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Sem dinheiro, único cemitério de escravos das Américas fechará em setembro no Rio. Falta interesse?

15.mar.2017 - Escavações de ossadas no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos - Ana Branco/Agência O Globo
15.mar.2017 - Escavações de ossadas no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos Imagem: Ana Branco/Agência O Globo

Carolina Farias

Colaboração para o UOL, no Rio

11/08/2017 04h00

Único sítio arqueológico do maior mercado de escravos das Américas, o chamado Cemitério dos Pretos Novos, na região central do Rio de Janeiro, onde funciona um instituto de pesquisa desse período da história do Brasil, deve encerrar suas atividades em setembro por falta de dinheiro. As ossadas foram encontradas acidentalmente durante uma obra no chão de um sobrado no bairro da Gamboa, em 1996. O sítio foi mantido pelo casal proprietário do imóvel que o transformou no IPN (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos).

Um convênio com a prefeitura, firmado de 2013, garantia verba para pagar despesas básicas de funcionamento --funcionários e pesquisadores são voluntários--, mas o aporte terminou em março passado e não será renovado.

O lugar é um dos pilares para o reconhecimento do cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidades para a Educação, Ciência e Cultura), que aconteceu no último dia 9 de julho, em Cracóvia, na Polônia. Dos cerca de 2 milhões de escravizados trazidos para o Estado do Rio entre os séculos 18 e 19 --um milhão passou pelo Valongo.

Se o IPN fechar, o cais corre o risco de perder o título de patrimônio.

A região onde está o cais, o cemitério e também o quilombo da Pedra do Sal, é chamada de Pequena África por conta desses elementos. O sobrado onde o sítio foi encontrado fica na rua Pedro Ernesto. O termo “pretos novos” era usado por serem africanos escravizados recém-chegados ao país. Debilitados pelas péssimas condições da viagem, muitos morriam nos primeiros dias após a chegada. Havia também os que chegavam mortos.

Segundo Merced Guimarães, criadora e diretora do IPN, a estimativa é que de entre 30 e 50 mil negros escravizados tenham sido enterrados no cemitério, que funcionou entre os anos de 1774 e 1830.

“Pesquisadores que passaram por aqui atestaram que é o único cemitério das Américas com certeza de terem enterrados africanos”, diz Merced.

O IPN começou a ganhar forma em 2005, quando Merced, uma empresária do setor de controle de pragas, ao lado do marido, Petruccio Guimarães, resolveram montar um grupo de pesquisas. No lugar, foram encontrados cerca de 5.000 fragmentos arqueológicos e ossos não cremados, que permitiram identificar 28 corpos, a maioria deles de homens com idade entre 18 e 25 anos. Também foram encontradas pontas de lança, argolas, colares, contas de vidro, peças de barro, porcelanas e conchas.

“Somos independentes, sem fins lucrativos. No começo, nem sabíamos direito o que era. A prefeitura sempre foi omissa nessa questão. Éramos o ‘casal de malucos' brigando pela história. Passaram-se três governos e, quando veio a revitalização [da região portuária] e a descoberta do Valongo [em 2011], uma história começou a ser contada”, afirma a diretora.

A ameaça de fechar não é a primeira. Merced já havia declarado que fecharia em 2013, quando houve a aproximação da Cdurp (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro), gestora da prefeitura no Porto Maravilha, região que passou por revitalização. A Pequena África está inserida nessa área.

“Usava o dinheiro da minha empresa e não tinha mais como manter. Então a Cdurp fez um estudo e começaram com um aporte anual de R$ 30 mil, que dava para pagar água, luz, telefone e material limpeza. Funcionários não. Em 2014, foi o mesmo valor e, em 2015, foi R$ 60 mil por conta do aumento dos gastos. Ano passado foram R$ 85 mil porque pagamos uma pessoa para fazer o Circuito da Herança Africana [roteiro de passeio] que foi um sucesso, mais de 1.500 pessoas em um ano. Esse ano não aconteceu nada”, relatou Merced.

Segundo ela, a companhia gestora do Porto Maravilha informou que não tinha mais como fazer o repasse ao IPN.

Instituto Pretos Novos - Marcos Ramos/Agência O Globo - Marcos Ramos/Agência O Globo
"Em setembro não temos mais dinheiro, não tem como continuar", diz Merced Guimarães
Imagem: Marcos Ramos/Agência O Globo

“Em março não tínhamos mais dinheiro para pagar a luz. Recebemos R$ 8.000 da prefeitura, fizemos uma campanha de doações e o dinheiro acaba em agosto. Em setembro não temos mais dinheiro, não tem como continuar. Precisamos de no mínimo R$ 6.000 por mês”, explica.

