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Faltam regras do Fla-Flu na discussão política, diz psicanalista sobre ódio na internet

Livro de Christian Dunker aborda temas do dia a dia permeados pelo sofrimento: "O ganha-pão dos psicanalistas" - Divulgação
Livro de Christian Dunker aborda temas do dia a dia permeados pelo sofrimento: 'O ganha-pão dos psicanalistas' Imagem: Divulgação

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

19/12/2017 04h00

“Discordo dos que pensam que a política deveria ser o espaço do debate neutro de ideias, sem a degradação representada pelo Fla-Flu eleitoral. O Fla-Flu está aí desde que há política e o antagonismo que ele representa constitui a política como ocupação do espaço público, não sem violência.”

As colocações aparecem no livro “Reinvenção da Intimidade - Políticas do Sofrimento Cotidiano” (Ubu, 2017), escrito por Christian Dunker, 51, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).

Ele continua: “A nomeação dos ‘times’ já é um ato político. Dividir as coisas entre direita e esquerda, entre progressistas e conservadores ou entre liberais e revolucionários exprime não só o lugar de quem propõe a geografia do problema, mas também a teoria da transformação que este pressupõe. Mas então o que teria mudado nessa última eleição de tal maneira que o ódio e o ressentimento parecem ter assumido o controle discursivo da situação?”.

Política é um dos muitos temas abordados nos 49 ensaios do livro, voltados a questões bastante presentes no mundo contemporâneo, que vão da solidão às redes sociais, da política à paranoia, do neoliberalismo à alienação parental. Tudo permeado por reflexões sobre o sofrimento, que, na descrição do próprio autor, é o “ganha-pão dos psicanalistas”. 

Confira a seguir os principais trechos da entrevista por telefone com Dunker, além de alguns destaques do livro.

Você diz discordar daqueles que pensam que a política deveria ser um espaço de debate neutro, sem Fla-Flu eleitoral. Mas muita gente acaba odiando o outro, principalmente nas redes sociais, por discordar de suas ideias. Como a gente chegou a isso? 

Antes de mais nada, é preciso decompor essa situação. Você odeia uma pessoa ou a sua postagem? Você está interagindo com ela sendo você mesmo ou um personagem, na forma como pensa e age? As pessoas se transformaram em suportes, suportes que escrevem, que postam fotos. O suporte não é a pessoa, e a gente realmente não tem muita ideia disso.

No livro, abordo que tratar mal o sofrimento é deixar de observar as relações de qualidade e de quantidade dos afetos. Nenhum afeto é ruim por si só. Mas, se você odeia algo a ponto de xingar, de querer silenciar, de partir para cima, este ódio é improdutivo. Um tanto de ódio é o que está em jogo nessa questão do Fla-Flu. Ou você acha que Flamengo e Fluminense se adoram? Não! E não é para se adorar. Mas ali você tem as regras do jogo.

Lá é na bola. Tem que entrar no gol e, se não entrar, você perdeu. No próximo campeonato, pode ganhar. Estamos falando de uma espécie de rito. É ódio, mas é um ódio organizado em uma estrutura simbólica. O que acontece na discussão política é que ela deixa de ser Fla-Flu e passa a ser uma mistura de todos os jogos ao mesmo tempo. Pode jogar futebol com a mão, pode dar cabeçada, jogar vôlei, basquete… essa confusão.

Nenhuma orientação política ou religiosa pode ser considerada imediatamente um transtorno mental. [...] Mesmo assim há quem defenda que determinadas ideias, e não a relação de cada um com essas ideias, possam se tornar um crivo para diagnóstico
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano''

O problema não é o Fla-Flu na política, o problema é que nos falta Fla-Flu. Cadê o juiz, cadê quem faz a mediação, cadê a CBF [Confederação Brasileira de Futebol]? Cadê o campeonato da Libertadores, o Paulista, o Carioca, os outros? As pessoas simplesmente esqueceram tudo isso [quando se fala em política], aí saem achando que são o Neymar, o Messi…
 

Virou um Vale Tudo...

O Vale Tudo ainda tem o octógono, tem as classes, os pesos. O que acontece hoje é uma coisa que não tem muito nome. Esta confusão está aí justamente porque não temos o Fla-Flu. 

Capa do livro ''Reinvenção da Intimidade --Políticas de Sofrimento Cotidiano'' - Divulgação/Editora Ubu - Divulgação/Editora Ubu
Ensaios cobrem "26 anos de intervenções e reflexões práticas sobre o sofrimento"
Imagem: Divulgação/Editora Ubu

O Brasil está muito polarizado para as eleições de 2018. Estamos vendo um momento difícil, mas é possível manter a esperança de que dá para mudar?

Vou fazer uma correção na ideia de esperança, que é muito ruim do ponto de vista político. Ela é nossa confiança em líderes salvadores, nosso cinismo. A esperança é um afeto ruim para a política. Ela cria aquela posição de espera para que o outro faça alguma coisa, que aconteça algo que não tem a ver com você. Eu diria que não tem esperança, mas tem o desejo.

