Preso com 'Pinho Sol' em protesto de 2013 vira símbolo e inspira mobilização em SP e Rio
Mobilizações em São Paulo e no Rio até o final deste mês adotaram o caso do catador de material reciclável Rafael Braga, 29, como símbolo para o que chamam de desequilíbrio do Judiciário e da sociedade no tratamento de casos de presos pobres e negros e de acusados de crimes de corrupção, como os condenados no âmbito da Operação Lava Jato.
Braga é o único preso remanescente dos protestos de junho de 2013 na capital fluminense, quando foi detido, denunciado e condenado por violação ao Estatuto do Desarmamento. Na ocasião, ele portava uma garrafa de água sanitária e outra, de desinfetante, próximo ao local onde milhares de pessoas se manifestavam contra o aumento das tarifas de transporte público. No próximo dia 20, a prisão completa quatro anos --ele está no Complexo de Bangu, na zona norte do Rio. Ainda em 2013 o catador acabou condenado a cinco anos de prisão --o Ministério Público e a Justiça entenderam que o material seria usado para coquetéis molotov--, mas obteve a redução da pena para quatro anos e oito meses.
Ano passado, no entanto, ele foi pego novamente pela polícia, enquanto cumpria a pena anterior no regime aberto e com tornozeleira eletrônica, supostamente portando 9,3 gramas de cocaína, 0,6 grama de maconha e um rojão --a defesa diz que a droga e o artefato foram plantados pela polícia porque Braga teria se negado a fornecer informações sobre o tráfico na Vila Cruzeiro, comunidade pobre vizinha dos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio, e onde a família dele ainda vive.
Como não era mais réu primário, o juiz Ricardo Coronha Pinheiro agravou a pena e, em abril passado, o condenou a 11 anos e três meses de prisão por tráfico de drogas e associação para o tráfico. Desde então, o rosto do rapaz ganhou muros no Rio e em São Paulo como forma de lembrar a situação dele e pedir que o caso seja revisto pelas autoridades. Ativistas entendem que as condições das duas prisões de Braga, em 2013 e 2016, são "obscuras" e contêm “arbitrariedades”.
Em São Paulo, onde é concentrada a agenda de debates, participam das ações historiadores, sociólogos, educadores e advogados ligados à defesa dos direitos humanos.
Rafael e Andreas Richthofen
Para a historiadora Suzane Jardim, uma das coordenadoras da agenda de eventos na capital paulista, o objetivo é amplificar o debate sobre um caso que, avalia, “beira o absurdo”.
“A ideia da mobilização surgiu quando da última condenação do Rafael e diante de uma maioria de presos, no país, composta por negros e pobres. Foi algo que nos gerou uma revolta muito grande, porque beirava o absurdo”, diz Suzane.
“A partir disso, temos definido uma dinâmica de estudos para instruir a população e discutir de modo mais aprofundado a dinâmica de racismo, de encarceramento em massa e de ataque aos movimentos sociais, que é tudo o que está representado na detecção do Rafael."
"Atuaremos em várias frentes --primeiramente em periferias-- em cerca de 40 eventos que discutirão o caso dele em escolas, comunidades, ONGs e universidades para que a gente não debata isso só em uma ‘bolha’ --ainda mais um caso com tantas falhas e brechas, como o pleno direito à defesa respeitado”, acrescenta a historiadora.
Ela comparou a repercussão do caso de Braga à localização do farmacêutico Andreas von Richthofen, 29, em estado de aparente surto, semana passada, na zona sul de São Paulo, e supostamente após uso de drogas.
“A diferença de tratamento do Estado e da sociedade a um Rafael Braga e a um Andreas von Richthofen é gritante: enquanto Andreas é visto como alguém em um ambiente que não deveria ser o dele, com as pessoas, chocadas, querendo tirá-lo daquilo e procurando a humanidade para depois se pensar no ato dele, Rafael é o rapaz negro, pobre e com que a Justiça considera sem voz”, afirma.
“Com Andreas, as pessoas procuram a humanidade dele para depois pensar no ato --o que queremos é essa questão seja expandida também a gente como o Rafael.”
Tolerância é menor com negros e pobres, diz ativista
Também na coordenação da agenda sobre Braga, a relações públicas Gabriela Moura, 29, afirma que o caso do carioca “não é uma situação isolada”.
“Queremos que as pessoas ampliem seus conhecimentos sobre encarceramento em massa e sobre essa cultura tão enraizada de não pensarem nisso como um problema de fato delas, nosso; é como se, a partir do momento em que o ‘bandido’ sai da vista, ele deixasse de ser problema nosso”, defende.