Como o memorial era financiado?

Para se entender de onde vinha o dinheiro repassado do Cdurp ao IPN, é preciso entender como foi a operação financeira que obteve recursos para a revitalização da região.

À época, a prefeitura criou um modelo de venda de potencial adicional de construção da área, com objetivo de garantir as obras e a prestação de serviços até 2026 na região. O potencial de construção é o que a legislação municipal define sobre tipo, altura e tamanho de imóvel por bairro.

Para a recuperação de regiões degradadas, o Estatuto das Cidades prevê a criação de operações urbanas em que o município estabelece regras específicas para novas construções. Ou seja, são permitidos imóveis maiores em troca de contribuição financeira. E isso se deu por meio da venda dos Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) --cada título equivale a uma quantidade de metros quadrados a ser construída.

O arrecadado com a venda de Cepacs deveria ser utilizado para a requalificação urbana dos 5 milhões de metros quadrados da área, como a reconstrução das redes de drenagem, água, esgoto, gás natural, eletricidade, iluminação pública e telecomunicações, urbanização e implantação do novo sistema viário, além da conservação e da prestação de serviços.

De todo o valor arrecadado, ao menos 3% deveriam ser destinados à valorização do patrimônio material e imaterial da área --desse percentual saiu o aporte que era repassado ao IPN.

De acordo com o atual presidente da Cdurp, Antonio Carlos Mendes Barbosa, em 2011, os 3% eram o equivalente a R$ 130 milhões.

“Era um valor que seria usado somente em projetos de revitalização, e valorização da cultura e monumentos tombados. Foi feito um concurso onde foram eleitos projetos para isso, como a revitalização do largo São Francisco da Prainha, do cais do Valongo. O dinheiro acabou em março deste ano. Foram gastos os R$ 130 milhões e sua rentabilidade. Chegamos aqui com R$ 1.600 no caixa. Não pude renovar o contrato com o IPN”, justifica Barbosa.

Para o presidente da comissão gestora do Porto Maravilha, a Secretaria Municipal de Cultura poderia colaborar com o IPN.

“A saída é, no ano que vem, a Secretaria da Cultura colocar no orçamento deles. Somos só os operadores aqui e temos prazo para acabar em 2026. Esse equipamento deve ser entregue para quem é devido”, acrescentou.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria da Cultura informou que foi procurada pelo IPN na busca de mecanismos para a manutenção do espaço. No entanto, a pasta diz que não havia previsto orçamento para este ano para esse tipo de repasse.

O órgão afirmou que dá ao IPN apoio institucional, como impressão de panfletos e sede instalações.

A secretaria ainda acrescentou que o MEL (Museu da Escravidão e da Liberdade) --nome provisório, ainda em debate--, a ser construído naquela região, colocará o IPN no processo de criação dessa instituição.

Ainda não há um orçamento fechado para o museu, que também não tem data para sair do papel.

Pesquisa bancada do próprio bolso

Quem coordena as pesquisas no IPN é Reinaldo Tavares, arqueólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal da América Latina). São ao menos dez anos de pesquisa no local --ele concluiu mestrado e está fazendo seu doutorado com as pesquisas no IPN.

“Na primeira fase de pesquisas fizemos o georreferenciamento para saber as dimensões e fazer a preservação. Depois, na rua, encontramos fragmentos na rua e, em terceiro, fizemos a prospecção dentro do cemitério para entender contextos arqueológicos. Agora acabamos de achar o primeiro esqueleto inteiro”, conta o arqueólogo.

A ossada completa foi achada em maio passado. É de uma mulher, que morreu com aproximadamente 20 anos. Ela foi batizada de Bakhita, homenagem à Josefina Bakhita, primeira santa africana.

Segundo Tavares, o cemitério era regular, registrado pela Igreja, e pela localização corrobora com os textos de cronistas da época. Ele explicou por que é considerado raro.

“É o único cemitério conhecido no mundo no contexto de mercado de escravos. É o único africano mesmo, com genética. Socialmente é o mais importante sítio no Rio. Não existe nada da diáspora africana tão importante quanto um sítio de entrada”, defende Tavares, que trabalha com outros quatro pesquisadores no lugar, todos bancando os custos da pesquisa.

Temos pesquisadores de ponta trabalhando lá. Pagamos do próprio bolso, alimentação, transporte, equipamento. [O governo] fecha os olhos. Esse sítio começou a dar respostas agora. Se parar vai atrasar pesquisas importantes.

