Após chacina de 9 em MT, coveiro se antecipa e trabalha para abrir novas covas
![O coveiro Valdinei Carço se antecipa e abre novas covas em Colniza (MT) após chacina que matou nove trabalhadores rurais - Ahmad Jarrah/Repórter Brasil](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/f0/2017/07/06/o-coveiro-valdinei-carco-se-antecipa-e-abre-novas-covas-em-colniza-mt-apos-chacina-que-matou-nove-trabalhadores-rurais-1499372191465_615x300.jpg)
Em um dia de aparente tranquilidade, sem velório ou enterro, o coveiro Valdinei Carço abre mais uma cova no chão de terra vermelha, ao lado de outra, recém-aberta. Os buracos seguem uma fila linear, trabalho que ele exibe com orgulho.
Túmulos à espera de um dono não eram comuns até a última chacina em Taquaruçu do Norte (distrito de Colniza), em 19 de abril, quando nove homens foram executados em disputas de terra. Carço enterrou cinco. "Tinha gente demais, até atrapalhava o trabalho", diz, sobre o tumulto daquele dia. Por isso, diz, decidiu se antecipar à próxima chacina, tema de conversas na pacata e hostil Colniza.
"A violência impera em Colniza", diz Cristiano Cabral, coordenador estadual da CPT. O medo acua até os que lutam pelos direitos da terra, como é o caso de Cabral.
Ele só aceitou falar com a Repórter Brasil um mês depois da chacina. Na conversa, se lembrou de outro crime que chocou a cidade, quando duas lideranças rurais foram assassinadas depois de denunciarem a ligação de políticos e policiais com a extração ilegal de madeira à Ouvidoria Agrária Nacional. "Ali tudo gira em torno dos conflitos agrários, que envolvem trabalhadores, grileiros, fazendeiros, empresários, milícias e políticos", diz.
Taquaruçu no corredor da morte
Outra razão para a demora é que Taquaruçu não dispõe de sistema de telefonia nem de rede elétrica. Isso obriga os moradores a se deslocarem até o distrito mais próximo, a cerca de 30 km.
Os primeiros relatos sobre o crime traziam a informação de que crianças e idosos estavam entre os mortos. Policiais militares e civis só começaram a se deslocar para o local do crime no dia 20.
O trajeto de Colniza até Taquaruçu, zona rural próxima à fronteira de Rondônia, conta 250 km de estrada de terra. Nem o aplicativo Google Maps encontra a rota. A viagem pode levar de 16 horas a três dias, variando de acordo com as chuvas, que favorecem derrapagens e atolamentos.
Kellen Chaves era casada com um dos trabalhadores assassinados havia oito anos. Por telefone, ela diz que soube da chacina no mesmo dia que a polícia.
Dois sobreviventes que conseguiram fugir deram a notícia. "Fiquei em choque", diz, resignada. "Não saí da vila esperando a polícia chegar, porque eu não queria acreditar que ele estava morto", diz.
No dia 21, a polícia alcançou as margens do rio Roosevelt. Para chegar ao local exato das mortes, a Linha 15 (nomenclatura das vias abertas a partir da vila principal), os agentes de segurança pública utilizaram uma balsa e, depois, percorreram, em motos, mais de 20 km em mata fechada.
Só naquele momento a polícia descobriu o tamanho da chacina: nove homens adultos mortos, cujos corpos estavam ao longo de 9 km da Linha 15. Nas motos, improvisaram "carriolas" para levar os corpos até a margem do rio.
O perito Daniel Soares aguardava-os na beira do Roosevelt. Por causa do alto número de vítimas, recorreu a protocolos da Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal).
"Em um caso extremo como esse, você precisa estar amparado de todos os lados", diz o perito. "Como tínhamos muitas vítimas, optei pelo protocolo para agilizar o processo". Por isso, a pré-identificação dos corpos começou ali mesmo. No final do dia 21, os cadáveres, em caixões, seguiram com a equipe multitarefa para Colniza.
Havia tiros de calibre 12 na cabeça ou dado pelas costas (em sete casos), degolas e "esgorjamento" (corte de fora a fora no pescoço sem desprender a cabeça). "Empregaram muita violência", diz Soares.
Repassar informações sobre os cadáveres foi outra missão de Soares. Atento às orientações da Interpol, ele pediu ajuda para reunir os familiares dos mortos em um mesmo local. Assim, informaria todos de uma só vez.
Em um ato ecumênico, conseguiram um local para receber os parentes. Um pastor conversou com um padre, que cedeu o espaço anexo à igreja. "Naquele momento não existia diferença de religiões. A preocupação era dar acolhimento às famílias das vítimas da chacina de Colniza." Às 15h30, terminaram o trabalho. No mesmo dia, os familiares, tristes e resignados, fizeram o enterro.