Além de expor o caso com mais destaque nas redes sociais e fora delas, outra meta, de acordo com Gabriela, é manifestar apoio à família do jovem.
“Estamos sempre em contato com a família do Rafael, sobretudo com a mãe dele. No Rio também há toda uma agenda de debates e palestras sobre esse caso. Queremos que lá, em São Paulo e onde mais pudermos levantar esse debate, o cidadão seja capaz de se solidarizar e se indignar tanto com a situação de um Rafael quanto a de um Andreas –porque, infelizmente, o que há é uma tolerância menor a situações igualmente trágicas e que envolvem gente sem a cor, o sobrenome e a aparência de um Andreas”, acredita.
“Queremos essa compreensão social para qualquer um que esteja no centro de uma história horrível”, concluiu.
Defesa cita soltura de José Dirceu
Nessa terça (6), cinco advogados que atuam voluntariamente na causa pelo DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), do Rio, desde 2013, impetraram pedido de habeas corpus à Justiça para que, assim como o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu foi solto mês passado sob a alegação de que não representaria ameaça à ordem pública, também o jovem possa responder ao processo por tráfico em liberdade. Ambos, aliás, haviam sido condenados a penas semelhantes: 11 anos de prisão em regime fechado.
Para a defesa do rapaz, há “muita coisa” em comum com o caso do petista e o de Braga --apesar de Dirceu ter sido condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, e Braga, por tráfico de drogas e associação para o tráfico.
Apesar de policiais terem acusado Braga de porte de drogas, advogados e uma testemunha negam que ele estivesse com os entorpecentes --a defesa sustenta que o flagrante foi forjado. A reportagem do UOL procurou a Polícia Militar do Rio de Janeiro sobre a alegação dos advogados de Braga, mas ainda não obteve resposta. A sentença que condenou o rapaz a 11 anos e três anos de prisão também contém o pagamento de R$ 1.687 de multa em favor do Estado.
Para ilustrar o que entendem como diferença de tratamento por parte da Justiça, a defesa de Braga adotou o caso do ex-ministro como "paradigma" no pedido de liberdade.
“Apresentamos o pedido de habeas corpus para que o Rafael responda o processo em liberdade. Usamos o caso do ex-ministro Dirceu como paradigma --não é uma situação idêntica, mas se ele teve pedido semelhante atendido porque a soltura não iria ferir a ordem pública cometendo novos delitos --e, mesmo acusado e condenado por lesar em milhões os cofres públicos, por que uma pessoa sem nenhuma periculosidade social, pobre, negra e com uma quantidade ínfima de drogas apreendidas não pode responder em liberdade?”, questionou o advogado Lucas da Silveira Sada, um dos cinco advogados que atuam voluntariamente na causa pelo DDH.
No texto do pedido de habeas corpus, ao qual o UOL teve acesso, os advogados afirmam que Braga teria sido “vítima de conduta criminosa dos policiais, que lhe atribuíram a posse do material ilícito em razão do não fornecimento de informações sobre o tráfico de drogas na localidade da prisão”.
Adiante, o documento lembra de julgamentos recentes da Operação Lava Jato, no STF (Supremo Tribunal Federal), nos quais a própria Corte “substituiu a prisão provisória de acusados condenados em primeiro grau de jurisdição por outras medidas cautelares previstas”. O caso exemplificado é justamente o pedido aceito pelo STF, no mês passado, em relação a Dirceu.
“A jurisprudência da mais alta Corte de Justiça do país reconhece, com absoluta razão, que pessoas pertencentes a poderosos grupos políticos ou econômicos, acusadas do cometimento de infrações penais ‘econômicas’ que teriam lesado o patrimônio pública na ordem de milhões, mesmo quando reincidentes, devem ser presumidas inocentes e ter resguardado o direito constitucional de recorrer em liberdade”, diz um trecho do pedido.
“Sendo assim, por qual razão o paciente, pobre, semianalfabeto, morador de favela, acusado de praticar, sem violência, o comércio de uma quantidade pequena de drogas ilícitas deve ser privado de sua liberdade antes da formação definitiva de culpa? O Estado de Direito se caracteriza pela sujeição de todos, de modo igualitário, à Lei”, enfatizam.
“A defesa pleiteia que o mesmo respeito com o qual são tratados os direitos individuais dos acusados por ‘crimes de colarinho branco’ seja aplicado ao paciente.”
