'Só minha família sabe meu endereço', diz mulher ameaçada pelo ex
O relacionamento durou quase três anos e mudou para sempre a vida de Sarah Mantovan, 29, que hoje estuda para se tornar advogada. Entre 2011 e 2014, ela vivenciou a paixão e a maternidade, mas também a fúria e o descontrole de seu ex-companheiro.
O depoimento à reportagem do UOL poderia ser feito de forma anônima, mas Sarah escolheu contar sua experiência mostrando o rosto, dizendo acreditar que pode ajudar outras mulheres vítimas da violência.
O caso dela é um dos quase 255 mil atendidos pela Justiça paulista com medidas protetivas entre 2013 e 2016. Considerando o período de 12 meses entre novembro de 2015 e outubro de 2016 (dado mais recente), foram aplicadas 74.406 medidas, ou o mesmo que uma média de 203 casos por dia, segundo informações do "Anuário da Justiça São Paulo 2017", que será lançado nesta quarta-feira (8), pelo Conjur (Consultor Jurídico).
Sarah mora na capital; o ex se mudou para o Rio de Janeiro quando houve interferência judicial e da polícia. O casamento se desfez, ele chegou a ser detido e não vê a filha há dois anos e meio.
“Só quem sabe do meu endereço hoje é a minha família e os amigos muito íntimos. Infelizmente, você passa por isso e vai ser eternamente prejudicada, porque a vida nunca mais é a mesma”, diz.
As denúncias feitas por ela à Delegacia da Mulher em 2014 --mais ou menos cem páginas de relatos sobre ameaças sofridas verbalmente e por mensagens de telefone-- resultaram em uma medida protetiva proibindo qualquer tipo de contato pelo ex-marido, inclusive com a filha, e estabelecendo um limite para a distância mínima entre eles: 300 metros.
A união existia há pouco mais de dois anos e meio, mas os abusos começaram cedo e pioraram após a gravidez. Por causa do ciúme extremo dele, Sarah não podia estudar nem trabalhar, mal saía de casa, era monitorada o tempo todo e tratada com xingamentos e empurrões.
A busca por ajuda só aconteceu quando ela não aguentava mais. A pedido dela, os dois já nem moravam juntos, mas as intimidações e a perseguição continuavam.
No primeiro contato com a polícia, apesar de ser bem atendida, Sarah ouviu que os indícios que ela apresentava não comprovavam que estava em risco. Na noite daquele mesmo dia, as ameaças se agravaram.
“À noite, ele muito irado, transtornado depois de saber que eu tinha ido à polícia procurar ajuda, me mandou nove mensagens de áudio, totalmente aterrorizantes e superpesadas. Na manhã seguinte, eu estava na delegacia com os áudios, enquanto ele já estava na porta do prédio onde eu morava na época, gritando”, ela conta.
A medida protetiva foi então concedida, e seu agressor ficou detido por algumas horas.
A gota d’água para Sarah foi ver seu pai machucado após um ataque de ciúme do ex-marido. Algumas pessoas estavam na casa dela para ver os jogos da Copa do Mundo, quando ele apareceu de surpresa. Com um facão de churrasco, tentou acertar um dos amigos da ex-mulher. O pai de Sarah intercedeu e teve a mão ferida.
“Às vezes a gente vê em novela, vê em filme e acha que isso não acontece. E as pessoas te julgam e perguntam: 'Por que você aguenta?'. Ele me ameaçava e também a minha família, dizia que ia matar minha mãe e meu pai, porque sabia onde todo mundo morava. Eu temia pela minha família também. Não tinha como sair da situação, eu estava presa.”
Mesmo já separados, o ex-companheiro de Sarah ia com frequência ao local onde ela morava e chegou a divulgar fotos íntimas dela quando as denúncias foram feitas à polícia.
Média de 203 medidas protetivas por dia em SP
No Estado de São Paulo, entre 2013 e 2016, a Justiça determinou a aplicação de 254.776 medidas protetivas, requisitadas por mulheres contra homens agressores. Ano a ano, o número total de concessões é crescente. Só em 2016, até o mês de outubro (dado mais atual), foram impostas 63.109 medidas.
A quantidade de medidas protetivas determinadas pelo Judiciário chegou a 57.318 em 2013; 65.331 em 2014; e 69.018 em 2015.
Para a advogada Maria Berenice Dias, do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), o índice é significativo, principalmente porque a denúncia à Justiça, quando é feita, já representa uma tentativa extrema de resolver a situação.
“A medida protetiva é o último recurso. É quando a mulher pede socorro porque não está conseguindo dar conta disso [da violência contínua]. Existe um vínculo afetivo dela com o agressor, e existe um ranço cultural muito severo”, afirma Dias.
