Câmera e 8 BOs não impediram assassinato de mulher ameaçada pelo ex
Fábio Willian Silva Soares tinha ordem judicial para que mantivesse a distância de, no mínimo, 200 metros da ex-mulher, a cabeleireira Maria Islaine Morais. Dona de um salão de beleza em Venda Nova, bairro de Belo Horizonte, ela já havia sofrido abusos consecutivos que levaram Soares a ser enquadrado na Lei Maria da Penha. Oito boletins de ocorrência foram lavrados. Câmeras de segurança foram instaladas no salão.
Mesmo assim, no dia 21 de janeiro de 2010, Soares disparou nove tiros, todos à queima-roupa, contra a cabeleireira, morta em frente aos seus clientes. As câmeras de segurança serviram apenas para que o crime fosse gravado, e o homicida, identificado. Maria Islaine, no entanto, morreu.
“O que impede o marido de se aproximar da mulher mesmo com medida protetiva?”, questiona a promotora legal popular e coordenadora da União Mulheres de São Paulo, Marília Kayano. “É ele acreditar que algo vai acontecer, em um país em que a impunidade é tão grande.”
Não há certeza para a vítima de abuso de que ela será protegida, diz Kayano. Faltam mecanismos que controlem a aproximação do agressor ao mesmo tempo em que a Justiça a intimida. “As medidas protetivas de urgência muitas vezes são vinculadas a um procedimento já existente, e ela só é concedida se existir um processo criminal, quando o desejo da vítima é apenas o de se livrar da violência. Vincular [a medida protetiva ao processo criminal] é um grande erro”, afirma a promotora Valéria Scarance, do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo.
Reportagem publicada nesta terça-feira (7) pelo UOL aponta que, entre 2013 e 2016, foram determinadas 254.776 medidas protetivas apenas no Estado de São Paulo, requisitadas por mulheres contra homens agressores --57.318 em 2013, 65.331 em 2014, 69.018 em 2015 e 63.109 medidas até outubro de 2016.
O aumento de medidas restritivas não intimida a violência doméstica. Em 2013, o Estado de São Paulo registrou 620 assassinatos de mulheres. No ano seguinte, o SUS registrou 27.629 agressões contra o gênero. Em 2013, a Pesquisa Nacional de Saúde, feita em conjunto entre o Ministério da Saúde e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontou 415.216 agressões por pessoa conhecida (familiar ou cônjuge) às mulheres contra 188.524 contra homens no Estado.
Ou seja: mesmo com as restrições, os abusos continuaram acontecendo. “A violência contra a mulher envolve momentos de amor e ódio. O condicionamento da medida restritiva ao processo criminal faz com que ela deixe de pedir proteção e em seguida morra”, diz a promotora.
"Falta sensibilidade"
Quando Fernanda Sante Limeira, 35, recebeu quatro tiros do ex-marido Ismael dos Santos Praxedes, em 22 de julho do ano passado, seu pedido de mandado de medida protetiva de urgência havia sido recusado pela juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves havia exatos 42 dias. Enfermeira, ela havia chegado para trabalhar na UBS (Unidade Básica de Saúde) República, no centro de São Paulo. O ex-marido, de 37 anos, havia vindo de Bebedouro (a 380 km de São Paulo), com a intenção de matá-la.
Foi o último gesto de Fernanda na tentativa de buscar proteção. Ela e Praxedes viviam intensa disputa pela guarda da filha. Em 2008, ela havia lavrado boletim de ocorrência por ameaça e agressões físicas e psicológicas. O processo não teve andamento, e Fernanda tentou o meio judicial. “Os elementos são frágeis, haja vista a intensa disputa pela filha desde a separação, a qual não se confunde com violência baseada no gênero”, dizia o despacho de 1º de junho de 2016 da juíza.
