PMs e agentes vendiam armas para chefes de facção em presídio do massacre de Manaus
No Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, objetos proibidos entravam de acordo com uma tabela de preços. Pistola com munição? De R$ 1.500 a R$ 3.000. Facões desviados da cozinha? R$ 200 por unidade. Celulares? Mesma quantia. Uma garrafa de uísque? Até R$ 1.000.
Mediante pagamentos de propina, policiais militares e agentes de ressocialização permitiram que chefes da facção criminosa FDN (Família do Norte) tivessem acesso a pistolas e facões dentro do maior presídio do Amazonas. As armas foram usadas para assassinar rivais durante o "massacre de Manaus".
As informações constam de inquérito conduzido pela força-tarefa criada pela SSP (Secretaria da Segurança Pública) do Estado para investigar a chacina de 56 presos durante a rebelião do dia 1º de janeiro --quase metade das vítimas era filiada à facção paulista PCC (Primeiro Comando da Capital), que disputa com a FDN o controle dos presídios e das rotas de tráfico na região Norte.
"É importante ressaltar que a posse de tais armas de fogo por parte do grupo rebelado, todos membros da FDN, foi crucial para que eles atingissem o seu objetivo, qual seja a morte dos internos da facção rival e de outros internos em condições de vulnerabilidade", afirmaram, no inquérito, os delegados responsáveis pela investigação.
"Por óbvio, dada a quantidade de material apreendido em poder dos rebelados, havia facilitação por parte de agentes do sistema penitenciário para o ingresso de armas de fogo, celulares, armas brancas e demais objetos de cunho proibido no referido Complexo Prisional", apontou a força-tarefa.
Quando apresentaram o resultado da investigação, em setembro, os delegados informaram que apuram a entrada de objetos proibidos no presídio em outro inquérito ainda em aberto.
Como funcionava o esquema com os policiais militares
Em 7 de abril deste ano, um detento prestou depoimento, sob sigilo, a um dos delegados que integravam a força-tarefa amazonense. Seu depoimento descreve como armas e outros objetos proibidos entravam no Compaj: parte do armamento era levada por policiais militares responsáveis pelas vigilâncias nas guaritas da muralha do complexo penitenciário.
"As armas eram encomendadas a donos de 'bocas de fumo' da cidade de Manaus pelos 'líderes' da FDN que estavam encarcerados no interior do Compaj", disse o presidiário, em depoimento.
A partir daí, os traficantes entravam em contato com os policiais militares e repassavam a estes as pistolas, de variados calibres. As armas eram entregues desmontadas e embaladas com as munições.
Os policiais militares, por sua vez, levavam as pistolas para o trabalho e, quando chegavam a seus postos nas guaritas da muralha, jogavam as armas na área de gramado do setor de regime fechado do presídio.
As armas eram recolhidas pelo detentos conhecidos como "amarelinhos"-- presos que vestem roupas amarelas e ficam responsáveis pela limpeza das fossas na área externa dos pavilhões, recolhimento de lixos, limpeza em geral e também corte de grama.
"A partir daí, os 'amarelinhos' recolhiam as armas e entregavam para os líderes da FDN nos respectivos pavilhões", disse o preso.
Era regra no presídio que somente os líderes da FDN poderiam portar armas de fogo."
Detento em depoimento à Polícia Civil do Amazonas.
Titular da SSP do Amazonas até o começo de outubro, o delegado federal Sérgio Fontes afirmou que "as ações desses agentes públicos são isoladas" e que outros casos ocorreram após o massacre.
"O que posso dizer, sem prejudicar ações futuras, é que as suspeitas não foram negligenciadas e estão sendo apuradas. É por isso que uma delegada da corregedoria participou da força-tarefa", afirmou Fontes. "Policiais militares, em regra, não deveriam ter nenhum contato com presos."
O comandante da Polícia Militar do Amazonas, coronel David Souza Brandão, afirmou "não ter conhecimento" sobre a suposta participação de policiais militares na facilitação de entrada de armas e outros objetos proibidos dentro do Compaj. "Fiz um levantamento em nossos relatórios de inteligência e não há nenhuma informação neste sentido."
"Se, porventura, o comando for notificado a respeito de desvios de condutas de policiais militares, a denúncia será apurada tanto do ponto de vista administrativo quanto do criminal, por meio de um inquérito", disse Brandão.
Como funcionava o esquema com os agentes
Em seu depoimento, o detento afirmou que funcionários do Compaj entregavam facas de cozinhas, escondidas dentro da marmita, para os chefes da FDN no presídio. Os quatro pavilhões do presídio possuíam pelo menos dois chefes, que recebiam ordens da cúpula da facção que está detida em presídios federais.
