Com tortura e superlotação, unidades brasileiras para jovens infratores chocam órgãos internacionais
Tortura, superlotação, cooptação de facções, falta de atividades de ressocialização e estrutura precária. Estes são alguns dos problemas encontrados em unidades socioeducativas brasileiras de internação de adolescentes que cometeram atos infracionais.
Os dados constam em relatórios de inspeções feitos por entidades e órgãos públicos e revelam as precárias condições que levaram o Brasil a ser denunciado a organismos internacionais de direitos humanos. O governo federal promete medidas para melhorar as unidades pelo país e fala que está criando um Pacto Nacional pelo Sistema Socioeducativo (leia mais ao final do texto).
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No início de junho, nove adolescentes morreram em motins em unidades na Paraíba e em Pernambuco. Em ambos os casos, foram feitos alertas dos problemas por meio de relatórios.
No Lar do Garoto, onde sete jovens morreram queimados, documento já apontava superlotação e falta de água no local. Estado e Poder Judiciário trocaram farpas e deram explicações divergentes sobre o episódio. Além disso, na Paraíba, os centros já sofrem com cooptação de adolescentes por facções.
Em Pernambuco, o palco de duas mortes foi a unidade da Funase (Fundação de Atendimento Socioeducativo), em Abreu e Lima, onde mais de 30 internos também escaparam no mesmo dia.
Em unidades de outras cidades, mais seis pessoas foram mortas em motins (quatro em Vitória de Santo Antão, uma em Caruaru e outra em Abreu e Lima). O governo anunciou um plano para reestruturar a fundação.
O UOL analisou diversos relatórios de inspeções feitos em 14 unidades da federação feitos por instituições, como Ministério Público, Conselhos da Criança e Adolescente e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e ONGs (organizações não governamentais) de direitos humanos, e constatou que, em todos os casos, há relatos de tortura, superlotação e carência em prestação de serviços previstos por lei.
As análises --sejam motivadas por rotina ou após denúncias-- foram feitas em documentos que investigaram a unidades de Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Distrito Federal, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Piauí, Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte e Rondônia.
"Era para ter cultura, esporte, lazer, estudo, mas nada disso ocorre. A sociedade está mantendo um sistema sem resposta nenhuma", afirma Everaldo Patriota, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e coordenador a comissão de direito de pessoas privadas da liberdade. Ele diz que a única exceção à superlotação e à estrutura precária é o Paraná, onde não há mais adolescentes do que permite a capacidade dos prédios.
Dados do sistema nacional estão desatualizados
Patriota ainda explica que, em 2012, foi criado o Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que tem como missão organizar a execução das medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes. O último relatório publicado pelo órgão --ligado ao Ministério dos Direitos Humanos-- foi com dados de 2014.
Naquele ano, foi traçado o último raio-x do sistema no Brasil, quando havia 24.628 adolescentes e jovens (12 a 21 anos) em internação, internação provisória e semiliberdade. Deles, 70% estavam privados de liberdade por crimes patrimoniais e de tráfico e 9% respondiam por homicídio.
"As unidades deveriam ter o padrão Sinase, como foi definido por lei, mas isso nunca foi implantado. Não há alojamentos, apenas celas, e normalmente estão superlotadas, como na Paraíba --onde caberiam 44 havia 200 e pouco", afirma.
Entre as medidas previstas por lei, essas unidades deveriam ter ensino, terapia ocupacional e atendimento psicológico e médico. Mas poucas fazem isso.
Em Teresina, foram vistoriadas em dezembro quatro unidades de acolhimento. Entre os problemas constatados estão a falta de materiais pedagógicos, número insuficiente de socioeducadores, superlotação, condições precárias de higiene, além da escassez de medicamentos e insumos.
"As facções já estão dominando essas unidades"
Patriota fez vistoria em várias unidades do país nos últimos meses e diz que a reprodução do modelo de presídios fez com que um dos principais problemas entre os adultos passasse a ganhar força nas unidades juvenis.
"A primeira Constituição, de 1822, previa prisões em locais amplos e arejados e divisão de acordo com o crime. Aqui você pega um adolescente de 14 anos que pegou um celular e junta com um de 17 que matou duas pessoas. É uma tragédia. Somos o país que pior custodia pessoas no mundo."
"As facções já estão dominando, estão entrando nessas unidades. O Estado descuidou tanto que hoje já está com muita infiltração [de organizações criminosas]", completa.
Rafael Custódio, advogado da ONG Conectas, diz que episódios de violência têm se repetido com frequência preocupante no país.
"Existe um grau de violação institucional dos direitos desses internos. O adolescente é tratado pelo sistema legal como uma pessoa de segunda classe. Ou seja, por serem adolescentes --em sua maioria-- pobres, pretos ou partos, moradores da periferia, o sistema vem retirando todo direito que essa população pode ter. É um componente racial e de classe muito forte. Essas pessoas não têm o direito reconhecido", explica.
Para ele, há uma "infeliz reprodução" das "mazelas do sistema prisional adulto" nas unidades para adolescentes.
