da Colônia de Pescadores da cidade, Antônio Amorim, relata que além da redução de espécies, se tornou frequente a captura de peixes fora de seu habitat. História ou não de pescador, ele conta que um tubarão de cerca de 40 quilos foi capturado no rio a 1 km de distância do mar no ano passado --quando a vazão ainda era de 900 m³/s.

"Isso ocorre na maré alta, que empurra os peixes para dentro e arrasta tudo. Mudou demais o comportamento dos peixes aqui na região do baixo São Francisco”, diz.

Até as lavadeiras de rio sentiram a salinidade. "A água agora não faz nem espuma quando colocamos sabão. A roupa fica mal lavada, o sal estraga a água", conta Maria José dos Santos, 54, que lava roupa todo dia no rio São Francisco.

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Jaelson Costa Santos diz que é comum encontrar peixes de água salgada no rio
Imagem: Beto Macário/UOL

Mais hipertensos

Por conta da alta salinidade da água, o número de hipertensos saltou na cidade, especialmente no povoado de Potengy. Segundo os dados das duas agentes de saúde da comunidade, o número de doentes acompanhados cresceu 36% em 2016.

"Na minha região o número subiu de 42 para 59. E na da colega, de 37 para 49 acompanhados por hipertensão. Foi um aumento muito desproporcional, que só tem o rio salgado como explicação", diz a agente de saúde Sueli Soares, que trabalha há 16 anos no local.

Maria José dos Santos diz que a água salgada estraga a roupa - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Maria José dos Santos diz que a água salgada estraga a roupa
Imagem: Beto Macário/UOL

A médica cubana que atende a comunidade, Amparo Oporto, confirma que os casos de hipertensão cresceram e, para atender a demanda, a unidade de saúde definiu um dia na semana exclusivo (a quarta-feira) para atender pacientes hipertensos e diabéticos.

"O aumento da salinidade está diretamente ligado a esse número de pacientes, porque o sal e a hipertensão estão ligados. Nós distribuímos hipoclorito para evitar a contaminação da água, mas ele não diminui a salinização. E nem todos têm como comprar água e tomam água diretamente do rio, que é suja", explica.

Na quarta-feira (27), em que o UOL visitou a comunidade, dona Maria Helena Calixto, 72, contou que bebe água do rio São Francisco sem tratá-la. Hoje, ela é acompanhada por sobre de hipertensão e de diabetes. Ela afirma que percebeu o aumento da salinidade da água e até brincou com a situação "Tem vez que a água está doce, tem vez que está salgada. A gente nunca sabe."

Na escola da comunidade, a prefeitura envia água mineral para produção das refeições dos alunos. "A água encanada é salgada, não presta para cozinhar, para fazer um suco, para nada da merenda", contou a diretora da escola, Vanilda Dantas.

Piaçabuçu 4 - Beto Macário - Beto Macário
Maria Helena Calixto bebe água do São Francisco e se trata de hipertensão
Imagem: Beto Macário

Sistema de abastecimento

O aumento do sal na água levou a Casal (Companhia de e Saneamento de Alagoas) a adotar um sistema de abastecimento com intervalos de oito horas com água nas torneiras e três sem. "Fizemos estudos e notamos que, uma hora após a maré começar a encher, a salinidade fica maior e a água fica sem qualidade. Precisamos fazer isso pela primeira vez no município", disse Eduardo Moraes, chefe de Núcleo da Casal em Piaçabuçu.

O problema se torna mais grave porque 90% das 2.900 unidades consumidoras do município não possuem caixa d'água para armazenamento e ficam desabastecidas durante as paralisações. Para amenizar o problema, Moraes disse o Estado vai comprar e doar mil caixas d'água para moradores de menor renda.

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Piaçabuçu tem uma das maiores comunidades de pescadores de Alagoas
Imagem: Beto Macário

Uma das moradoras que sofre com a salinidade e parada de abastecimento é a dona de casa Luzânia Farias Batista, 49. Ela conta que, para cozinhar, precisa pegar água doce em uma cacimba que fica a cerca de 5 km da cidade. "Vamos lá de barco. Não tem como cozinhar com essa água, e temos que estocar água para conviver com essas paralisações. É triste."

O operador da estação de tratamento do município disse que uma solução que inicialmente foi pensada foi a perfuração de poços, mas que logo foi descartada. "Os poços perfurados encontraram água com maior salinidade que a do rio São Francisco, não serve para uso", afirmou Moraes.
Ele explica que a solução definitiva para o problema seria a construção de mais 5 km de adutora, que fariam com que a água fosse captada em um ponto mais distante do mar e, consequentemente, menor salinidade. "Mas isso custaria R$ 4 milhões, e Casal agora não tem esse recurso para a obra", afirma.

Risco dos poços

Segundo o presidente do Comitê da Bacia do São Francisco, Anivaldo Miranda, já existe um processo em análise sobre conflito da água, solicitado pela Prefeitura de Piaçabuçu. Para conclusão, ainda falta que a prefeitura envie laudos que provem a salinidade da água para dar seguimento.

"Mais grave que a água encanada, que acredito que a Casal analisa, temos as pequenas comunidades que retiram água dos poços, sem nenhum controle técnico. Estamos procurando as universidades federais de Alagoas e Sergipe para que iniciemos, rapidamente, uma análise dessa água", disse.

Medida necessária

Segundo o superintendente adjunto de Operação e Eventos Críticos da ANA, Marcelo Jorge Medeiros, a redução da vazão é uma medida necessária para garantir o abastecimento em períodos de maior seca. "É como uma poupança: temos agora um saldo que estamos usando, mas o crédito que entra é menor", disse.

Medeiros usa como exemplo o relatório do dia 28, quando o reservatório de Sobradinho recebeu uma média de 330 m³/s por segundo e liberou 824. "Se não houvesse esse reservatório, em vez de 800, estaria chegando esses 330. Sem esses reservatórios e controle a situação estaria bem pior", explicou.

Hoje, o reservatório de Sobradinho está com 19% da capacidade, e Três Marias, 32%. Segundo ele, para garantir o enfrentamento de mais uma possível seca, a ANA já solicitou estudos e simulações para uma nova redução de vazão em breve.

"Vamos ver os impactos. Existem órgãos que vão apresentar para vários cenários, e quem tem de tomar essa decisão é da ANA. Hoje a situação não está melhor, e essa medida pode ser necessária para não chegarmos ao período de estiagem com reservatório muito baixo", disse.

Procurada pelo UOL desde a segunda-feira (25), a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) não respondeu aos questionamentos, nem indicou uma fonte da empresa para falar sobre os reservatórios (que são de sua gestão) e sobre o monitoramento da salinidade que a empresa faz da água na foz do São Francisco.

Na escola da comunidade, a prefeitura envia água mineral para produção das refeições dos alunos. "A água encanada é salgada, não presta para cozinhar, para fazer um suco, para nada da merenda", contou a diretora da escola, Vanilda Dantas.