São Paulo luta há 20 anos contra a cracolândia, sem vencer; por quê?
A gestão de João Doria (PSDB) à frente da Prefeitura de São Paulo sofre críticas do Ministério Público e de ONGs devido à maneira que tenta desmanchar a cracolândia na região da Luz. Após uma ação da Polícia Militar e da GCM (Guarda Civil Metropolitana), ocorrida no dia 21 de maio, o "fluxo" migrou da rua Helvétia para a praça Princesa Isabel, sem acabar com o consumo nem com o tráfico na região.
A questão dura, ao menos, 20 anos, e a cracolândia foi abordada por quatro prefeitos antes de Doria. Desde 2005, as questões da cracolândia já foram alvo, só na USP, de pelo menos 240 trabalhos acadêmicos, entre dissertações de mestrado, doutorado e pós-doutorado, em áreas como direito, urbanismo, saúde e antropologia. O UOL ouviu três desses pesquisadores para analisarem como São Paulo, independemente do prefeito, tem encarado o tema. Questionados, nenhum oferece uma saída a curto prazo para a questão.
“Trata-se de uma questão estrutural que demanda reformas estruturais. Isso, contudo, não deve aliviar a responsabilidade dos gestores municipais e estaduais. Em sua grande maioria conciliam repressão policial com reforma do espaço, em primeiro plano; e um discurso que diz ofertar tratamento e atenção, em segundo plano”, afirma Taniele Rui, doutora em Antropologia Social pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Questionada sobre o êxito ou fracasso do desempenho dos governantes em suas ações na cracolândia até hoje, Taniele devolve a pergunta. “É preciso, nesse ponto, questionar o que se entende por sucesso: sucesso é retomar o território, ter controle sobre ele, gerenciá-lo, prender ‘traficantes’ ou é cuidar bem de uma população, oferecer a ela acesso a serviços assistenciais e de saúde? E fracasso seria o que? A continuidade dessa população no local ou o fato de não conseguirmos bem tratar os mais pobres da cidade?”
Embora a questão na cracolândia seja atualmente competência de Doria, nenhum de seus antecessores conseguiu dar solução definitiva para o problema, na opinião dos pesquisadores.
“Palco explícito de guerra”
“A cidade de São Paulo é hoje o palco explícito de uma guerra que usa práticas do passado escravocrata, ditatorial e autoritário, fazendo acreditar que voltamos à época em que o direito de ir e vir era impedido, em que as pessoas, eram discriminadas e eliminadas da vida em sociedade pelas suas marcas corporais. Época, também, de reprimir traficantes, que na verdade nem o são.”
A frase, a respeito das ações do governo Doria na cracolândia, é do pesquisador Rubens Adorno, da Faculdade de Saúde Pública da USP e também presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos Sobre Drogas).
Um dos mais experientes pesquisadores sobre o tema no meio acadêmico, Adorno é uma das várias vozes que decretam a falência das políticas públicas adotadas até então para tentar tratar os dependentes químicos da região da Luz, no centro. “Deve-se considerar que há quase 20 nos é exercida uma guerra neste local [cracolândia] e foram inclusive derrubados quarteirões inteiros”, afirma Adorno.
Em carta aberta e distribuída a pesquisadores, ele faz duras críticas às ações de Doria. “É isso o que a política que vem sendo chamada de higienista quer: varrer os corpos indesejáveis e fazê-los desaparecer da visibilidade urbana”, afirma.
Outra crítica vem do psicólogo Thiago Godoi Calil da Costa, que, para sua dissertação de mestrado em Ciências, defendida no ano passado, fez um resgate histórico do início da cracolândia e de programas adotados pelas gestões nesse período. Nela, questiona as políticas adotadas para a região.
"O movimento de constituição do espaço cracolândia na região central pode ser consequência desta ausência histórica de políticas de qualidade de vida e saúde para a população ocupante do bairro e seus arredores, incluindo as pessoas que fazem uso de drogas”, analisa Costa.
Histórico
Segundo relatos dos pesquisadores, a cocaína começou a circular na região central em meados dos anos 1950. Uma década depois, foi acentuada pelo aumento de pontos de prostituição. Ainda nos anos 1960, com a construção de uma rodoviária em frente à praça Júlio Prestes, o processo de degradação da área foi acelerado, na opinião deles, já que palacetes tradicionais foram derrubados para dar lugar aos ônibus. Desativada a rodoviária, em 1982, hotéis construídos para receber os passageiros e diversos outros serviços ficaram ociosos, mudando novamente o tipo de ocupação da região com a presença de moradores de rua.
Na esteira dessa degradação urbana, já no início da década de 1990, ocorreu a primeira apreensão de crack na região. O uso era disperso e o chamado fluxo --como é denominada a reunião de usuários para consumo da droga-- só começou a ocorrer no início dos anos 2000.
Êxodo da cracolândia
Uma das primeiras grandes ações na região para coibir a disseminação do crack foi feita em dezembro de 1998, quando órgãos da prefeitura e do governo do Estado se uniram numa operação para tentar prender os traficantes. Essa ação veio após denúncia da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo) de que o quadrilátero das ruas Triunfo, General Osório, Protestantes e Andradas já estava tomado.
