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Trabalhar em empresa investigada por corrupção mancha o currículo? Veja relatos

Agência Brasil
Imagem: Agência Brasil

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

04/09/2017 04h00

A experiência profissional em uma empresa de renome poderia ser um trunfo no currículo ou uma oportunidade de crescer na carreira, mas acaba se transformando em “pedra no sapato” quando o local em que se trabalha aparece no noticiário associado à forte palavra "corrupção".

Pagamento de propina a políticos, lavagem de dinheiro, desvio de verba pública e participação em cartel são alguns dos crimes que, indiretamente, afetaram os planos de quatro profissionais ouvidos pela reportagem do UOL. Eles são ex-colaboradores de citadas no mensalão e na Operação Lava Jato e preferiram não se identificar ao fazer seus relatos.

"Não tenho como tirar isso do meu currículo"

João*, 47, agente do mercado financeiro

Um telefonema de um colega do trabalho, no começo de 2016, anunciou o baque. João passava o primeiro dia de férias numa praia quando foi avisado sobre a chegada de policiais ao escritório da empresa, uma corretora de valores em São Paulo: “A gente não pode entrar nem para pegar a escova de dentes na gaveta. A Polícia Federal está aqui e lacrou as portas”, disse a ele o colega.

A Tov Corretora, onde ele atuava como assistente de custódia, realizava transações financeiras, em nome de clientes, envolvendo compra e venda de ações e operações de câmbio. Citada por doleiros durante a Operação Lava Jato, foi liquidada pelo Banco Central em janeiro de 2016 por suspeita de violações legais como a prática de lavagem de dinheiro.

Embora tivesse uma função interna, sem contato externo com o dinheiro do cliente, João foi demitido, assim como a maior parte dos empregados que ele conhecia. Ao final das férias, após sete anos na empresa, ele foi orientado a encerrar as carteiras dos clientes e a fazer as transferências financeiras necessárias. Três dias depois, foi desligado pelo RH.

“Tudo isso [a investigação] aconteceu na corretora de câmbio, que lidava com venda e compra de dólares, e eu trabalhava na corretora de valores, que tratava com ações. Eu não tinha acesso a esta parte de câmbio, ficava até em outro prédio, mas as duas corretoras têm o mesmo nome, o mesmo dono”, ele afirma. “Não imaginava que eu iria perder o emprego.”

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Imagem: Rodrigo Capote/Folhapress

Há um ano e meio, João tenta voltar ao ramo com o qual trabalha desde o início dos anos 1990. Sem salário fixo e sem os benefícios da carteira assinada (plano de saúde, vale-refeição e outros), a renda caiu. Para pagar as contas, ele transformou um hobby, a fotografia, em trabalho e é motorista de aplicativo.

“Eu mandei vários currículos, penso em voltar para esse mercado, é o que eu sei fazer, mas, por enquanto, não tive nenhuma resposta. Não quero nem pensar que isso é por eu ser ex-funcionário da corretora, tenho medo de ser prejudicado por isso, de o nome da empresa pesar mais que o meu currículo”, ele diz. “A crise atrapalhou, mas a empresa era uma corretora bem ranqueada, e eu acho que o fato de estar envolvida em corrupção tem a ver com isso. É uma área bem restrita, as pessoas conhecem [o caso].”

Omitir a passagem pela Tov do currículo não é possível, porque foi seu último emprego formal.

“Isso seria uma vantagem no meu currículo, que sofreu uma reviravolta. Eu tenho que colocar a minha experiência lá, porque são sete anos. Não teria como justificar uma ausência nesse período”, conclui.

“Seis meses de empenho que viraram piada”

Ana Maria*, 33, publicitária

Prestes a se formar em publicidade, Ana Maria tinha 19 anos quando foi aprovada num concorrido processo de seleção para fazer estágio em duas grandes agências de publicidade de Belo Horizonte. “Era um sonho de consumo fazer estágio e trabalhar lá”, ela diz. “Eram as duas maiores agências de Minas e estavam entre as maiores do Brasil. E tinham as melhores contas.”