Para advogada, violência do Estado se "sofisticou" em junho de 2013
O primeiro debate do calendário dos ativistas em São Paulo aconteceu semana passada na ONG Ação Educativa. Para a advogada Camila Marques, que participou na condição de coordenadora do centro de referência legal da ONG Artigo 19, o caso de Braga tem elementos de cerceamento da defesa.
“Acompanhamos o caso dele desde 2013. Existe uma marca nas respostas do Estado brasileiro aos protestos e manifestações de reprimi-las com a violência e a criminalização e, a partir de junho de 2013, isso se sofisticou e recrudesceu ainda mais”, considera.
“E o Rafael é prova dessa repressão maior à medida em que a própria perícia, à época, entendeu que água sanitária e desinfetante eram incapazes de causar esse tipo explosão. Mesmo assim, ele foi condenado”, prossegue a advogada.
“É uma condenação que representa a legitimação, por parte do Judiciário, da violência e da repressão policial. E é um tipo de seletividade de pena que se enquadra nesse perfil de pessoas que são mais frequentemente presas: negros e pobres de periferia”.
Na avaliação da advogada, “a tolerância da sociedade é muito maior para as violências do Estado contra esses grupos mais vulneráveis”.
Entenda o caso
O catador de material reciclável foi preso no dia 20 de junho de 2013, então com 25 anos, por suposto porte de artefato explosivo ou incendiário. Ele carregava duas garrafas plásticas lacradas de produtos de limpeza --uma de água sanitária e outra de desinfetante da marca Pinho Sol. Na ocasião, ele havia sido abordado por dois policiais civis próximo à Delegacia da Criança e Adolescente Vítima, na Lapa (região central do Rio). Perto dali, acontecia um ato que levou milhares de pessoas às ruas pela redução das tarifas de transporte coletivo.
Braga foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Rio no mesmo ano. A Promotoria entendeu que o jovem utilizaria os produtos para a produção de coquetel molotov --arma de fabricação caseira que já foi usada em protestos de rua--, o que violaria o Estatuto do Desarmamento. Ele respondeu ao processo preso até que, cinco meses depois, acabou condenado a cinco anos de prisão e dez dias de multa (R$ 1.687) --seria, a partir dali, o primeiro preso condenado no contexto das manifestações de junho de 2013 em todo o país.
Desde que Braga foi condenado, ele é defendido por advogados ativistas DDH, do Rio. Segundo a defesa, o rapaz não tinha, nem nunca teve relação com manifestações e teria sido pego como “bode expiatório”. Os materiais de limpeza encontrados com ele, segundo os advogados, estavam lacrados no momento do flagrante.
“A perícia feita por policiais civis constatou que havia etanol no vidro de desinfetante e indicou que os dois frascos estavam abertos, quando, na verdade, estavam com ele lacrados. Além disso, não se faz coquetel molotov com água sanitária, muito menos com recipiente plástico”, afirmou advogado.
Levado para a segunda instância, o caso de Braga teve autorizada a redução de pena, em agosto de 2014, dos cinco anos iniciais de detenção para quatro anos e oito meses. Em 2015, a defesa chegou a recorrer ao STF com recursos especial e extraordinário que acabaram não sendo aceitos.
Em janeiro de 2016, já na progressão de regime --primeiro o semiaberto, depois o aberto, com uso de tornozeleira eletrônica--, Braga foi novamente preso sob a acusação de tráfico de drogas e associação para o tráfico. De acordo com os policiais que o detiveram, ele estaria com 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão --embora o rapaz tenha alegado que não era o dono do material.
A condenação a 11 anos, três meses e multa de R$ 1.687 ao Estado foi assinada pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro. O magistrado considerou coerentes os testemunhos dos policiais ouvidos como parte da acusação, mas "as declarações da testemunha Evelyn Barbara, arrolada pela defesa do réu, visavam tão somente eximir as responsabilidades criminais do acusado Rafael Braga em razão de seus laços com a família do mesmo e por conhecê-lo ‘por muitos anos’ como vizinho”.
No pedido de habeas corpus, no entanto, os advogados reforçaram que o testemunho da vizinha de Braga “contraria a versão dos policiais”, uma vez que ela “presenciou a abordagem policial sofrida pelo paciente quando pode constar que o mesmo estava com os braços soltos e não carregava qualquer saco plástico em suas mãos que pudesse conter o material ilícito cuja posse lhe foi atribuída."
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