Brasil treina para criar base militar com os EUA, Colômbia e Peru na Amazônia
As Forças Armadas do Brasil estão organizando um exercício militar na selva amazônica envolvendo forças dos Estados Unidos, da Colômbia e do Peru. A ideia é simular a criação de uma base militar multinacional para atender emergências humanitárias.
O exercício visa, entre outros objetivos, treinar militares e criar diretrizes para oferecer assistência humanitária para eventuais ondas de imigrantes que deixem a Venezuela ou a Colômbia, segundo o general Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, comandante logístico do Exército.
Ele disse ao UOL que também serão simulados cenários de combate a incêndios florestais e socorro emergencial a vítimas de catástrofes que possam atingir a América do Sul - como terremotos, maremotos, secas e enchentes.
Uma vez acionada em situação real, a base militar logística teria caráter temporário.
Porém, a realização do exercício, batizado de Amazonlog 17 e previsto para acontecer entre 6 e 12 de novembro, tem dividido opiniões dentro do Brasil.
Críticos do evento disseram que ele pode sinalizar uma tendência de maior alinhamento da política de defesa e segurança do Brasil com a dos Estados Unidos - em divergência com a perspectiva mais regional da Unasul (União de Nações Sul-americanas).
Já seus apoiadores dizem que ele pode sinalizar uma aproximação militar com os Estados Unidos e é interessante do ponto de vista tecnológico e comercial. Além disso, não seria uma cooperação inédita nem significaria um distanciamento dos países vizinhos.
Mas o que vai acontecer na prática?
Uma base militar logística de caráter temporário será montada em Tabatinga, no Amazonas, para fins de treinamento. A cidade fica às margens do rio Solimões e faz fronteira com a Colômbia (Letícia) e com o Peru (Santa Rosa).
Ela receberá militares representantes de 49 países. As nações com mais tropas serão:
- Brasil: 1.533
- Colômbia: 150
- Peru: 120
- Estados Unidos: 30
Os demais países, como Alemanha, Japão, Venezuela, Canadá, Rússia, entre outros, terão em sua maioria menos de uma dezena de representantes.
Também serão utilizadas 21 aeronaves militares, entre helicópteros e aviões, sendo 12 do Brasil, seis da Colômbia, dois do Peru e um dos Estados Unidos, além de diversas embarcações.
"Nesse exercício, é bom que a sociedade saiba, só quem está armado é o Brasil, que vai dar segurança a essa base. É o país hospedeiro, como nós chamamos. Colômbia, Peru e os Estados Unidos vêm desarmados”, disse o general Theophilo.
"Eles vão participar de um esforço montando um hospital de campanha, montando uma (rede de) captação de energia solar, equipamentos de purificação de água e um posto de fornecimento de combustível”, disse o general.
Também haverá exercícios teóricos e práticos, os últimos com participação de “figurantes”. Eles serão moradores voluntários das três cidades da tríplice fronteira e representarão a chegada de ondas de imigrantes ou se fingirão de vítimas de uma catástrofe natural.
Embora o exercício tenha objetivo humanitário, membros das Forças Armadas dizem que a grande concentração de tropas terá impacto também no combate a crimes de fronteira, como tráfico de armas e drogas naquela região. Isso porque os militares têm poder de polícia nas regiões fronteiriças.
Inspiração na Otan
O Brasil já reuniu quantidades maiores de tropas nas fronteiras em manobras anteriores que tinham por objetivo patrulhar a fronteira, treinar tropas e demonstrar poder. Exercícios conjuntos com outros países, inclusive com os Estados Unidos, também não são novidade.
Mas essa é a primeira vez que se realiza um exercício militar logístico de caráter humanitário com essas proporções na América do Sul. Ele foi inspirado em exercícios realizados por forças da Otan (a aliança militar ocidental) na Hungria para treinar tropas para dar assistência a vítimas de catástrofes naturais e a refugiados vindos da África e Ásia. O Brasil participou como observador.
Imigrantes e refugiados no Brasil
"Em termos de refugiados nós já tivermos uma experiência com os haitianos. Não tínhamos ainda preparado um suporte para a recepção desses refugiados, então hoje nos preocupa, lógico”, disse Theophilo. "Nós temos a participação da Venezuela (no exercício), o número de refugiados (venezuelanos) que está aumentando cada vez mais na área de Roraima e já no Estado do Amazonas.”
O governo de Roraima estima que aproximadamente 30 mil imigrantes venezuelanos estejam vivendo atualmente no Estado.
Segundo Robert Muggah, diretor de pesquisa do think tank Instituto Igarapé, é provável que ocorra um aumento dos fluxos migratórios para o Brasil devido às "dinâmicas de deslocamento forçado na América Latina”.
Mas, para ele, o fluxo atual não configura ainda uma emergência humanitária.
"Devido à prolongada crise política e econômica que afeta a Venezuela, incluindo altas taxas de homicídio e a inflação - que pode atingir os 2.300% ano que vem -, é provável que o Brasil continue a receber um fluxo de solicitantes de refúgio e migrantes econômicos”, disse.