A ex-prefeita Marta Suplicy --à época do PT e hoje senadora pelo PMDB-- foi questionada pela reportagem sobre quais ações tomou para coibir a cracolândia de então. A gestão da ex-prefeita informou em nota que, à época, centrou esforços no acolhimento de moradores de rua, já que, além das drogas, “os maiores problemas na região central eram a pobreza e o abandono por questões de saúde mental e alcoolismo, principalmente”, informa.
Findada a gestão da ex-petista, teve início o ciclo da administração dos ex-prefeitos José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD). Serra, hoje senador, foi procurado por intermédio de sua assessoria de imprensa por diversas vezes por telefone e e-mail para comentar o assunto. Em nenhuma atendeu aos pedidos de informações da reportagem.
Foi na gestão do tucano, no início de 2005, que as ações policiais, de demolição de imóveis ocupados por esses dependentes e traficantes, além de promessas --não executadas-- de reurbanização da área tiveram início.
À época, foram demolidos vários imóveis na rua dos Protestantes e General Couto Magalhães. Essa ação, segundo o mestre em Ciências Thiago Godoi Calil da Costa, fez com que os dependentes cruzassem a avenida Duque de Caxias e se instalassem nos arredores da praça Júlio Prestes. “A capacidade de mobilidade e a rápida ocupação da praça evidenciavam que a cracolândia permanecia”, afirma.
Pesquisadores indicam que o maior avanço de serviços específicos de acolhida para dependentes se deu na gestão Kassab. Porém, logo após uma nova operação conjunta entre prefeitura e Estado, no início de 2011, os dependentes migraram para as ruas Helvétia e Dino Bueno, onde construíram barracas para praticamente morar no local.
Um ano depois, em 2012, ainda na gestão Kassab, foi realizada a mais violenta ação na região. Denominada “Operação Sufoco”, ela foi duramente questionada pela Promotoria. À época o defensor público Carlos Weis relatou em um debate com deputados estaduais 32 denúncias de episódios de abusos por parte dos integrantes da força-tarefa. Tais abusos incluíam feridos pelo uso de balas de borracha e bombas de efeito moral. A situação levou a Defensoria Pública a recorrer à Justiça para conseguir uma decisão que impedia policiais e agentes de revistarem os usuários de crack sem justo motivo. “No objetivo de expulsar as pessoas, a Operação Sufoco foi um fracasso”, aponta Calil da Costa.
Tanto o é que os dependentes permaneceram no local durante toda a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), e só foram expulsos dessas duas vias e ocuparam a praça Princesa Isabel após a operação de Doria no local, no dia 21 de maio deste ano.
Os pesquisadores apontam que as ações violentas na região nunca tiveram fim, mesmo durante a operação “De Braços Abertos”, de Haddad. A diferença, segundo eles, é que o plano do petista oferecia ações de cuidados e acesso a direitos que até então não haviam sido colocadas em prática. Porém, nem tudo é confete para o petista.
“Fernando Haddad, incorporando certas demandas por direitos, inovou ao colocar os temas da moradia e trabalho, permeados por certa perspectiva de redução de danos, mas não conseguir romper nem com a ideia de reforma espacial nem com a proposição de tratamento diferenciado para tráfico e uso”, afirma a antropóloga Taniele Rui.
Em nota, a gestão do prefeito Haddad informou que não é correto dizer que o programa “De Braços Abertos” fracassou. “Várias entidades internacionais que acompanharam a sua implantação podem atestar isso. O que fracassou foi a ação policial de combate ao tráfico de drogas”.
As práticas adotadas hoje por Doria seguem o mesmo padrão de Serra e Kassab. “A política adotada por Doria não é eficaz para a cidade, as pessoas vão se ajuntar em outros territórios e outras cenas de uso vão surgir. Tal ação indica mais que tudo um desejo de expulsão, de limpeza, de aniquilamento. Esses pobres, sujos e emagrecidos usuários de crack não cabem na Cidade Linda de Doria”, diz Taniele, também autora de tese de doutorado sobre a cracolândia e docente na Unicamp.
Equívocos
Em nota, a gestão Doria informou considerar “bem-vinda a colaboração e participação de todos que possam ajudar, inclusive associações, doutores e professores especialistas no assunto”, porém, aponta “equívocos nos apontamentos”.
Segundo a prefeitura, a ação do dia 21 ocorreu “em razão de graves crimes, além de diversos abusos aos Direitos Humanos praticados pelos traficantes de drogas no local, como a exploração sexual de mulheres, sequestro, tortura e morte de quem não respeitava as regras impostas pelo tráfico”.
A nota considera erro afirmar que pretende usar ações de força, medidas autoritárias ou repressivas no tratamento dos dependentes químicos. “A base do projeto é e sempre foi o tratamento e acolhimento”, informou. A respeito da internação à força, alega ser “mais um instrumento para casos críticos e exceções”.
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