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Trans adaptam corpo e voz em aulas no Rio: "É ótimo não me chamarem mais de senhor"

Trans Patricia - Reprodução - Reprodução
Depois das aulas, Patrícia Rodrigues consegue ouvir seus áudios no WhatsApp
Imagem: Reprodução

Marcela Lemos

Colaboração para o UOL, no Rio

07/05/2017 04h00

Adequar a voz à aparência, perder a timidez ao falar, ganhar o respeito dos outros. Esses são os principais motivos que levam transexuais e transgêneros a procurarem o laboratório de readequação vocal que funciona na Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro. 

Patrícia Batista, 22, frequenta o projeto há um ano. Ela conta que, antes de iniciar as aulas de fonoaudiologia, se sentia acuada na rua para falar com estranhos, já que sua aparência e sua voz não combinavam.

"Eu fui perdendo o medo de falar graças às aulas de fono. Tinha receio de pedir informação, de perguntar algo no mercado. Uma vez, no ônibus, percebi que o motorista ia passar direto do meu ponto. Podia ter gritado, como todo passageiro faz, para lembrar que ia descer, mas fiquei com medo de chamar a atenção, com medo dos olhares de outras pessoas. Com as aulas, isso tem mudado. Já me sinto mais à vontade para conversar. Estou perdendo a timidez", diz a transexual.

Já a transgênero Beatriz Araújo, 37, analista de infraestrutura, afirma que as aulas ofereceram uma sensação de bem-estar: "Agora, no telefone, não me chamam mais de senhor. Já me reconhecem como mulher. É uma sensação muito boa. Passei a ser reconhecida da maneira que me faz bem, da forma que escolhi".

Aulas trans - Reprodução - Reprodução
O professor João Lopes orienta Patrícia Rodrigues a adequar sua voz em laboratório
Imagem: Reprodução
O laboratório de atendimento fonoaudiológico funciona há um ano e já beneficiou mais de 30 pessoas. Hoje, há uma fila de espera. O atendimento é individualizado e acontece uma vez por semana com exercícios para a voz que devem ser repetidos em casa. As aulas, gratuitas, duram em média três meses, mas podem se estendidas.

O professor João Lopes, um dos responsáveis pelo espaço, conta que ideia de ajudar transexuais e transgêneros nasceu a partir de um projeto de iniciação científica de sua aluna Gisele Braga, que também trabalha no laboratório.

Mas foi nos palcos da CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), onde também é professor, que surgiu o estalo: "Se treinamos atores para interpretar mulheres no teatro, por que não podemos ajudar trans a adequar a voz à aparência física que escolheram?".

Trans Beatriz - Reprodução - Reprodução
A analista Beatriz Araújo afirma que as aulas lhe deram uma sensação de bem-estar
Imagem: Reprodução

É uma sensação muito boa. Passei a ser reconhecida da maneira que me faz bem, da forma que escolhi

Beatriz Araújo, analista de infraestrutura

O fonoaudiólogo explica que o principal objetivo do projeto é a inclusão social, oferecendo condições de disputa de empregos no mercado formal e retirando o grupo de condições de exclusão e marginalidade. 

"Já tivemos resultados muito significativos. Tivemos pacientes que após o início das aulas conseguiram entrevistas de emprego, conseguiram começar a trabalhar. Um deles conseguiu até uma promoção na empresa onde trabalha. Já tivemos até um casamento por aqui. Eu me sinto orgulhoso em poder ajudar."

"Hoje os colegas do meu filho me chamam de tia e ele me chama de pai"

O professor explica que as vozes não podem ser totalmente transformadas, só adequadas aos padrões físicos. 

"Se você tem uma transexual de 1,90 m de altura, eu não vou ter como deixá-la com uma voz muito aguda. Ela vai conseguir ter uma voz com padrões femininos, mas jamais totalmente aguda porque temos que respeitar a anatomia dela, a fisiologia da laringe."

Além de trabalhar a voz, a equipe do laboratório oferece treinamentos corporais. "É importante que o paciente também tenha uma postura, um jeito mais adequado aos padrões femininos ou masculinos."

Beatriz Araújo deu início às transformações através da ingestão de hormônio, aos 30 anos. Ela conta que, desde os cinco anos, não se reconhecia como menino. A aceitação e a compreensão sobre sua identidade vieram somente aos 20 anos de idade, com mais acesso à informação. Até lá, ela relatou uma vida de isolamentos.

"Eu era uma pessoa muito fechada, pois eu me sentia errada, achava que só eu era diferente no mundo. Sentia algo de errado em mim, então eu me escondia, me fechava, tinha dificuldade para fazer amigos. Depois que descobri o que estava acontecendo comigo, procurei ajuda, apoio psicológico e me transformei. Hoje sou outra pessoa."

Beatriz tem um filho de 14 anos. A criança soube dos desejos de mudança da mãe aos sete anos de idade. Para ela, o apoio dele foi o ponto de partida para começar uma nova vida. "Ele disse para mim: 'Pai, vai ser feliz!'. Isso me deu vontade de enfrentar o mundo. Podia perder amigos, perder apoio, mas percebi que ele estaria sempre comigo. Hoje os colegas dele me chamam de tia e ele me chama de pai", conta a mãe orgulhosa.

"Na hora de levar os documentos, não me aceitaram"

Assim como Beatriz, Patrícia Rodrigues, relata que, desde os cinco anos, não se reconhecia como menino. "Amigos do meu primo debochavam de mim porque não eu gostava de brincadeiras de menino. Fui crescendo e não gostava de me olhar no espelho, usava roupas que cobriam todo o meu corpo. É uma sensação de estar presa dentro do próprio corpo."

Foi com 15 anos que Patrícia descobriu a transexualidade. Com 20, começou o tratamento hormonal, que chegou a ser interrompido por um período devido a problemas de saúde. Hoje, ela busca nas aulas de fono uma oportunidade de se inserir no mercado de trabalho, já que está desempregada há um ano.

"Eu até fui contratada em um lugar, mas na hora de levar os documentos não quiseram ficar comigo. Isso não deveria ser motivo", desabafa.

Depois que iniciou as aulas, ela diz que se sente melhor com uma voz adequada à sua aparência física --e também mais aceita: "As pessoas me tratam melhor agora".

Segundo um levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), mais antiga associação de defesa dos homossexuais e transexuais do Brasil, 2016 foi o ano com o maior número de assassinatos da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) desde o início da pesquisa, há 37 anos.

Foram 347 mortes. São Paulo lidera a lista, registrando 49 assassinatos. No entanto, o grupo afirma que os números não correspondem à realidade, já que os casos são subnotificados.

Para mais informações: tel. 0/xx/21/2502-3238.