A Venezuela será representada por um de seus generais no exercício. A reportagem tentou entrar em contato com a embaixada venezuelana por telefone durante uma semana para comentar a questão dos refugiados, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.
Segundo o general Theophilo, outro cenário possível é que imigrantes colombianos precisem de assistência ao entrar no Brasil. Esse movimento migratório poderia ser impulsionado pelo processo de paz do governo colombiano com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e com o ELN (Exército de Libertação Nacional).
Em 2016, segundo a Polícia Federal, quase 7.500 imigrantes colombianos entraram no Brasil.
O general disse, porém, que o Amazonlog 17 vai funcionar como uma via de mão dupla, para que Colômbia e Peru também adquiram experiência para oferecer ajuda humanitária para eventuais ondas de imigrantes que entrem em seus territórios.
Muggah disse que os ondas de imigrantes podem não vir apenas da Venezuela e da Colômbia.
"Pode-se especular que o Brasil também se torne destino de refugiados da América Central, sobretudo do chamado Triângulo Norte (Honduras, Guatemala e El Salvador). Esses países registram as maiores taxas de homicídios no mundo e a violência extrema tem forçado o deslocamento de centenas de milhares de pessoas todos os anos”, disse Muggah.
General: "(os EUA) estão colaborando para um bem maior"
“Nós fomos aos Estados Unidos convidar para a participação deles”, disse Theophilo.
Segundo ele, a presença americana na Amazônia durante o exercício não deve causar preocupação em relação a temas de soberania.
“Estando com a gente é muito melhor do que venham secretamente e façam pesquisas no interior na mata como nós vimos muitas vezes, eu que vivi na Amazônia por seis anos. Eles estão controlados e estão colaborando para um bem maior que é a ajuda da população carente”, disse.
Segundo o general, os americanos vão trazer ao Brasil conhecimentos e mostrar tecnologias relacionadas à ajuda humanitária em catástrofes naturais. A ideia do Brasil é aprender com a grande capacidade logística americana de mobilização rápida de recursos.
Theophilo citou como exemplo a ajuda americana às vítimas do terremoto do Haiti em 2010. Na ocasião, em questão de poucos dias os americanos conseguiram mobilizar 20 mil tropas e milhares de toneladas de suprimentos e enviá-los ao país vizinho.
Virão ao Brasil 30 representantes da Guarda Nacional, da Guarda Florestal e militares do Comando Sul, que é uma importante unidade do Exército dos Estados Unidos. Eles trarão um avião militar de carga C-130, que participará de exercícios de combate a incêndios florestais e transporte de tropas.
Professor vê " fragilização do Conselho de Defesa Sul-Americano"
Segundo o professor da Unesp e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, Samuel Alves Soares, a concepção de uma base logística para responder a calamidades na perspectiva da assistência humanitária, a princípio, é uma boa ideia.
Mas, de acordo com ele, nos moldes em que está sendo anunciada, a operação aponta que os objetivos podem ser outros. O exercício revelaria uma tendência de maior alinhamento da política de defesa e segurança internacional do Brasil com a de órgãos como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e a Junta Interamericana de Defesa – que têm a presença dos Estados Unidos.
Segundo Soares, esses órgãos abordam o tema da defesa sob uma perspectiva multidimensional, na qual as forças armadas dos países latino-americanos são mais estimuladas a atuar na segurança interna do país, combatendo, por exemplo, tráfico de drogas, de pessoas e de armas pelas fronteiras nacionais.
Sob essa política, disse o professor Soares, os militares atuariam cada vez menos como fator de dissuasão e eventual ação contra ameaças externas de outros Estados -- papel que passaria a caber às forças armadas dos Estados Unidos.
"O exercício, como divulgado, acaba por envolver a participação das Forças Armadas em várias áreas e questões alheias às propostas de emprego contra ameaças externas e oriundas de Estados, uma demonstração de fragilização do Conselho de Defesa Sul-Americano. Indica que assuntos regionais passam a ser tratados com a participação de forças extrarregionais, diferentemente do que foi proposto quando da criação da Unasul", disse.
As ações de defesa do bloco de 12 países da América do Sul se caracterizam mais pelos debates, pelo estabelecimento de uma indústria de defesa local e pelas ideias de autonomia regional -- e pela ideia de que as Forças Armadas não devem ser usadas em casos de segurança interna, segundo Soares.
“Desde governos anteriores vem crescendo o emprego das Forças Armadas em atividades na área de segurança e patrulhamento e vigilância de fronteiras”, disse.
O fato de o Amazonlog 17 envolver principalmente a Colômbia e o Peru, historicamente mais próximos aos norte-americanos, seria um indício desse alinhamento com a política multidimensional adotada pelos Estados Unidos, segundo ele.
O Exército, por sua vez, disse que não existe intenção de alinhamento com a política multidimensional dos Estados Unidos. A iniciativa de fazer o exercício foi do Brasil e o convite para os americanos participarem foi feito devido à sua vasta experiência com ajuda humanitária.
