Crivella rebatiza ruas de favela e usa nomes como "Adoração", "Éden" e "Monte Sião"
O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), publicou um decreto, na terça-feira (3), que rebatiza ruas da favela Vila do João, uma das que compõem o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Alguns nomes escolhidos, como "rua Adoração", "rua Éden" e "travessa Monte Sião", não foram bem recebidos por moradores da comunidade.
Após a publicação desta reportagem, a Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação enviou ao UOL um conjunto de ofícios, datado de 2015 e assinado por moradores da Vila do João, que propunha até três nomes para nove das 42 ruas que constam no decreto.
A seleção final, segundo o órgão, cabia ao grupo de trabalho criado na gestão anterior para analisar o assunto. Não foi especificado, no entanto, em que momento --se antes ou depois de Crivella assumir-- e quem teria sido o responsável por selecionar efetivamente cada novo logradouro entre os trios de sugestões. Em relação às outras 33 ruas, a prefeitura informou que não houve abaixo-assinado pela dificuldade de mobilização da Associação de Moradores da Vila do João.
Muitos cariocas reclamaram nas redes sociais de suposto "cunho religioso" na escolha dos nomes. Crivella é evangélico e tem base política e eleitoral ligada principalmente à Iurd (Igreja Universal do Reino de Deus), da qual é bispo licenciado.
"Eu não fui consultada e, sinceramente, os nomes são ridículos e têm um cunho religioso aí, pode conferir", afirmou Angel Hortega na página "Maré Vive", no Facebook. "Quero ver quando entrar outro prefeito que não seja evangélico. Será que vai continuar com o mesmo nome?", questionou Angelo Maximo, também na rede.
De acordo com o texto do decreto, 42 logradouros da Vila do João deixam de ser conhecidos por números. Com isso, um trecho da rua 16, por exemplo, passa a se chamar "rua do Otimismo"; parte da travessa 18 agora tem o nome de "travessa Perdão"; outro trecho da travessa 16 foi rebatizado como "travessa Compaixão".
Moradores também criticaram o fato de que os nomes escolhidos contrastam totalmente com a realidade de violência na região, que, apesar de fazer parte do projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), é controlada por traficantes de drogas e palco constante de tiroteios.
Dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) indicam que, na área do 22º Batalhão da Polícia Militar, que abrange a Maré e outros cinco bairros no entorno (Ramos, Manguinhos, Higienópolis, Bonsucesso e Benfica), foram registradas 122 ocorrências de letalidade violenta no período de janeiro a agosto desse ano --somatório de homicídios dolosos (87), mortos pela polícia (32) e latrocínio (3). São cerca de 15 casos por mês ou basicamente um a cada dois dias.
A internauta Naiara Rodrigues ironizou no Facebook: "Eu fico me perguntando onde que eles viram referência à tranquilidade, suavidade e sossego [exemplos de novos nomes de rua na Vila do João] aqui dentro da favela".
Por outro lado, alguns usuários defenderam a iniciativa da prefeitura. Hélio Henriques de Pinho argumentou que a medida não tem ônus algum para os cofres públicos e tem potencial benéfico para a comunidade.
"O prefeito não pode atuar exclusivamente nas prioridades e abandonar o resto. Essa iniciativa objetiva conferir legalidade, tem um custo ínfimo e traz um benefício enorme. Se não gostaram dos nomes, apresentem sugestões para mudar ou mudem-se vocês", disse ele, em tom de revolta.
O internauta Anderson Cordeiro, por sua vez, observou que os novos logradouros "ficaram com a esperança de um mundo melhor". "Melhor isso do que nomear, por exemplo: rua do Tiroteio, rua da Execução, rua do Massacre... Minha opinião."
'Se Nova York tem, por que não na Maré?'
A reportagem do UOL conversou com Marcos Barcellos, que era o presidente da Associação de Moradores da Vila do João até janeiro desse ano. Segundo ele, a proposta para alterar os nomes das ruas da favela foi apresentada na gestão anterior a Crivella, a do ex-prefeito Eduardo Paes (PMDB), em 2015.
O líder comunitário relembrou que, na ocasião, o governo pediu que os moradores da comunidade fizessem um processo de seleção, mas disse que a iniciativa não surtiu efeito prático.
"Eles pediram para fazer uma votação. Teve só uns três ou quatro nomes escolhidos pela maioria, mas foi uma coisa muito informal. Eles não nos deram estrutura nenhuma para fazer uma campanha como essa. A divulgação disso não deu resultado algum", declarou.
Barcellos disse não acreditar que os nomes selecionados pela gestão municipal tenham relação com a religião do prefeito. Observou, por outro lado, que a medida, de fato, não foi bem recebida na localidade.
"Os números deveriam continuar, as pessoas já estavam acostumadas. Até os carteiros já conhecem pela numeração. Se Nova York tem várias ruas conhecidas por números, qual é o problema de ter na Maré? Todo mundo está reclamando aqui."
Procurada pelo UOL, a Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação informou que o decreto foi publicado para "corrigir distorções e garantir a validação dos endereços, que agora passam a ter um registro na Subsecretaria de Habitação, Numeração e Código Postal Oficial".
A pasta alegou ainda que esse "é o primeiro passo para a regularização fundiária e territorial" na Vila do João. "Sem um endereço registrado na prefeitura, a rua não existe. Dessa forma é impossível que o proprietário de um imóvel regularize sua casa ou comércio. O trabalho, além de evitar a duplicidade de nomes de ruas, dá um passo para a legalidade e formalização dessas áreas com organização."
Na versão da secretaria, a escolha dos nomes foi feita com base em uma pesquisa histórica de "referências locais" ou por "definição de um tema".
Além disso, sustenta o governo, nove dos 42 novos nomes teriam sido selecionados após sugestões enviadas pela própria comunidade, por meio de abaixo-assinado, em setembro de 2015. Seriam elas: rua Novo Horizonte (antiga rua 9), rua Iluminada (antiga rua 18), rua da Conquista (antiga rua 11), rua Éden (antiga rua 17), rua Cidadania (antiga rua 3), travessa Monte Sião (antiga travessa 11), travessa Presidente (antiga travessa 7), travessa Sabedoria (antiga travessa 10) e travessa Margarida (antiga travessa 2).
Questionado se a Associação de Moradores da Vila do João teria encaminhado algum abaixo-assinado em 2015, Barcellos afirmou não se lembrar do fato. A reportagem do UOL não conseguiu entrar em contato com o atual presidente da associação.
Em nota, o IPP (Instituto Pereira Passos) informou que, em 2015, um grupo de trabalho foi criado pela antiga gestão com a "finalidade de reconhecer os logradouros locais". "Alguns como já eram conhecidos e outros sendo batizados com novos nomes. Disso resultaram 14 decretos, a maioria dos quais já foi publicada."
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