As agências DNA e SMP&B eram comparadas a empresas do circuito São Paulo-Rio, ela se lembra, mas acabaram ficando na história por outra razão: seu dono, o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, foi acusado e preso como um dos principais operadores do mensalão.

O esquema de pagamento de “mesada” a deputados do PT e de sua base aliada para votarem a favor do governo veio à tona em 2005. Ana Maria tinha acabado de terminar a faculdade, e a passagem pelas agências era como um bônus. “Eu tive um aprendizado técnico, uma oportunidade de conhecer pessoas no mercado, porque as agências eram muito boas mesmo”, afirma.

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Imagem: Shutterstock

O programa de estágio durou seis meses, com ajuda de custo de R$ 100 por mês. A experiência, que poderia ter sido decisiva naquele início de carreira, teve de ser eliminada do currículo.

“Tudo o que eu podia usar disso, desse referencial de experiência em uma agência grande, eu perdi. Isso estava lá como um grande destaque, mas depois eu tive que tirar porque 'queimava o filme'”, diz. “O assunto estava muito quente, na época, estava na cabeça de todo mundo, todo mundo se lembrava do nome [das agências]. Estava saindo em todas as mídias.”

Marcos Valério foi condenado a 37 anos e cinco meses de prisão em regime fechado. Desde 2009, o publicitário é réu em outro processo, o que investiga o “mensalão tucano”, esquema de desvio de dinheiro público de estatais mineiras para a campanha de reeleição de Eduardo Azevedo (PSDB-MG) ao governo estadual, em 1998.

“Virou piada, a gente sabe disso: trabalhei seis meses por R$ 600, quase de graça, e ainda tive que tirar do meu currículo. Se fosse um emprego de mais tempo, o impacto teria sido ainda maior.”

“Era uma empresa muito sólida, que ficou sem credibilidade”

Sandra*, 45, advogada

Especializada na atividade jurídica interna de empresas, a advogada Sandra ficou nove anos em uma das maiores construtoras do Brasil, em São Paulo, onde imaginava que ia “trabalhar até se aposentar”. Ela prefere não revelar o nome da companhia, de onde saiu há dois anos, mas estava lá quando a empreiteira foi alvo de duas operações da Polícia Federal.

“Na primeira vez, nós chegamos para trabalhar e não foi possível entrar na empresa. Nós, advogados, acompanhamos o pessoal da polícia durante uma manhã. Eles viram os departamentos, coletaram algumas coisas, já chegaram direcionados. Parecia que eles já tinham bastante informação, chegaram só para coletar documentos”, conta.

Na segunda vez, os documentos foram requisitados por ofício, sem a presença policial na empresa, mas a reputação da construtora já estava na mira da Lava Jato e do noticiário nacional. Alguns de seus diretores foram acusados e até presos por pagamento de propina a partidos políticos como PT, PP e PMDB, em troca de assumir contratos para executar obras públicas federais.

A empresa também é investigada por supostamente integrar um cartel de construtoras que pagou propina para ter privilégios em obras do Metrô de São Paulo.

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Imagem: Getty Images

Nesses últimos dois anos, Sandra tentou emprego algumas vezes em setores variados, mas foi chamada para apenas duas entrevistas.

“Nas entrevistas, citaram o nome da construtora, mas falaram: 'Poxa vida, olha o que aconteceu'. Não deixaram claro [se isso era ruim para mim], mas a associação com o nome da empresa foi negativa”, ela afirma. “Era uma empresa muito sólida que ficou sem credibilidade.”

Sandra conseguiu voltar a trabalhar há três meses, mas teve de mudar o perfil profissional. Deixou a área corporativa, por enquanto, e faz parte da equipe de um escritório de advocacia.

“Estou empregada, mas em outro segmento. Tenho amigas da construtora que trabalhavam fora do jurídico, são extremamente competentes, mas não conseguiram se recolocar no mercado até hoje”, lamenta. “Talvez as pessoas não queiram um chamariz [ao contratar] ou tenham criado um preconceito de que as pessoas que trabalhavam lá estavam envolvidas. Isso não é verdade, porque as pessoas que estavam lá nem sabiam do que acontecia. Isso fica sempre em altas esferas”, afirma a advogada.