Segundo o Exército, Colômbia e Peru foram convidados a enviar mais tropas por sua localização geográfica, por estarem situados onde o exercício vai acontecer. Representantes tanto da OEA como da Unasul foram convidados para participar do exercício.
Segundo Robert Muggah, do Instituto Igarapé, o convite do Brasil aos Estados Unidos sinaliza sim uma tentativa de aproximação entre as duas nações.
Mas, segundo ele, o eventual aprofundamento das relações com os Estados Unidos “não representa necessariamente um distanciamento (do Brasil em relação aos) países vizinhos, sobretudo no que diz respeito à cooperação em áreas de fronteira”.
Segundo ele, iniciativas no âmbito da Unasul e de seu Conselho de Defesa continuam a ter valor estratégico para o Brasil. Elas possibilitam a cooperação subcontinental em temas que são multinacionais por natureza - como os fluxos migratórios transfronteiriços e o tráfico de drogas e de pessoas.
"Para o Brasil, o estreitamento de laços com os Estados Unidos também é interessante do ponto de vista tecnológico e comercial, aspectos esses que podem ser discutidos durante iniciativas como o Amazonlog", disse.
O que diz a embaixada dos Estados Unidos
“O Brasil e os Estados Unidos têm sido parceiros fortes há muito tempo, e nós valorizamos a relação rica e multifacetada que temos com o Brasil, incluindo nossas forças militares”, afirmou a embaixada americana em comunicado.
Segundo a entidade, os Estados Unidos estão tentando ampliar a parceria com o Brasil na área de defesa – especialmente encorajando a cooperação das indústrias de defesa dos dois países.
A embaixada afirmou que essa não é a primeira vez que acontece um exercício militar conjunto. A entidade citou um treinamento envolvendo os dois países na Amazônia no ano passado, diversas visitas diplomáticas focadas na área militar e disse que o Brasil é convidado anualmente para participar de exercícios militares internacionais promovidos pelos Estados Unidos.
Em 2015, Brasil e Estados Unidos também chegaram a assinar um acordo bilateral nas áreas de defesa e de proteção de informações militares que prevê treinamentos conjuntos.
Por que não deixar o trabalho humanitário e a ajuda a refugiados para ONGs e organismos civis?
O professor Soares disse que o fato de se usar as Forças Armadas para abordar questões como a de refugiados tem dois lados.
As Forças Armadas têm uma capacidade logística para atuar na região amazônica maior que a de qualquer outro órgão do Estado brasileiro.
Ou seja, elas possuem meios de transporte, capacidade de mobilização e organização rápida, cuidam de sua própria segurança, conhecem o terreno e possuem características que outras entidades civis não têm.
Por outro lado, tanto Soares quanto Muggah dizem que a ajuda a refugiados só deve ser delegada às Forças Armadas em situações excepcionais. Em condições normais, ela deveria ficar a cargo de autoridades e organizações civis, mais acostumadas a tratar de necessidades específicas de imigrantes e refugiados -- como proteção legal, social e econômica.
"Ainda que as Forças Armadas estejam corretas em se preparar para um fluxo (de imigrantes) mais significativo, é altamente recomendável que a proteção e assistência social sejam providas por entidades governamentais civis, e não por soldados."
O Amazonlog 17, segundo o Exército, é um treinamento para situações excepcionais, de calamidade, envolvendo tanto assistência a refugiados como socorro a vítimas de catástrofes. Mesmo assim, estarão presentes no exercício universidades, a Fiocruz, a Defesa Civil, a Polícia Civil e a Polícia Federal.
Quanto isso vai custar? Haverá algum legado?
O Amazonlog 17 vem sendo planejado há dois anos a um custo aproximado de R$ 15 milhões.
Essa verba inclui tanto os custos de mobilização das tropas como a construção de estruturas permanentes. Ancoradouros fluviais de todas as bases militares da região amazônica estão sendo reformados. A cidade de Tabatinga também deve herdar uma praça pública, que será construída durante o exercício para simular o atendimento a vítima de catástrofes e ondas de imigrantes.
O custo também engloba o fornecimento de atendimento médico e odontológico real (não apenas simulado) para moradores da região onde o exercício acontecerá.
Segundo Muggah, o exercício pode ter aspectos positivos "à medida que eleva às capacidades estratégicas, técnicas e logísticas do Brasil".
"No passado nós tivemos um incêndio florestal na Amazônia e a primeira equipe que chegou foi uma equipe de bombeiros da Argentina. Então eu acho que isso mostra um pouco de falta de planejamento, de falta de estar preparado para as grandes calamidades", disse o general Theophilo.
"(Hoje) não há uma coordenação por parte dos países (da América do Sul) que participam nessa ajuda. Muitas vezes sobra alimento, sobra remédio ou falta alguma coisa."
Segundo o general, o treinamento poderá ser repetido a cada dois anos em países diferentes. Com o treino, cada nação saberá como agir e que material levar em uma situação de perigo real. "Esse é o grande legado, é a grande doutrina", disse.
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