Reinaldo Tavares, arqueólogo do Museu Nacional da UFRJ

Segundo o pesquisador, o caráter educativo do IPN é uma de suas características mais importantes. São palestras, oficinas, cursos, mostras, além da visitação --tudo com entrada gratuita.

“É o único sítio escavado para público ver, para saber o que é pesquisa arqueológica. Graças ao IPN, o cais foi tombado, é um conjunto importante. Se ele se fechar, não há garantia de abertura no futuro, na pesquisa, na visitação e no desejo de a sociedade em manter essa memória aberta, é como fechar um livro sem ser lido”, afirmou o pesquisador.

Integrante do conselho científico internacional do projeto Rota do Escravo da Unesco, o antropólogo e fotógrafo Milton Guran foi convidado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para coordenar o dossiê da candidatura do cais para patrimônio. Ele explica a função do IPN no título.

“O cais como sítio é pobre, a força, o que faz ser merecido o título, é seu caráter simbólico. Ele representa 10 milhões dos que chegaram vivos nas Américas. Destes 4 milhões vieram para o Brasil, 2,4 milhões para o Rio e 1 milhão pelo Valongo. É o maior porto escravagista da história da humanidade. Ele se apoia por ser um vestígio material, o calçamento. Mas o cemitério é um vestígio concreto da presença dos africanos”, afirmou.

Instituto Pretos Novos - Eduardo Naddar/Agência O Globo - Eduardo Naddar/Agência O Globo
"Esse patrimônio cultural é um holocausto negro e por que o negligenciamos?", questiona Washington Fajardo, ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade
Imagem: Eduardo Naddar/Agência O Globo

Guran explica que a candidatura se apoiou no vestígio material, na ocupação humana daquela área pela população africana e pelos seus descendentes, como é o caso de onde fica o Quilombo da Pedra do Sal.

Com a conquista do título, a prefeitura tem de cumprir uma série de compromissos na região do bem tombado e no cais em si. Um desses compromissos, que tem de ser cumprido até 2019, “é empreender estudos visando a recuperação através da sinalização interpretativa e orientativa das relações entre o sítio arqueológico, a Baía de Guanabara, o Cemitério dos Pretos Novos e demais componentes do contexto de comércio de africanos escravizados na região do Valongo”, segundo o documento assinado com a conquista do título por integrantes do Iphan e pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB).

O IPN fechando é uma situação que, a médio prazo, pode comprometer a posição do cais do Valongo como patrimônio mundial.

Milton Guran, antropólogo

Falta interesse em manter a memória da escravidão?

Presidente do IRPH (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade) à época da descoberta do cais do Valongo, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo disse que a administração anterior chegou a conversar com a direção do IPN sobre desapropriar o lugar.

“Eles não tinham interesse nisso. Ali tem o valor de um centro cultural de comunidade. Fizemos essa oferta para de certa maneira tirar esse peso das costas deles. Isso [eles não aceitarem] os torna os admiráveis”, afirmou Fajardo.

Para o urbanista a falta de apoio público ao IPN é reflexo da falta de interesse da sociedade em se aprofundar na história da escravidão.

Não tenho dúvida de que não há interesse da sociedade em se aprofundar nisso e aí não é interesse do governo. O que se quer é festa, a alegria da matriz africana, ninguém quer falar da violência, da reparação. É hipocrisia. Esse patrimônio cultural é memória de dor, é um holocausto negro e por que o negligenciamos?

Washington Fajardo, arquiteto e urbanista

Do ponto de vista urbanístico, explica Fajardo, a revitalização de áreas portuárias é global. Isso porque a atividade portuária começou a mudar na década de 50 com os contêineres.

"A partir da década de 1970, o porto do Rio entra em declínio, como ocorreu em todo mundo. No Rio, Buenos Aires, Marselha, Boston, Gênova, todos esses tiveram que achar solução. Revitalização e VLT têm em vários lugares do mundo, mas Cais do Valongo e Cemitério dos Pretos Novos só existe no Rio. O Brasil quer ser moderno e não estar vinculado a um passado escravocrata, agrícola, oligarca. A função do patrimônio cultural é proteger para as gerações futuras conhecerem e encarar o tempo presente", concluiu.

De acordo com o artigo 175 da Constituição, “sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento, nos quais se encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico” devem ser protegidos pelo poder público.

O sítio arqueológico do IPN tem registro no Iphan para a atividade. Nenhum representante do órgão no Rio atendeu a reportagem.