“Escândalo pode prejudicar os funcionários”

Ricardo*, 30, analista de TI (Tecnologia de Informação)

Formado em ciências da computação e pós-graduado em banco de dados, Ricardo entrou como estagiário na JBS, a empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista, e saiu de lá somente seis anos depois, para uma oportunidade de emprego em outra grande empresa.

Neste ano, surpreendeu-se com as revelações da participação da empresa em vários esquemas de pagamento de propina a políticos.

“Quando eu entrei, ela era a terceira maior empresa do país em produção de proteína animal. Quando eu saí de lá, ela era a maior empresa do planeta em produção de proteína animal e já tinha adquirido várias empresas, inclusive de outros ramos. Quando eu entrei, era Friboi; quando eu saí, já era JBS”, ele diz.

“Fiquei um pouco dividido, porque vi o tanto que todo mundo ali trabalhava para a empresa crescer, e ela cresceu muito. E acaba dando a entender que esse crescimento foi graças a acordos de corrupção, de uma certa forma.”

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Imagem: Fabiana Beltramini/Folhapress

Diferentemente do que disseram os outros profissionais entrevistados na reportagem, Ricardo não vê sua passagem pela JBS como algo que, hoje, possa ter efeito negativo em seu currículo. Isso tem a ver, ele avalia, com a área onde trabalhou em São Paulo, o back office (área interna, sem contato com clientes, que opera em atividades de retaguarda).

“No meu caso, não é um problema [ter passado pela JBS], porque a minha área não tinha envolvimento direto com qualquer decisão política ou algo do tipo, e é uma empresa grande. Para quem trabalha em áreas em que o porte da empresa faz diferença, como a minha, a experiência é importante”, ele explica. “Eu trabalho com banco de dados, é importante que eu tenha experiência em ambientes grandes.”

Ainda assim, ele pensa nos amigos que continuaram trabalhando na empresa com um pouco de preocupação.

“Quando explodiu o escândalo, fiquei um pouco preocupado com os amigos que eu ainda tenho que trabalham lá, porque um escândalo pode acabar prejudicando a empresa e, consequentemente, os funcionários.”

“É difícil separar o joio do trigo, então esteja pronto para se defender”, diz consultor

Em um momento de crise econômica, quando há mais chances de demissões, como nos últimos três anos, profissionais associados a empresas ligadas à corrupção estão em desvantagem, na avaliação do advogado Rodrigo Forte, especializado em administração de empresas e sócio-fundador da Exec, uma consultoria na seleção e desenvolvimento de altos executivos, em São Paulo.

“Além do baixo nível de oportunidade de emprego com a crise, infelizmente essas pessoas estão sofrendo também com o preconceito, a desconfiança e a preocupação em relação à sua contratação”, ele afirma. “Para quem está de fora, é difícil separar o joio do trigo.”

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

O consultor entende que a experiência provocada pela Operação Lava Jato tem demonstrado, mais do que nunca, que valores profissionais são preponderantes para quem contrata. Portanto, é preciso que o candidato esteja pronto para defender sua conduta e seu ponto de vista em relação ao que vivenciou.

“O assunto virá à tona. É praticamente impossível uma pessoa com essas origens [empresas envolvidas em corrupção] ser entrevistada ou avaliada num processo seletivo sem ter que discursar a respeito disso”, diz Forte. “O entrevistador quer testar qual é a atitude dessa pessoa. Então, seja transparente e aborde o assunto com naturalidade. É um assunto hoje importante para o país.”

Omitir a experiência do currículo não é recomendado, ele afirma, e sim “deixar claro que não concorda com o que acontecia e que deseja uma nova chance de trabalho”.

“O candidato é testado também no seu discurso”, alerta.

* Os nomes foram alterados a pedido dos personagens para não identificá-los.