Nessa confusão toda, muitos atores políticos entraram em cena. Muita gente querendo falar sobre o assunto. Tem muita gente de olho no que está acontecendo nas nossas instituições e comunidades brasileiras. Isso me deixa otimista. Não esperançoso, pensando no que eu falei antes. Mas me faz olhar para o quadro e pensar: “Não precisávamos disso? De um reinício? Um corte, uma espécie de ‘deu’ nesse tipo de política?”.

Agora o que vai contar é o nosso desejo. Se é que temos coragem --e coragem é um afeto muito melhor que a esperança-- de voltar lá e encarar aquela conversa difícil, encarar os nossos próprios limites, nossa incapacidade de entender o quadro, as contas que estão em jogo. A gente encobre com esperança muita da preguiça política. E a preguiça com o nosso destino é o que está nos matando faz tempo.

Cabe então, em um momento de sofrimento, saber o que a gente vai fazer com isso. Se vai ser um sofrimento produtivo ou improdutivo. E isso não é parte da natureza: a gente é que tem de resolver. 

A nossa percepção de política, ainda que parcial ou equivocada, muda nossa relação com o mundo e a interpretação de quem são esses outros com quem vivemos. Um discurso que pregue que só existem homens e mulheres, loucos e normais, judeus e gregos, ricos e pobres, nordestinos e sulistas, para em seguida perguntar: ‘De que lado você está?’, incindirá em todas as psicopatologias, extraindo de cada uma delas o que há de pior
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano''

Existe um clima de desesperança no país, com muitas denúncias de corrupção, desemprego... É um momento realmente mais difícil ou temos a impressão de que é mais difícil porque todos dizem isso?

O sofrimento depende de como a gente o interpreta, que tipo de causalidade atribuímos a ele. Se a gente interpreta que o momento é difícil, o sofrimento quer dizer uma coisa. Se interpretamos como fácil, é outra coisa. Mas é fato que temos um incremento do sofrimento em escala mundial e também em áreas antes mais protegidas. O suicídio de universitários, por exemplo, teve um aumento real e tornou-se um problema de ordem pública.

Isso tem a ver com um aumento excessivo na expectativa sobre os resultados de desempenho, uma interpretação da gramática neoliberal. E com a perda das relações da comunidade, de intimidade e da partilha do sofrimento, que você costumava ter na vida universitária. A experiência de grupo, liberdade e contestação vem se tornando uma experiência de adaptação, conformidade e redução de nosso horizonte. O futuro, então, vai se tornando mais incerto, com as pessoas se adequando para sobreviver.

Esse recolhimento faz muito mal, acelera o processo de sofrimento. Individualiza as pessoas, faz com que cada um fique na sua bolha. Não conseguem ver o problema do outro, sentir o sofrimento do outro, o que aumenta em certo nível sua experiência de sofrimento. Aumentou a dose do veneno, reduziu a do antídoto.

Aparecem então os sintomas, que são a próxima fase do sofrimento. Pânico, depressão, anorexia e dependência química, por exemplo, são sintomas do sofrimento com o qual não conseguimos lidar. Quando o sofrimento é maltratado, evolui para os sintomas e aí temos epidemias de doenças e transtornos mentais.

Sofrer é algo que depende essencialmente de três condições: a narrativa na qual está inserido; os atos de reconhecimento que fixam sua causa e a transitividade que o torna uma experiência coletiva e indeterminada. [...] A forma como contamos, justificamos e partilhamos nosso sofrimento está sujeita a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das vítimas, o poder dos indiferentes e até o poder da indiferença ao poder
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano'' 

Christian Dunker - Walter Craveiro/Divulgação/Flip - Walter Craveiro/Divulgação/Flip
Christian Dunker diz que livro é para público 'mais amplo', não só especialistas
Imagem: Walter Craveiro/Divulgação/Flip

A gente chegou nisso por causa dessa cultura da felicidade, da obrigação de ser feliz?

Sim. A cultura da felicidade é um sintoma do empobrecimento da nossa capacidade de entrar nas minúcias do desejo, do amor, da angústia e do sofrimento. Fomos formados para viver essas experiências ao longo dos séculos com uma certa gramática e isso dá um tremendo trabalho. De repente, a gente quer ter a mesma vida que tinha antes sem ter o cuidado que a gente tinha antes.

Mesmo que não existissem psicólogos, o cuidado era feito pela comunidade, pelo seu grupo de referência, suas amizades, companheiros. Tira tudo isso, cria uma vida em que a gente vive sozinho e tem que se virar tempo todo. O que vai acontecer? Vai aparecer uma grande expectativa que a gente tem de ser feliz. Isso é um ideal pobre, parte do problema que leva a gente a aumentar nosso coeficiente de sofrimento. Porque ele tem a ver com o tamanho dos nossos ideais. Estamos permanentemente sentindo nossa vida como inadequada.

