Índios veem ameaça na instalação de maior mineradora de ouro ao lado de Belo Monte
Na área de influência direta da usina hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu (Altamira, PA), os índios jurunas juntam os cacos. “Não sabemos se no futuro a gente vai ter condições de continuar vivendo aqui”, afirma o professor Natanael Juruna, morador da aldeia Müratu, uma das três da TI (Terra Indígena) Paquiçamba. Além da usina, é possível que em um futuro próximo a região seja ocupada por uma mineradora.
Isso porque a canadense Belo Sun pretende instalar extrair ouro ali perto. A empresa teve a licença suspensa desde abril, mas luta para reverter a situação na Justiça.
Com a barragem, eles veem sua principal fonte de renda e subsistência, o peixe, rarear. Um monitoramento independente feito pelos indígenas em parceria com a UFPA (Universidade Federal do Pará) e o ISA (Instituto Socioambiental) revela que a produção pesqueira caiu praticamente pela metade entre os meses de janeiro de 2015 e 2016, período no qual houve o barramento do rio. A Norte Energia não quis responder a perguntas sobre Belo Monte, segundo a assessoria de imprensa.
Mas dados da própria empresa apontam para a questão da mortandade de peixes: segundo o 11º Relatório de Monitoramento Socioambiental Independente, entre novembro de 2015 e junho de 2016, mais de 19 toneladas de peixes morreram. O número representa o dobro do que os jurunas pescaram em três anos.
Diante da escassez de peixe, os jurunas exigem o cumprimento de uma das várias condicionantes ainda não atendidas: a destinação de uma área acima do muro da barragem que lhes dê acesso ao reservatório da usina, onde há mais condições de pesca.
Como a gente vai sobreviver nessa região?
Giliarde Juruna, cacique da aldeia
“O peixe é de onde a gente tirava a nossa geração de renda. Principalmente o peixe ornamental, que hoje acabou”, explica o cacique da aldeia, Giliarde Juruna. “Estamos batalhando para ver se a gente consegue essa terra que dê acesso ao lago. Hoje nós somos uma das terras mais impactadas do Brasil inteiro. A maior barragem do Brasil está aqui do nosso lado e a maior mineradora a céu aberto também vai ser aqui do nosso lado. Como a gente vai sobreviver nessa região?”
O cacique se refere à chegada de Volta Grande, o maior projeto de extração de ouro a céu aberto do país, que pretende se instalar a cerca de 10 quilômetros de Belo Monte e, consequentemente, à beira do quintal dos jurunas. Desde abril, a licença de instalação, obtida em fevereiro, está suspensa, mas a mineradora canadense Belo Sun está longe de desistir do projeto, como constatou a reportagem da Pública.
60 toneladas de ouro em 12 anos
Com o projeto Volta Grande, a mineradora canadense Belo Sun pretende extrair 60 toneladas de ouro em 12 anos a partir da lavra de milhões de toneladas de minério. Para tanto, já possui 18 títulos minerários com autorização de pesquisa junto ao DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) e tenta licenciar a extração em outros quatro títulos que, somados, ocupam uma área de mais de 2.300 hectares --correspondentes à extração de ouro dos depósitos Ouro Verde e Grota Seca, parte deles já explorados por garimpeiros.
A pilha de estéril (parte do minério não aproveitada comercialmente) depois do projeto completo em operação, somadas, terão altura de 255 m. Uma das empresas que o formularam, a Vogbr, esteve envolvida no desastre de Mariana (MG).
Belo Sun é o que mais assusta em Belo Monte. A hidrelétrica abre o caminho para esse tipo de exploração mineral
Thaís Santi, procuradora do Ministério Público Federal em Altamira
O MPF (Ministério Público Federal) move uma ação civil pública desde 2014 contra a mineradora, o Ibama e o governo do Estado do Pará. Apesar de estar à beira de um rio federal --o Xingu-- e de duas TIs (áreas da União), o licenciamento foi feito pela Semas (Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade), do governo do Pará.
A procuradora Thaís Santi, do MPF de Altamira, diz se preocupar com o fato de a mineradora estar licenciando os títulos de lavra do projeto Volta Grande, mas ainda reter outros títulos de pesquisa que podem ser licenciados no futuro.
“Os estudos de impacto ambiental indicam que serão retirados 3,16 milhões de toneladas de minério por ano nos 11 primeiros anos. A empresa, por sua vez, anuncia a seus acionistas a possibilidade de extração de até 7 milhões de toneladas por ano", afirma a procuradora na ação civil pública.
Polêmica sobre a distância de terras indígenas
Segundo mapas da Funai (Fundação Nacional do Índio), a lavra fica 700 metros além de 10 km das TIs mais próximas: a Paquiçamba e a Arara da Volta Grande. Isso eximiria o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de fazer o licenciamento, segundo uma portaria interministerial de 2011.