“O Brasil não conseguiu implementar uma avaliação de risco [de violência contra a mulher]”, afirma a promotora Valéria Scarance. “Nem toda autoridade tem esse olhar de gênero. As mortes existem porque não houve acompanhamento de risco ou porque a autoridade não foi sensível [ao caso].”
A mulher só constata a violência quando ela é física e de grande extensão, como uma grande marca no corpo. Se é um tapa, ela suporta diversas vezes
Valéria Scarance, promotora
Segundo o Mapa de Violência de 2015 do governo federal, dos 127.710 atendimentos por agressões a mulheres no SUS em 2014, 47.157 foram provocadas por parceiros (namorados, ex-namorados, maridos ou ex-maridos) --um percentual de 36,9% dos casos. Entre as mulheres consideradas adultas (de 30 a 59 anos), o número foi de 23.414 --ou metade das agressões registradas. Pesquisa divulgada nesta quarta (8) pelo Datafolha, a pedido do Fórum Brasil de Segurança Pública, indica que uma a cada três brasileiras com 16 anos ou mais foi espancada, xingada, ameaçada, agarrada, perseguida, esfaqueada, empurrada ou chutada nos últimos 12 meses.
“Essa violência já é uma violência percebida”, diz a promotora. “Mas a mulher só constata quando ela é física e de grande extensão, como uma grande marca no corpo. Se é um tapa, ela suporta diversas vezes. A violência não inicia com socos e pontapés, mas com empurrões. Já ouvi mulheres questionarem: ‘Sofri violência ou não?’. Porque já houve rebaixamento moral, patrimonial e só então acontece a violência física, quando o marido já se sente ‘autorizado’ por abusos anteriores.”
Como avisar?
Vitória tem o pior índice de violência contra a mulher entre as capitais brasileiras. Em 2013, a taxa de homicídio era de 11,8 mortes a cada grupo de 100 mil mulheres. No acumulado de 2009 a 2013, outras oito cidades do Espírito Santos estiveram entre as mais violentas para o sexo feminino do Brasil, quatro delas na região metropolitana da capital capixaba: Serra, Vila Velha, Cariacica e Viana.
No mesmo ano, o governo do Estado implantou o botão do pânico, inicialmente para 100 mulheres com medida protetiva na 11ª Vara Criminal de Vitória. O equipamento capta e grava conversas em um raio de cinco metros (as gravações podem ser usadas como prova judicial) e dispara informações para a Central Integrada de Operações e Monitoramento da cidade com a localização da vítima. Um carro da Patrulha Maria da Penha, exclusiva para violência contra a mulher, é enviado para o local.
“A mulher precisa ter meios de avisar a polícia sobre o risco de violência”, afirma a advogada Luiza Nagib Eluf. “A medida protetiva é importante, tem salvado vidas, mas pode não ser suficiente dependendo do caso”, diz, apontando o caso de Maria Islaine Morais, em Belo Horizonte.
O botão do pânico, no entanto, não é unanimidade. Falha de acionamento do equipamento já foram relatadas, assim como a possibilidade de a mulher não perceber a aproximação do agente. “E se a vítima estiver dormindo ou não tiver uma equipe disponível na ocasião?”, diz a promotora Scarance.
Tornozeleiras com controle eletrônico de aproximação já existem em alguns Estados, mas não são regra. Os dois meios, porém, só serviriam se associados a outros sistemas, como a Guardiã Maria da Penha, com guardas civis capacitados e próximos às vítimas com medidas protetivas. “Temos que ter um aparato policial e judicial capaz de proteger efetivamente a ameaçada”, diz Nagib Eluf.
“O Brasil está em quarto lugar no mundo em agressões contra mulheres. É um problema social. Diante dessa situação, seria importante uma intervenção nas escolas, na educação, para ensinar que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, são livres e têm que ser respeitadas. O Brasil não está parado, está mobilizado, mas tem uma tradição de violência contra mulher muito grande. É um país patriarcal, que sufoca as mulheres. Trata as mulheres como bem material, e não como ser humano.”