Sete erros do sistema prisional brasileiro que pioram a crise penitenciária
No primeiro dia do ano, enquanto presos do PCC (Primeiro Comando da Capital) eram decapitados no Complexo Anísio Jobim, em Manaus, outros, da facção rival, a FDN (Família do Norte), circulavam com celulares filmando a barbárie.
Não havia divisão entre celas, e o presídio era controlado internamente pelos próprios detentos. Eles eram hipoteticamente monitorados por agentes não preparados para situações limite como aquela.
Em Roraima, mais de três dezenas de presos morreram dias depois, após a súplica do governo local pela presença da Força Nacional na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista.
Em outra latitude, no Rio Grande do Norte, facções entravam em combate em um presídio construído sobre a areia de Alcaçuz, com 26 mortes.
Os massacres e os locais em que ocorreram não são a única semelhança. Segundo Guaracy Miranda, ex-diretor de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (cargo equivalente a subsecretário nacional de segurança pública), em todos os casos presos que cumpriam penas tão diversas como homicídio e roubo ocupavam o mesmo espaço.
Um plano de segurança não havia sido arquitetado pelo Estado que os controla –e, na opinião do especialista em Segurança Pública, dificilmente o fará quando as matanças sumirem da mídia.
A pedido do UOL, Mingardi analisou os erros cometidos nessas unidades –que seriam evitáveis, segundo ele, se a questão penitenciária de fato fosse uma política pública, e não apenas paliativa, com remendos anunciados a cada crise.
Estamos aprisionando em um ritmo impossível de bater.
1. Inércia do Estado
Em novembro, dois meses antes da crise prisional, o governo de Roraima solicitou o envio da Força Nacional ao Ministério da Justiça para conter a rebelião que se avizinhava. O governo federal negou a ajuda.
Ao mesmo tempo, a tensão entre o PCC e as facções vinculadas ao CV (Comando Vermelho) era de conhecimento dos grupos que estudam a segurança. No entanto, a ação efetiva só aconteceu após as mortes de presos ultrapassarem uma centena.
“Não dava para dizer que a coisa não iria acontecer, a briga estava posta. Agora, entre saber o que vai ter e saber o que vai fazer vai uma grande diferença”, diz Mingardi.
Segundo ele, o racha entre os dois grupos rivais é de conhecimento de quem acompanha a crise nos presídios desde a metade do último ano. “O sistema sempre esteve rachado, entre facções rivais, porque o Estado nunca se preocupou em cuidar do dia a dia.”
2. Falta de controle interno das detenções
Presos que controlam a comida, as chaves e que circulam entre as áreas sem nenhum tipo de monitoramento. Surreal? Mingardi diz que é histórico: o Estado nunca mandou nos presídios, e são os detentos os donos do pedaço.
“Temos um sistema que foi feito para manter o sujeito lá dentro –e ele que se vire. Quando o Estado percebe uma crise e precisa intervir, não tem o que fazer. Não tem instrumentos para gerir a crise e evitar que ela vá até o final.”
Segundo ele, há muito tempo não existiam grades no Complexo Anísio Jobim, em Manaus. “Isso implica em não controle”, diz. “Você pode até saber que a crise se avizinha, mas vai fazer o quê? E vai acontecer de novo em outros momentos, por motivos diferentes. Quando a crise sair da mídia, nada vai mudar, porque o sistema é falho.”
3. Mistura de presos com penas e crimes diferentes
É uma situação que ocorre em todas as penitenciárias brasileiras. No caso de Alcaçuz, dos 22 mortos identificados, 14 cumpriam pena por roubo e cinco por homicídio, alguns latrocínios, além de apenados por tráfico ou associação com o comércio ilegal de entorpecentes.
“Existem pessoas que deveriam cumprir pena em lugar mais duro ou mais mole. Mas, no Brasil, você não tem um sistema adaptado para isso”, afirma Guaracy. “Quando falam em construir presídios, falam em construir nos mesmos moldes dos atuais – para 600, 700 presos que não são de segurança máxima nem mínima, e acaba misturando todo mundo.”
É um sistema que, segundo ele, não regenera ninguém e vira uma fábrica de crises. “Usam a crise enquanto está na mídia. Quando sai, empurra com a barriga.”
