"A gente não dorme nem vive": o drama de 940 pessoas que podem ser despejadas
Desde o mês de junho, 940 pessoas que vivem em um prédio invadido no centro de São Paulo não sabem se vão dormir sob um teto na noite seguinte. O grupo ocupa o imóvel próximo à Estação da Luz há 10 anos, desde 25 de março de 2007, mas pode ser despejado a qualquer momento.
O edifício, que já abrigou um hotel, estava abandonado havia cerca de 20 anos, antes de ser ocupado, segundo o MMLJ (Movimento de Moradia na Luta por Justiça). Conhecido como "Ocupação Mauá", o local quase se tornou parte de um programa habitacional, no ano de 2013, quando seria comprado pela prefeitura. No entanto, um imbróglio jurídico travou as negociações.
A prefeitura, na gestão Fernando Haddad (PT), chegou a depositar R$ 11 milhões para a compra do local. Logo depois de o petista perder as eleições municipais, em 2016, um perito avaliou que o imóvel valia o dobro e a Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação) pediu a devolução do dinheiro já disponibilizado afirmando não ter como arcar com a nova estimativa de custos.
Os proprietários do imóvel pediram uma audiência de conciliação, mas não houve acordo. Eles requisitaram então a reintegração de posse, que foi acolhida pelo juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara no último dia 28 de junho. Pela decisão, a reintegração pode ocorrer a qualquer momento.
Além disso, corre na Justiça um outro processo sobre o edifício. O MP (Ministério Público) quer que a prefeitura abrigue as 237 famílias caso haja a reintegração. A gestão municipal recorreu, mas na última quarta-feira (9), a Justiça foi favorável ao pedido do MP. Ou seja, se houver reintegração de posse, a prefeitura deve ser obrigada a abrigar as famílias.
- 940 é o número de pessoas que vivem na "Ocupação Mauá"
- 237 é o número de famílias que ocupam o espaço desde 2007
- 180 crianças e pré-adolescentes vivem com a família no local
"Que Deus abençoe o coração do juiz e proprietários"
Em meio à disputa jurídica entre Justiça, prefeitura, Cohab e proprietário, os sem-teto vivem um clima de apreensão. "Ah, meu Deus, eu não quero nem pensar nisso. Só espero que Deus abençoe o coração do juiz e proprietários do prédio para que cheguem num acordo e que a gente não fique sem um teto para morar", afirma a aposentada Teresa Conceição, de 76 anos.
Teresa trabalhou a vida inteira como empregada doméstica. Em apenas um emprego na vida, teve a carteira de trabalho registrada. "Eu ganho R$ 800 de aposentadoria. Não posso trabalhar mais porque minhas costas não deixam. Onde vou arrumar dinheiro para pagar um aluguel e, ainda por cima, ajudar a criar dois netos", se pergunta a aposentada que vive no último andar da ocupação.
"A gente não dorme de preocupação. A gente não vive. Aqui é a casa de 237 famílias. A gente quer um acordo, porque ninguém que está aqui tem condições de pagar aluguel. É muito caro", afirmou Ivaneti Araújo, líder do MMLJ. "Só queremos um direito básico: moradia", afirmou. Segundo Ivaneti, o movimento quer que haja um acordo para que as pessoas que ali vivem tenham condição de pagar pela moradia um valor que caiba no bolso das famílias de baixa renda.
O mineiro Florentino de Brito vive com a mulher, Solange, na ocupação. "Vim para cá [São Paulo] pensando numa vida melhor, com emprego. Sempre trabalhei de ajudante de motorista, mas não conseguia pagar aluguel e criar os dois filhos que tenho. Aqui foi a solução. Pelo menos tenho um teto. Só não sei dizer até quando, né?", diz, resignado.
O pensamento é o mesmo de todos que estão na Ocupação Mauá. O trabalho de Roberto Paiva, morador de um dos apartamentos do quarto andar, é ajudar pessoas em situação de rua na Barra Funda. Caso a reintegração de posse ocorra, ele afirma que vai ter de se juntar a quem, hoje, ajuda. "Medo a gente tem. Se vier [a reintegração], vou para a rua. Mas a luta não pode parar. E vamos lutar até ter moradia digna e a um preço justo", afirma.
Juiz: "não se pode fazer caridade com o chapéu alheio"
Antes da decisão de junho deste ano, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini já havia determinado a reintegração de posse do mesmo imóvel uma vez em 7 de maio de 2012. Na ocasião, após recursos e tentativas de acordo, a reintegração não aconteceu.
Ao conceder a reintegração, o magistrado argumentou que "o suposto direito social à moradia deve ser provido pelo Estado e não pelo particular, e assim não legitima o esbulho [usurpação de propriedade] que, ainda que possa ter em parte ocorrido".
Segundo o juiz, os sem-teto tomaram posse do edifício de forma "clandestina, violenta e precária". Na sentença, Fantacini citou um ditado popular, o qual chamou de "sábio": "não se pode fazer caridade com o chapéu alheio".
Ainda de acordo com o juiz, "não está o Judiciário autorizado a intervir na ordem econômico-social, ferindo o legítimo direito do proprietário de usar e usufruir de seu bem imóvel, e de reavê-lo de quem quer que injustamente o possua, a pretexto de malsinada 'justiça social'", escreveu.
Cohab diz não ter relação com a reintegração
O UOL procurou a Prefeitura de São Paulo para que o município se posicionasse sobre o assunto. A gestão municipal encaminhou a demanda à Cohab. A companhia informou que, em 2014, iniciou uma ação de desapropriação do edifício para a implantação de programa habitacional.
Segundo a companhia, a avaliação do imóvel, realizada por um perito designado pela Justiça, fixou a indenização em R$ 21,9 milhões, com data base de novembro 2014. "A Cohab apresentou as impugnações em relação ao laudo, mas não obteve êxito. Atualizando os valores acima, teríamos hoje o custo de R$ 26 milhões", informou, em nota.
A entidade afirmou que desistiu da ação de desapropriação devido ao alto valor que teria que pagar. Ainda segundo a Cohab, haveria um valor complementar de mais de R$ 326 mil.
"Diante dos números colocados, muito acima da média do valor unitário do imóvel e fora da realidade das desapropriações de imóveis, não há viabilidade de execução do projeto", informou.
A companhia também afirmou que "a ordem de reintegração de posse não tem nenhuma correlação com a ação expropriatória da Cohab, uma vez que é uma ação separada, movida pelos proprietários."
Proprietários querem acordo
Um dos advogados dos donos do edifício, Jose Roberto Moraes Amaral, disse ao UOL que a Cohab entrou com uma ação de desapropriação do imóvel, mas teria adiado seu andamento e desistido dela após Haddad ser derrotado na eleição municipal.
Ainda de acordo com o advogado, os donos do edifício "sempre estiveram abertos para um acordo". "Você pode verificar que pedimos a designação de audiência para tentativa de conciliação, mas a Cohab não teve qualquer interesse, obrigando meus clientes a apresentarem pedido para se reintegrarem na posse", complementou.
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