A nota cita a medida provisória 759. Duramente criticada pelo Ministério Público Federal, a "MP da grilagem", como ficou conhecida, altera as normas sobre a regularização fundiária em todo o país.
Na prática, permite a legalização de áreas de até 2.500 hectares. Movimentos sociais e institutos de defesa socioambientais afirmam que a medida favorecerá grileiros e grandes donos de terras, aprofundando a concentração de terras e, assim, os conflitos no campo.
O grupo de extermínio da madeira
?Uma segunda equipe da força-tarefa montada para o caso desembarcou em Colniza no dia 26. Marcelo Muniz, da Delegacia de Homicídios e de Proteção à Pessoa de Cuiabá, foi um dos integrantes da comitiva.
Com a investigação em estágio avançado, diz, identificaram, a partir de apelidos, três executores do grupo de extermínio guaxebas (como são conhecidos os pistoleiros na região). Muniz decretou prisão preventiva de Pedro Ramos Nogueira, 52, de Paulo Neves Nogueira, 35 --tio e sobrinho, respectivamente--, e do grileiro Ronaldo Dalmoneck, 33.
Um dia após o anúncio dos três executores, a equipe da perícia chegou ao local do crime --que não foi isolado.
Uma cena chamou a atenção do perito Soares: a casa do pastor Sebastião Ferreira de Souza, morto a golpes de facão. "Eu me lembro porque era o único que tinha mancha de sangue ao redor do barraco e na parte interna", diz.
Souza foi o mais machucado. Segundo informações obtidas pela Repórter Brasil, ele era visto como liderança local, atuando na defesa das terras em Taquaruçu.
As investigações mostraram que a presença dos trabalhadores na região contrariava os interesses do empresário do ramo madeireiro Valdelir João de Souza, 41, o "Polaco Marceneiro".
Apontado pela polícia como mandante do crime, ele é proprietário da Madeireira Cedroarana e da G.A Indústria, Comércio e Exportação de Madeiras. Nos últimos dez anos, o Ibama aplicou dez multas por irregularidades às empresas de Valdelir, somando R$ 901.879,16. Desse total, ele pagou R$ 2.500 --ou 0,27%.
O Ministério Público do Estado aceitou denúncia contra todos os suspeitos. No documento, publicado em 15 de maio, eles são acusados de formação de milícia privada e homicídio qualificado.
A disputa por terras --o que está em cima e embaixo delas, aliás-- é o elemento central da denúncia. "Segundo consta, a motivação dos crimes seria extrair recursos naturais dessas terras e consequentemente os envolvidos no crime se apossariam delas, bem como para assustar os moradores e expulsá-los das terras futuramente."
Por telefone, a assessoria de imprensa do MP informou que o promotor do caso Willian Oguido Ogama não daria entrevistas. A reportagem tentou entrar em contato com os advogados dos cinco réus, sem sucesso.
A derrubada de árvores já deu dois títulos vexatórios a Colniza: campeã em desmatamento em Mato Grosso e terceira em desflorestamento na chamada Amazônia Legal, área que engloba nove Estados brasileiros.
Em fevereiro de 2017, graças à pressão de organizações socioambientais, o governo do Estado e o Ministério do Meio Ambiente assinaram um termo de cooperação para a criação de uma base avançada de monitoramento e fiscalização na região noroeste, onde ficam os dez municípios que mais derrubam árvores no Mato Grosso --justamente onde ocorreu a chacina.
A ausência de uma política agrária e da presença do Estado em uma área de conflitos, diz o sociólogo Jalcione de Almeida, resultam em "intimidação e morte".
O presidente do Sindicato Rural de Colniza, Milton de Souza Amorim, afirma que única solução seria dar títulos de posses de terra. "Os órgãos tinham que cuidar, assentar o povo."
Até agora, os guaxebas (pistoleiros) Paulo, Pedro e Moisés estão presos. Os demais são considerados foragidos.
Outra linha da investigação é a relação das mortes com o garimpo na região. Por segurança, Pick despachou os documentos da investigação para a capital, Cuiabá.
Os moradores de Taquaruçu permanecem reféns do medo --mesmo com o reforço da tropa de elite da polícia. A equipe da Repórter Brasil se encontrou com moradores de Taquaruçu que retornavam para casa duas semanas após a chacina. Com medo, não quiseram falar.
Familiares dos mortos vivem o mesmo drama, com um agravante: estão passando fome.
Como os homens assassinados eram o arrimo financeiro, diz Cabral, coordenador da Comissão Pastoral da Terra, agora sobrevivem com doações. A pior situação é a de Neide* (nome fictício), viúva, com quatro filhos pequenos. "Estão todos abandonados, como sempre estiveram", diz Cabral.
* Ilustração: Samuel Bono; infográficos: Eugênia Pessoa
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