Ainda hoje, o homem acha que a mulher deve obediência a ele, que é sua propriedade, que ela tem deveres e obrigações, essa ideia de que tem que cuidar do lar e dos filhos. As mulheres chegam a pensar que acabaram provocando a violência, que 'descumpriram' as regras, como se fossem 'merecedoras' da punição
Maria Berenice Dias, advogada
“Ronda policial salvou minha vida”
A medida protetiva tem como objetivo dar segurança à vítima, mas não é garantia de que a mulher estará a salvo. A situação vivida por Sarah é um exemplo disso. Um dia após conseguir proteção, ela voltou a ser importunada.
“Ele voltou para a minha porta e ficou lá na rua até de madrugada. Dizia que ia me matar primeiro e que depois ia se matar. Pedia perdão e desculpas, falava que ele não era assim e que estava arrependido, chorando. Eu já vi ele fazer isso várias vezes”, afirma.
Sarah tentava estar sempre em um endereço diferente, na casa de parentes ou amigos, para não ser encontrada pelo ex. Pensou até em sair do Estado. Foi por meio de um programa do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), do Ministério Público, e da Polícia Civil que ela pôde ter um pouco de paz. Durante quase um ano, ela foi acompanhada por uma escolta.
“Todos os dias, eles vasculhavam a vizinhança, mostravam a foto dele [do ex] e pediam para as pessoas ligarem se o encontrassem ali. Um carro com três policiais armados ficava em frente ao meu prédio, fazendo a segurança, e eles me perguntavam se ele tinha feito contato comigo, se tinha feito ameaças”, ela lembra.
“Foi o que me salvou. Se eu não tivesse essa escolta, ele teria feito alguma besteira ou teria me perturbado durante um longo tempo, ou eu teria que ter ido embora.”
Depois disso, o ex-companheiro se mudou para o Rio. Sarah também deixou o antigo endereço, com a guarda unilateral da filha.
Casos relacionados à Lei Maria da Penha crescem 131%
Criada há dez anos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha é o principal tema da compilação anual sobre o Judiciário paulista.
A lei diz: “Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Pelo número de telefone 180, a vítima pode fazer sua denúncia. Desde a criação deste serviço de atendimento à mulher, em 2006, foram realizados 5 milhões de atendimentos no país, a maioria referente a casos de violência física e psicológica.
No primeiro semestre de 2016, foram feitas quase 68 mil denúncias de violência doméstica pelo 180. Comparando o primeiro semestre de 2015 com igual período no ano passado (dado mais recente), houve aumento de 142% nos registros de cárcere privado e de 147% nos casos de estupro, por exemplo, segundo informações do Ministério da Justiça ao Conjur.
As medidas protetivas de urgência podem ser requeridas pela vítima ou pelo Ministério Público e devem ser autorizadas por um juiz. O agressor, neste caso, é obrigado a se afastar da vítima, mesmo que o processo esteja ainda correndo.
Em São Paulo, são estas as principais decisões da Justiça relacionadas à proteção da mulher:
- proibição de aproximar-se da mulher, de seus familiares e testemunhas;
- proibição de contato com a mulher;
- afastamento do lar
Nos últimos quatro anos, a quantidade de casos relacionados à Lei Maria da Penha cresceu 131% em São Paulo. Em 2013, eram 18.600 mil processos à espera de decisão; até o fim de 2016, o número chegava a quase 43 mil processos.
Neste período, o número de sentenças expedidas pela Justiça de São Paulo passou de 5.600 mil em 2013 para 16 mil no ano passado.
“Este número [de casos] que parece crescente e que poderia dar a entender, de uma maneira equivocada, que a violência está aumentando, na realidade, está aumentando a conscientização das mulheres, que estão cada vez mais empoderadas, encontrando no Estado uma resposta”, afirma a advogada Maria Berenice Dias.
Para ela, a Lei Maria da Penha é “a lei mais efetiva que existe no país” porque dá mais segurança à vítima em um curto prazo após a denúncia ser apresentada à delegacia de polícia. Um juiz deve decidir sobre a aplicação da medida protetiva até 48 horas depois de receber o pedido.
Falta ainda, em sua avaliação, preparar melhorar os agentes que são os primeiros a atender as denúncias das mulheres (policiais, funcionários públicos etc.), de quem é comum ouvir a pergunta: “O que foi que você fez para ele?”.
“Há uma resistência muito grande das mulheres de denunciarem. Mecanismos como o ‘botão de pânico’, que as mulheres pudessem portar, ou uma tornozeleira para o agressor, para poder gerar algum tipo de alarde [quando a medida é descumprida], poderiam ser utilizados para melhorar a segurança”, sugere Dias.
“Não é tão simples sair de uma situação dessa. É difícil você enfrentar o medo, o medo de morrer. Se você é mãe, como vai tomar atitudes drásticas e procurar ajuda quando o outro está dizendo que vai te matar?”, diz Sarah.
Ela deixa como conselhos que o mais importante é enfrentar a situação e sempre acreditar que qualquer pessoa é capaz de fazer qualquer coisa, para o bem ou para o mal.
“Se aconteceu a primeira vez, vai acontecer a segunda e a terceira. Peça ajuda, denuncie e faça a ocorrência. Tem jeito de recomeçar, a vida não acaba ali.”
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