4. Agentes despreparados e inteligência desequipada
O Complexo Anísio Jobim, em Manaus, foi concedido pelo Estado à iniciativa privada, que gere o Centro de Detenção Provisória, inclusive fornecendo agentes. O grave nessa situação é que nem sempre eles são preparados ou têm formação para lidar com situações de alta tensão.
O terceirizado, diz Mingardi, é apenas um dos quatro tipos de agente penitenciário hoje nos presídios brasileiros. Além dele, há o concursado, o temporário com contrato renovável e o temporário com prazo estipulado de prestação de serviço.
O caso do Amazonas, aponta, é o mais passível de problemas. “Você precisa de gente que possa ser responsabilizada e tenha responsabilidade”, diz. “Se ele é um terceirado que sabe que a qualquer momento vai ser mandado embora, por que ele vai se preocupar com aquilo? É mais fácil pressionar um sujeito desses do que quem tem carreira. Um agente leva no mínimo um ano para conhecer a prisão.”
Na contramão dos terceirizados amazonenses, existem os agentes especializados, mas que não contam com recursos públicos. No Rio Grande do Norte, o grupo de inteligência tem que dividir o tempo entre a estratégia e a captura de fugitivos.
“Como você vai gerir isso?”, questiona Mingardi. “A inteligência prisional não é utilizada.”
5. Presídios mal construídos
O presídio de Alcaçuz foi construído baseado em um trabalho de conclusão de curso de duas alunas de arquitetura da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Era previsto para um terreno rochoso, mas foi construído sobre as dunas do município de Nízia Floresta.
A presença de areia facilita o esconderijo de armas e a fuga com túneis moldados na areia. Também é comum que esses túneis desabem e presos morram na fuga. O prédio fica em um terreno mais baixo que as dunas que o cercam, o que facilita o arremesso de objetos para lá.
Imagina impedir a entrada de um celular em Alcaçuz? Você consegue jogar o celular lá dentro. Alguns lugares você vai ter que reconstruir, porque foi muito mal pensado e mal construído.
6. Ação paliativa transformada em definitiva
Nesta semana, contêineres foram colocados na área interna de Alcaçuz para começar a construção de um muro separando presos das facções PCC e Sindicato do Crime. A medida foi tomada pelo governo do Estado para evitar confrontos e, consequentemente, mais mortes.
Separar facções não é novidade. No Rio de Janeiro, presos são encaminhados de acordo com os grupos criminosos vinculados aos bairros em que moram, com o Comando Vermelho, com metade dos presídios.
Em São Paulo, com o PCC com amplo domínio no sistema carcerário, detentos de outras facções são levados para presídios sem vinculação com a facção.
“No momento em que há uma guerra nacional declarada, é importante mantê-los separados”, afirma Mingardi. “Mas não é uma política de longo prazo, que é construir um sistema que você possa deixar o pessoal em conjunto. Os presídios têm que dividir as pessoas por pena e tipo de crime cometido. O que tem que fazer nessa crise é estipular que decisões provisórias não virem definitivas –elas devem vigorar até melhorar o sistema o suficiente para ter controle interno e separar por crime e periculosidade, criando um sistema de ressocialização.”
7. Uso do Exército
Embora com pouco efetivo, a Força Nacional é considerada por Guaracy Mingardi como a mais bem preparada para o controle de crises como a atual. Segundo ele, o Exército nesse caso serve apenas pelo aceno midiático da medida, sem no entanto ter eficácia.
“Se tivessem os 500 homens do batalhão de intervenção da Força Nacional em Brasília neste momento, daria para resolver o problema de pelo menos dois desses Estados –porque são presídios pequenos, e é melhor mandar cem homens treinados do que mil sem treinamento. Toda vez que há clamor popular, os governos cedem e mandam o Exército, que não tem o que fazer. É evidente que não vai fazer rebelião no presídio se o Exército estiver lá, mas você não conseguirá fazer isso eternamente.”
Hoje, afirma Mingardi, a prioridade é fazer uma revista dos presos que continuam nesses centros de detenção, algo que o agente penitenciário tem maior experiência e malícia para executar.
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