Raul Juste Lores

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Opinião

O campo minado que ataca nossos avós mais queridos

Jayme Kow era o embaixador do shopping Higienópolis, brincou o rabino Malowany, ao descrever o amigo que tinha acabado de morrer. Era a alegria da padaria Aracaju, na rua Maranhão, onde tomava café da manhã diariamente com um grupo de amigos entre 70 e quase 90 anos.

O primeiro cliente de quase todos os comércios do bairro, acrescentou o padeiro Luiz Américo Camargo, da Na Janela. "Seu Jayme adorava colecionar notas fiscais número 1 dos estabelecimentos que abri no bairro", descreveu em seu Instagram. Ajuda fundamental para o sofrido comércio de rua.

Há dez dias, levou um tombo ao sair da Aracaju. Logo se formou uma pequena multidão de amigos. A ajuda até que chegou rápido, o Hospital Samaritano fica a metros. Mas a batida na cabeça foi cruel com seu Jayme. Morreu pouco depois, aos 86 anos, jeito de 70, agitação de jovem, sorriso de menino.

Sua nora, Rita Lobo, em desabafo nas redes sociais, disse que foi uma semana de "susto e raiva" para família e amigos. Infelizmente, a história tem se repetido. Sem reações.

Nelson Freire sem tocar

Nelson Freire
Nelson Freire Imagem: Divulgação

Nelson Freire, o maior pianista da história brasileira, personagem de um magnífico documentário com seu nome, dirigido por João Moreira Salles, teve fim parecido. Mas de sofrimento longo.

O calçadão de pedras portuguesas na avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, tem buracos e partes soltas. Ali, no entorno do posto 3, o pianista caiu em outubro de 2019. Estava com 75 anos.

Nelson nunca mais voltou a tocar, após uma fratura em um osso do braço. Por incrível que pareça, não causou comoção nacional.

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Na época, o pianista passou por uma cirurgia no Hospital Copa D'Or, em Copacabana, na zona sul do Rio, e precisou cancelar recitais e compromissos já firmados.

A previsão era que Nelson ficasse bom em dois meses. Mas ele jamais conseguiu recuperar todos os movimentos. Morreu exatos dois anos depois, aos 77, de uma queda em sua casa na Joatinga, também no Rio.

10 mil mortos

Todos os dias no Brasil, 63 idosos, em média, vão parar no hospital após serem vítimas de queda da própria altura. Desse total, 19 não resistem.

Os dados do Ministério da Saúde revelam que esse tipo de acidente cresceu de forma acelerada no país.

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Em 2013, 4.816 idosos morreram vítimas de queda da própria altura. Já em 2022, esse número saltou para 9.592.

Dez mil mortes são um número escabroso para qualquer tipo de fatalidade, não?

Já é a terceira causa de mortalidade entre as pessoas com mais de 65 anos. As quedas mataram 70.516 idosos entre 2013 e 2022 no país.

Calçadas ficam em um limbo legal no Brasil. Até em áreas ricas, de Higienópolis à Barra da Tijuca. Nas duas maiores cidades brasileiras, a responsabilidade pela manutenção e o reparo das calçadas é do proprietário, inquilino, condomínio ou comércio, que podem ser notificados e receber uma multa. Alguém se lembra de alguma punição do tipo? Nesse caso, nem indústria da multa surge.

Com sorte, todos envelheceremos. E aos 70, os 80 do futuro, a maioria não vai aceitar ficar em casa isolado vendo novelas antigas. Cada geração que envelhece é mais ativa que a anterior. Mas estamos deixando um campo minado para todos cairmos.

No velório de Jayme Kow, no Cemitério Israelita do Butantã, amigos e parentes se perguntavam se teria chovido no dia. Os filhos Fábio e Ilan, inconsoláveis. Não, o solo estava seco. Será que a calçada estava boa? Ele teria tropeçado? Foi um mau jeito? Ninguém viu, ninguém sabia. Mas nossas calçadas estão sempre de mau jeito.

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Prefeituras, em tese, deveriam se responsabilizar por reparos nas calçadas que ficam em frente a prédios públicos, como no caso do calçadão das praias, e nas praças e parques. Rotos e esfarrapados olham pro lado. Deveriam olhar para baixo e agir.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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