Racismo é causa de um em cada quatro BOs de intolerância no Estado de São Paulo
Levantamento inédito feito pelo UOL revela que um em cada quatro casos de intolerância registrados nas delegacias de polícia de todo o Estado de São Paulo em 2017 se originou de denúncia de discriminação de raça, etnia e cor.
São 1.210 boletins de ocorrência diretamente relacionados com crime de racismo ou de injúria racial, ou 24,6% das 4.923 notificações formais classificadas como intolerância no Estado. Por dia, denunciam-se, em média, 4,4 casos de algum tipo de discriminação racial. As vítimas são predominantemente da raça negra.
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) não divulga os dados consolidados de intolerância no Estado. As informações levantadas pelo UOL recobrem nove meses de registros de BOs, de janeiro a setembro deste ano (273 dias). Os números integram o Sistema de Registro Digital de Ocorrências da SSP-SP e foram obtidos com exclusividade por meio da Lei de Acesso à Informação.
Para especialistas ouvidos pelo UOL, o racismo explícito "é visível no dia a dia" e "expressa a mentalidade brasileira até hoje". Segundo eles, estes números devem estar subnotificados (veja a análise aqui).
O levantamento detalha cada BO de intolerância, especificando, por exemplo, a delegacia onde o registro foi feito (que pode não ser a do local de fato); o município da delegacia de circunscrição (do local de ocorrência de fato); o ano e o número do boletim; o ano, o mês e a hora da ocorrência; a data e a hora da comunicação da ocorrência; a natureza jurídica do caso (como discriminação, injúria ou lesão corporal); e o tipo da intolerância da ocorrência (além de raça, etnia e cor, homofobia/transfobia, origem e religiosa).
A forma mais detalhada hoje disponível na hora de registrar o BO, no tocante ao tipo da intolerância presente, se iniciou no Estado apenas em 5 de novembro de 2015. A partir dessa data, tornou-se possível a inserção no BO da motivação presumida do crime decorrente de orientação sexual ou identidade de gênero da vítima.
No tocante à população LGBT especificamente, o levantamento mostra que, de janeiro a setembro deste ano, 767 denúncias (15,6% do total de 4.923 BOs) foram formalizadas por causa de homofobia (preconceito contra homossexuais) ou transfobia (preconceito contra travestis, transexuais e transgêneros).
Discriminação por motivo de disputa religiosa somou 253 ocorrências, ou 5,1% dos casos. Boletins de intolerância reunidos na categoria "origem", que incluem, por exemplo, discriminação contra estrangeiros e nordestinos, provocaram 157 BOs (3,2%) em 2017.
Classificados como "Outros" tipos de intolerância, por exemplo contra idosos e portadores de deficiência, estão 2.536 BOs, ou 51,5% do todo.
Em 2016, Estado registrou 9.855 BOs de intolerância
A base do levantamento inclui também o total de registros de intolerância nas delegacias paulistas ao longo de todo o ano de 2016. No ano passado, houve 9.855 BOs de intolerância no Estado.
Foram 2.235 BOs por discriminação racial (22,7% do total); 1.388 BOs por homofobia ou transfobia (14,1%); 419 registros (4,3%) por intolerância religiosa; e 350 por preconceito de origem (3,6%). Classificados como "Outros" foram 5.463 casos em todo o ano de 2016 (55,4%).
Nos nove primeiros meses do ano passado, foram computados 7.604 casos de intolerância no Estado. No comparativo de janeiro a setembro de 2017 com o mesmo período de 2016, o levantamento mostra recuo de 35,3% nos registros de ocorrências de intolerância.
Na região de Campinas, intolerância racial supera média
Na Grande São Paulo (conjunto de 38 municípios, excluindo São Paulo), a região mais populosa do Estado, a intolerância levou a 1.338 queixas formais de janeiro a setembro de 2017. A questão racial lidera, com 23,2% dos casos (311 BOs). Homofobia/transfobia originou outras 161 ocorrências (12% do total).
Foram 337 BOs por intolerância até setembro deste ano na região de Campinas (20 municípios), a segunda mais populosa. O preconceito por raça, etnia e cor gerou o maior número de queixas de discriminação (89 ou 26,4% do total), estando acima da média do Estado. Os casos classificados como homofobia ou transfobia somaram 15% (50 ocorrências).
Na cidade de São Paulo, onde foram anotadas 1.714 ocorrências de intolerância até setembro, os casos relacionados a raça, etnia e cor provocaram 389 BOs, ou 22,7% do total, seguido de homofobia/transfobia, com 302 registros (17,6%), e intolerância religiosa, com 91 casos (5,3%).