"Além disso, os agentes também facilitavam a entrada de aparelhos celulares por meio de contato com os familiares dos presos ou até mesmo porque estes agentes traziam os telefones consigo e vendiam por cerca de R$ 150 ou R$ 200, já com bateria e o respectivo carregador, de acordo com o modelo (sic)", disse o preso.
O depoimento de outro preso cita o nome de dois agentes que teriam recebidos R$ 6.000 para entregar três pistolas ponto 40 e uma 380 para a facção criminosa. As armas foram vendidas em agosto, cinco meses antes do massacre, e ficaram escondidas no pavilhão 3 no Compaj.
"Um agente avisava que estava precisando de dinheiro e que, se os presos quisessem colocar cachaça, drogas ou qualquer outra coisa, era para falar com ele. E outro agente o ajudava a entrar com essas matérias (sic)", afirma o outro preso, em seu depoimento.
De acordo com o depoimento de outros dois presos, os valores discriminados no começo desta reportagem eram de conhecimento de todos dentro do presídio. "Aceitava [receber propina] quem queria", afirmou, à polícia, um agente que foi feito refém durante o massacre. Para pagar as propinas aos agentes, os familiares dos presos levavam dinheiro escondido durante as visitas e o montante era entregue aos chefes da FDN.
Entrada de armas facilitou massacre, diz força-tarefa
Para os delegados da força-tarefa da SSP amazonense, a facilidade com que chefes da FDN tiveram acesso ao armamento foi condição essencial para que o massacre de Manaus ocorresse.
"Relatos dos internos ouvidos apontam que muitos presos vítimas da rebelião foram primeiramente acuados pelo grupo de internos armados, para depois serem abordados e mortos pelos demais presos, que na grande maioria portavam facas, facões, estoques e outros diversos tipos de armas brancas", afirmam os delegados da força-tarefa em um relatório.
"Resta-nos claro que, caso não houvesse armas de fogo nas dependências da unidade prisional, as vítimas teriam, ainda que minimamente, alguma chance de defesa, na medida em que poderiam lutar com igualdades de condições, embora o número de presos rebelados fosse bem maior que os internos adversários", completam.
Os chamados agentes de ressocialização são funcionários da Umanizzare, empresa que administra o Compaj, em regime de parceria com o governo do Amazonas.
Em entrevista ao UOL, o diretor jurídico da Umanizzare, André Caires, afirma que a empresa colaborou com a força-tarefa na investigação sobre as causas do massacre. "Todas as informações requeridas foram prestadas."
"Pelo contrato de gestão compartilhada, cabe ao Estado o exercício do poder de polícia dentro do presídio, a exemplo da aplicação da disciplina, segurança prisional e vigilância armada dos detentos. A nós cabem as chamadas atividades-meio, a exemplo de limpeza, conservação predial, atendimento médico, assistência jurídica, entre outras funções."
Questionado a respeito dos dois funcionários apontados como facilitadores de entradas de armas no presídio, Caires afirmou que ambos "foram desligados há meses", mas não confirmou se as demissões tinham "ligação direta" com os fatos narrados no inquérito.
"Nós temos procedimentos operacionais muito rígidos, nossos funcionários passam por treinamento e acompanhamento constante de suas atividades, e a empresa pune qualquer desvio de conduta", afirmou.
Até o presente momento, a Seap (Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas) não respondeu aos questionamentos enviados pelo UOL na tarde de quarta-feira (8).
Veja a íntegra da nota da SSP-AM
Procurada pela reportagem, a atual gestão da SSP-AM enviou a nota abaixo:
"A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP) informa que, em decorrência dos crimes ocorridos em cadeias de Manaus em janeiro de 2017, uma força-tarefa com a participação de diversos órgãos foi criada para apurar os fatos. A Polícia Civil do Estado abriu três inquéritos para investigar os homicídios cometidos durante as rebeliões no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa e na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP).
Os inquéritos referentes ao Compaj e a Cadeia Pública foram concluídos há cerca de 30 dias e entregues à Justiça. Atualmente, estão tramitando na 1ª Vara e 2ª Vara do Júri. O inquérito sobre as mortes na UPP está em fase final.
No decorrer das investigações, sobre o ocorrido no Compaj, houve indícios da participação de um ex-diretor do presídio, um sargento da reserva da Polícia Militar, em possíveis atos ilícitos. Mas as investigações ainda estão em curso e nada restou comprovado até o momento. Ressalta-se que um outro inquérito será aberto para cuidar especificamente do assunto.
A SSP ressalta que, havendo provas do envolvimento de qualquer agente da segurança pública em atos ilícitos, os acusados irão responder, também, administrativa e disciplinarmente junto a Corregedoria-Geral do Sistema de Segurança Pública do Amazonas".
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