“Pelo jeito que eles formularam, a TI Paquiçamba ficou a 10,7 km de distância do projeto. Só que há uma contradição entre o que está sendo licenciado e o que está sendo vendido aos investidores. Eles têm uma área enorme de extração e de pesquisa, eles organizam onde querem a área do projeto e calculam a partir dessa área a distância para as áreas indígenas”, critica a procuradora. “A empresa fala desde 2012 que o empreendimento não tem impacto sobre os indígenas. Para você concluir isso, você presume que eles tenham feito os estudos, o que eles deram a entender. Mas não [fizeram].”
A Justiça Federal suspendeu a licença de instalação justamente pela ausência de estudos na questão indígena, apontada pelo MPF.
A Belo Sun defende-se dizendo que “concordou em realizar o ECI (Estudo do Componente Indígena) não por uma obrigação legal ou regulamentar, mas por um exercício de cooperação com a Funai”. Na ação judicial, que discute a questão dos estudos de impacto do empreendimento sobre os índios, a mineradora afirma que o MPF falta com a verdade ao afirmar que não foram feitos estudos --segundo ela, foram entregues à Funai em abril do ano passado.
De acordo com o MPF, porém, “a Funai, em outubro de 2016, encaminhou ofício à Semas comunicando que os estudos apresentados pela mineradora Belo Sun foram considerados inaptos”. Em abril deste ano, o desembargador Jirair Meguerian deu ganho de causa ao MPF e determinou a suspensão da licença emitida.
“Considerando que a própria Funai, que possui atribuição para tanto, afirmou que o ECI apresentado por Belo Sun Mineração LTDA. é inapto, conclui-se que a licença de instalação não poderia ter sido emitida pela Semas/PA”, afirmou o magistrado em sua decisão.
Em nota à reportagem, a Belo Sun afirmou que “pretende complementar o ECI de forma a coletar dados primários das TIs Paquiçamba e Arara da Volta Grande” e que a “decisão temporária do TRF1 [Tribunal Regional Federal da 1ª Região] foi dada sem que o Estado do Pará e a empresa apresentassem seus argumentos sobre o caso. A mineradora confia que, após ser ouvida e apresentando os fatos referentes ao caso de forma aprofundada, a decisão temporária poderá ser revista, o que deverá acontecer ainda neste ano de 2017”.
Reação indígena pede consulta a população afetada
Enquanto a batalha se arrasta na Justiça, os jurunas reagiram e lançaram, em agosto deste ano, o Protocolo de Consulta Juruna, baseado na Convenção 169, da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina a consulta prévia, livre e informada às populações indígenas afetadas por quaisquer empreendimentos. O Brasil é signatário da convenção, que entrou em vigor no país em 2003.
O Protocolo de Consulta põe no papel a forma como os indígenas pretendem ser consultados para quaisquer empreendimentos futuros, que venham a se instalar em áreas próximas às suas terras. “Não aceitaremos qualquer projeto que nos afaste do rio Xingu ou inviabilize nossa permanência no rio. Nós não fomos consultados para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, que desviou o rio Xingu de nossa terra para usar sua água na produção de energia. Com a construção da usina, perdemos nossa principal fonte de alimentação e renda, que era a pesca artesanal e de peixes ornamentais. Não sabemos como ficarão o rio, os bichos, a floresta e nem a gente daqui para frente”, diz o documento.
O que Belo Monte não destruiu Belo Sun vai acabar de destruir
Natanael Juruna, morador da aldeia indígena Müratu
Apesar do esforço de resistência, muitos jurunas demonstram pessimismo com a questão. “A gente sofreu muito o impacto de Belo Monte e agora temos que lidar com Belo Sun. Parece, para a gente, que o que Belo Monte não destruiu Belo Sun vai acabar de destruir”, afirma o professor Natanael Juruna.
Sobreposição em áreas federais e de reassentamento
Se entre os índios a sensação predominante é de temor pela chegada de Belo Sun, nas comunidades da área de instalação do empreendimento --Ilha da Fazenda, Vila da Ressaca, Galo e Ouro Verde--, a Pública encontrou mais gente favorável do que contrária à mineradora.
“Não tem outra solução aqui, tem muita gente na região passando fome”, relata o padeiro Rômulo Amaral, morador da Vila da Ressaca. “Tem de vir o progresso aqui para essa região. Claro que tem de cumprir com as condicionantes, mas ninguém está conseguindo viver mais do garimpo, não. Aqui no garimpo manual ninguém tira mais nada, não. É só com máquina. E quem vai ter dinheiro para pôr máquina?”
Só serve para mineradora, para nós não serve mais, não. Vale a pena ficar o dia inteiro no sol para pegar meio grama de ouro ruim?