"O Estado é eficiente para levar os meninos para dentro das unidades, mas a partir daí os abandona, não provem as mínimas condições --e não se preocupa com os impactos que isso vai representar na vida desse adolescente. A tortura generalizada faz parte dessa lógica", diz.
Ele também concorda que o sistema nacional está longe de ser eficiente. "O Brasil se comprometeu com o Sinase, que tem a ideia de fazer um monitoramento para saber como funcionam essas unidades, mas ele se nega a fazer. Em paralelo, entidades de direitos humanos e familiares têm mostrado que existe um diagnóstico de violação de direitos."
Denúncia de 26 entidades internacionais
Dillyane Ribeiro, integrante do Cedeca (Centro da Defesa da Criança e do Adolescente) do Ceará, esteve em Washington, em março, para apresentar uma denúncia assinada por 26 entidades à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Ela relatou denúncias como tortura, revista vexatória e outros tratamentos cruéis e desumanos, além de mortes por ação de agentes públicos ou com omissão de socorro destes, insalubridade dos centros, falta de atividades educativas e de atendimento em saúde.
"Há muitos anos o Brasil vem sendo denunciado pela situação do sistema socioeducativo", diz. "Com relação aos casos, o Brasil já foi denunciado pela morte e tortura de adolescentes no sistema. Na ONU, na última revisão periódica universal [de maio de 2017], o Brasil também foi cobrado pelo tratamento dado aos adolescentes que cometem ato infracional", acrescenta.
Em pelo menos quatro casos, conta, houve expedição de medidas cautelares. "No Sistema Interamericano de Direitos, a comissão expediu medidas cautelares pela situação de gravidade e urgência nas unidades do Ceará e na Fundação Casa Cedro, em São Paulo. Na Corte Interamericana, existem Medidas Provisórias com relação à Unidade de Internação Socioeducativa [UNIS] em Cariacica no Espírito Santo. A antiga Febem Tatuapé, em São Paulo, também foi alvo dessas medidas", afirma.
“Os organismos internacionais cobram que o Estado brasileiro garanta a vida e a integridade física dos adolescentes sob a sua custódia, o fim da superlotação, a garantia de profissionais capacitados e em número suficiente e a oferta de educação e profissionalização. Ou seja, não se está cobrando mais do que o respeito à própria Constituição e às leis brasileiras”, diz.
Pesquisadora do tema há quase duas décadas, a professora Camila Marinho, da UECE (Universidade Estadual do Ceará), afirma que, no Ceará, por exemplo, os jovens se organizam dentro das unidades por grupos, "que podem ser de bairros, de torcidas de futebol e das facções".
Para ela, há um erro do pensamento da população de que jovens não são punidos. "A população acredita que a redução da maioridade penal reduziria a violência, mas os jovens já estão encarcerados no nosso país. Por isso que digo e repito: precisamos responsabilizar o Estado e o Judiciário sobre os casos de violência envolvendo a juventude", afirma.
Ministério promete atualização de dados
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, a sistematização de dados do Levantamento Anual de 2015 do sistema socioeducativo será realizada e publicada no segundo semestre de 2017. "Sempre há um hiato de mais de um ano entre as publicações, mas mantemos o compromisso de publicar uma série histórica com os mesmos dados", informou ao UOL.
A pasta ainda disse que "está em construção o Pacto Nacional pelo Sistema Socioeducativo, que envolverá as três esferas de Poder, no âmbito executivo e judiciário, para garantir o acesso à Justiça, os direitos humanos dos internos nas unidades executoras de medidas socioeducativas em meio fechado e o fortalecimento e a implantação das medidas de semiliberdade e meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade)".
Disse também que está em elaboração "normas de referência para a gestão dos aspectos administrativos e pedagógicos do atendimento socioeducativo, com os seguintes princípios: a) pedagógico; b) modelo de gestão com coordenação e cofinanciamento nos três níveis do Poder Executivo; c) atendimento socioeducativo territorializado, regionalizado, com participação social e gestão democrática, intersetorialidade e responsabilização; d) prevalência das medidas socioeducativas em meio aberto".
A ideia, diz a pasta, é oferecer um "padrão nacional qualitativo para o atendimento de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas", que terão normas de referência em arquitetura socioeducativa, de gestão e de segurança.
"Já estão em fase de finalização e apreciação das políticas setoriais envolvidas com o sistema de atendimento socioeducativo", afirma.
O ministério ainda disse que mantém a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e realiza "reuniões periódicas com os órgãos do sistema de garantia de direitos nacionais e nos Estados (sistema de justiça, conselhos de direitos e políticas setoriais) e as visitas às unidades socioeducativas que visam atuar de forma preventiva e escutar adolescentes e profissionais".
"Destacam-se duas ações centrais para atuar na prevenção da violência institucional: a formação permanente dos/as profissionais por meio da Escola Nacional de Socioeducação e o apoio a inserção de representantes das políticas socioeducativas nos Comitês e Mecanismos Estaduais e Distrital de Prevenção e Combate à Tortura. Ambas as ações são parte do Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo (Resolução 160/2013 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente)", finaliza.
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