Segundo a contabilidade exclusiva da única delegacia especializada em crimes de racismo e delitos de intolerância do Estado de São Paulo, a Decradi, as vítimas preferenciais da intolerância na capital paulista são os negros e os nordestinos.
Gays são mais vítimas de agressões físicas
O levantamento nos BOs das delegacias paulistas mostra também a forma como foi classificada juridicamente cada ocorrência de intolerância. No Estado, foram anotados, entre janeiro e setembro deste ano, 118 casos de intolerância como lesão corporal (artigo 129 do Código Penal), isto é, de agressões físicas motivadas por alguma forma de preconceito.
As vítimas principais de agressão foram a população LGBT, com 71 casos (60% do total). Agressões por discriminação de raça, etnia e cor somaram 27 notificações (23%).
Os casos de ameaça (de "causar mal injusto e grave" a alguém, conforme o artigo 147 do Código Penal) no Estado totalizaram 957 BOs: 17,1% relativos a LGBT e 15,5%, a raça.
Intolerância vira injúria em mais da metade dos casos
Os casos de intolerância enquadrados pela polícia como injúria (artigo 140 do Código Penal) somaram 2.512 boletins até setembro, ou 51% do total (4.923 BOs). Dos 1.210 BOs relacionados a raça, etnia e cor, 824 foram tratados como injúria, ou 68% deles. Quando a discriminação é homofobia/transfobia, o crime de injúria englobou 379 casos, ou 49% dos BOs (767) contra a comunidade LGBT.
Como prática de discriminação, que inclui o crime de racismo (artigo 20 da lei 7.716/89), foram tipificadas apenas 40 ocorrências no ano de 2017, sendo 32 por motivo de raça.
Segundo a legislação brasileira, a injúria tem pena mais branda que a de racismo. Crime de injúria ("injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro"), valendo-se de elementos de "raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência", pode levar a detenção de até três anos e multa.
Crime de racismo é ofender e discriminar toda uma coletividade ou grupo de indivíduos --por exemplo a coletividade dos judeus e dos negros. Diferentemente da injúria, o racismo é crime imprescritível (não se extingue com o tempo) e inafiançável (não pode pagar para não cumprir a pena) e pode render ao condenado multa e prisão por até cinco anos.
O que diz o governo paulista
O UOL entrou em contato com a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo para pedir sua análise dos dados e informações a respeito de políticas de combate à intolerância. A reportagem enviou as seguintes questões ao governo paulista: "Como o combate à intolerância está contemplado na política de segurança do Estado de São Paulo? O Estado está ciente da vulnerabilidade sobretudo de negros e população LGBT mostrada pelos dados dos registros? A população negra reclama de excessivo abrandamento na aplicação de crime de racismo, com o enquadramento majoritário dos crimes como injúria racial. O levantamento revela que, do total de 1.210 BOs de intolerância racial, 824 são tratados como injúria (68%) e apenas 32 como discriminação/crime de racismo (2,6%). O que a secretaria tem a dizer sobre essa realidade?".
Por meio de sua assessoria, a SSP-SP respondeu com a seguinte nota:
"A Polícia Civil informa que a Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) atua na investigação dos crimes e no mapeamento dos grupos e cadastros de seus integrantes, a partir de operações, pesquisas de registros policiais e monitoramento das redes sociais.
Cumpre destacar a atuação de integrantes da SSP com os Conselhos Estaduais e do Conselho Estadual do Direitos da População LGBTT do Estado de São Paulo, para a implementação das atividades necessárias ao atendimento das propostas previstas na 2ª Conferência Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBTT e no Programa Nacional de Direitos Humanos. Dentre elas, encontra-se a criação de campo nome social nos registros digitais de ocorrência, bem como a inclusão em tal registro de questionamento acerca da motivação da infração (se está relacionada à intolerância/discriminação, com a opção homofobia/transfobia", dentre outras), viabilizando, assim, a realização de pesquisa de tais delitos em âmbito estadual.
No primeiro semestre de 2017 foram registrados 108 boletins de ocorrências na especializada [Decradi], sendo destes 23 relacionados a vítimas LGBT e 30 relacionados à raça, cor, etnia e procedência nacional. Desse total, 57 inquéritos foram abertos, sendo sete relacionados a vítimas LGBT e 37 à raça, cor, etnia e procedência nacional. Além da Decradi, esses casos também podem ser investigados por unidades territoriais de todo o Estado, inclusive as da capital.
É importante esclarecer que somente no período de abril de 2016 a maio de 2017 foram registrados pela delegacia eletrônica 6.476 ocorrências de injúria, enquanto no período de janeiro a agosto de 2017 foram 186 ocorrências com o 'flag' [presença] de intolerância. Não podendo, assim, se afirmar que há uma predominância".
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