Jair Alves, comerciante
Ele conta que muitas famílias estão sobrevivendo de cestas básicas oferecidas pela Belo Sun. Em outra comunidade, o garimpo do Galo, o cenário é muito pobre. A vila parece fantasma: muitas casas vazias e comércios fechados. No local, os entrevistados apoiam a vinda da mineradora. “Acabou todo o serviço que tinha aí. Só serve para mineradora, para nós não serve mais, não. Aqui a gente está só pegando rejeito velho. Vale a pena ficar o dia inteiro no sol para pegar meio grama de ouro ruim?”, diz o comerciante Jair Alves.Por outro lado, há garimpeiros contrários ao projeto da mineradora, principalmente os que fazem parte da Coomgrif (Cooperativa Mista dos Garimpeiros da Ressaca, Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda).
“Aqui a gente tem muita área para trabalhar ainda”, afirma o garimpeiro Divino Alberto Gomes, membro da cooperativa. “A gente teria condição de instalar aqui um moinho de rampa nas rochas. A gente não ia mexer onde a Belo Sun quer mexer, que é a laje. Só que depois que eles conseguiram a licença de lavra a gente nunca mais teve a nossa renovada. A gente trabalhava nessas áreas, essas comunidades aqui tinham uma vida própria, todo mundo tinha dinheiro no bolso”, protesta.
Também há uma questão fundiária na mesa. As terras da Belo Sun estão sobre a Gleba Ituna, arrecadada e matriculada em nome da União em 1982, e sobrepostas a dois projetos de assentamento, um do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e outro do Iterpa (Instituto de Terras do Pará).
Desde 2013, a Defensoria Pública do Pará move uma ação contra a Belo Sun questionando a compra dos terrenos que futuramente serão explorados pela mineradora. Segundo a Defensoria, os títulos de posse são inválidos, embora a mineradora alegue que a aquisição de posse foi legítima. Além disso, em 2015 a SPU (Secretaria de Patrimônio da União) declarou de interesse social as vilas da Ressaca e do Galo e as destinou à regularização fundiária pelo Incra.
Hoje a gente se sente ameaçado, está arriscado a tomar um tiro porque é a gente que está atrapalhando a empresa
José Pereira da Cunha, vice-presidente da Coomgrif
Enquanto o imbróglio não se resolve na Justiça, os garimpeiros lutam para sobreviver e reclamam ter perdido uma antiga permissão de lavra que estava em vigor. “A gente conseguiu a lavra nessa área aqui, que vencia em 18 de dezembro de 2014. Em setembro de 2013, a gente correu atrás do DNPM de Belém para renovar. Eles deram, [mas] jogaram nós a 13 quilômetros daqui, num lugar que só tem caça, mato e não tem ouro”, reclama o vice-presidente da Coomgrif, José Pereira da Cunha, o “Pirulito”. “Hoje a gente se sente ameaçado, está arriscado a tomar um tiro porque é a gente que está atrapalhando a empresa”, continua.
O que diz a mineradora sobre a compra dos terrenos
Procurada pela Pública, a Belo Sun afirmou que “possui a informação de que as terras que se sobrepõem ao Projeto Volta Grande são terras federais, o que não é impeditivo legal para as atividades de mineração”.
Ainda segundo a mineradora, “uma pequena porção destas terras federais encontra-se afetada, constituindo-se no Projeto de Assentamento Ressaca do Incra. Aproximadamente 5% da área total do PA Ressaca encontra-se sobreposta ao empreendimento. Por esta razão a Belo Sun e o Incra firmaram um documento, onde a Belo Sun realizou o levantamento das benfeitorias existentes nos lotes sobrepostos, apresentou laudos de avaliação, elaborou relatório de impactos socioambientais sobre o PA Ressaca e identificou novas áreas para reforma agrária para futura aquisição e realocação dos assentados dos lotes sobrepostos, tudo conforme ajustado com o Incra em dezembro de 2016”.
A empresa afirma também que “indenizou os ocupantes dos lotes e/ou fazendas pelos direitos de posse e benfeitorias existentes” e que “os contratos de compra e venda de posse e benfeitorias firmados pela Belo Sun e respectivos posseiros foram registrados em cartório, conforme previsão em lei”.
“Após a emissão da licença de instalação do empreendimento, será iniciado o Programa de Realocação, Negociação e Inclusão Social em relação às duas vilas próximas ao empreendimento. Este programa foi submetido à avaliação do órgão ambiental, e a empresa vem dialogando com as comunidades locais desde a etapa de levantamento de áreas e de cadastramento de famílias”, completa a Belo Sun.
*Esta reportagem é parte do especial Amazônia Resiste, que pode ser acessado na íntegra em apublica.org/amazonia-resiste
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