Há alguns anos vem aparecendo nos consultórios uma nova forma de sofrimento psíquico. São pessoas que se declaram incapazes de formar um laço de intimidade com o outro. [...] Aparentemente tudo está a contento, a não ser por este incômodo pormenor: raramente estão de fato com o outro em uma relação íntima
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano''

Não tem como escapar de falar sobre redes sociais quando se fala nesse ideal de felicidade…

A gente não deve demonizar, porque elas trazem muitas coisas interessantes, permitem novas formas de intimidade, de partilhar afetos e emoções. São potentes veículos para a expressão de quem era minoritário e invisível, acho isso muito legal. Mas é uma ferramenta que a gente está usando de forma um pouco experimental. São comuns os usos pobres, que simplesmente proliferam a forma de sofrer pouco transformativa.

Há muito que se fazer para inventar as redes sociais para verdadeiramente lidar com o sofrimento. Muitas pessoas dizem sentir falta de debater, no sentido de trocar opiniões divergentes, nas redes sociais. Porque depois de duas palavras a pessoa está xingando e você a bloqueia. Isso é um sinal de que não estamos conseguindo usar um instrumento para tratar o sofrimento, que é o debate, é a controvérsia, a polêmica. Ele está aí, os meios estão dados, mas nossa cultura não está à altura dos nossos meios.

Na maior parte do tempo estamos deslizando de uma imagem para outra ou nos esforçando para manipular a imagem que os outros fazem de nós, justamente para escapar deste terrível ‘você é isso’. Preferimos, ao contrário, a efemeridade do ‘estou, neste momento, sendo isso’, mas quero garantir para mim mesmo e para os que me cercam que amanhã, ou digamos, daqui a duas horas, posso ser outra coisa. Basta mudar meu perfil
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano''

Qual a relação entre a intimidade e o sofrimento, duas palavras fortes do título do seu livro?

Nesse momento de individualização, marcado por um recolhimento defensivo e um certo egoísmo da sobrevivência de cada um, o que nos abre para o outro? Ou é aquele encontro mais raro, amoroso, do desejo ou é uma experiência comum, que naturalmente convida a gente a partilhar com os outros, que é o sofrimento.

Isso não quer dizer que, porque está sofrendo, você produzirá relações de intimidade. Mas essa situação nos torna mais vulneráveis, mais inclinados a lembrar que existe uma vida compartilhada com o outro. Nessa hora [de sofrimento] a gente parece precisar agudamente disso.

E o sofrimento é uma coisa contagiosa. Sofrimento pega. Você vai falando e de repente não sabe mais se está sofrendo porque o outro está sofrendo ou se o outro está sofrendo porque você está sofrendo. Ele cria esses novelos.

O sofrimento se estrutura como uma narrativa. Ao contrário da dor, que permanece mais ou menos igual a si mesma, o sofrimento exprime-se em séries transformativas, ele se realiza por meio de um enredo, ele convoca personagens (como a vítima e o carrasco). [...] O sofrimento varia radicalmente em conformidade com o saber que se organiza em torno e por meio dele
Trecho de ''Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano''

Por essa lógica, podemos considerar que a felicidade nos torna mais egoístas?

Sim. O sofrimento consegue amealhar um grau de autenticidade, de abertura de si que a felicidade realmente não tem. A felicidade não leva a nada: ela caracteriza justamente aquele momento em que não falta nada. Portanto você não precisa se mexer nem se transformar.

A intimidade, por um lado, e o sofrimento, por outro, são um meio e um impulsionador das nossas transformações.

A gente muda porque sofre, porque encontra uma certa relação com o sofrimento. Tanto a ideia de mudar o mundo quanto mudar o outro e a nós mesmos depende de qual é a nossa posição --uma posição subjetiva-- diante do nosso sofrimento. Daí a importância crítica do tipo de história que a gente conta, porque há histórias que deixam a gente sofrendo no mesmo lugar.

Como o sofrimento é contagioso?

Ele é contagioso porque envolve uma certa indeterminação. A gente não sabe exatamente a totalidade das causas que levam a gente a sofrer. E a sofrer especificamente daquele jeito. E, quando a gente não sabe, por um lado a gente vai investigar, vai procurar descobrir, o que é muito interessante e leva a gente para outros lugares. Por outro lado, a determinação dessa causa envolve a participação do outro.

O outro precisa sancionar ou negar aquela história que a gente tem. E isso traz uma espécie de conflito de narrativa, que a gente não consegue ver muito bem na felicidade. Um conflito construtivo, produtivo, à medida que posso, ao falar do meu sofrimento, incluir o outro como causa dele. Quando, por exemplo, não me escuta, não me entende, não me dá atenção. Mesmo que o outro não tenha nada a ver com as causas reais, passa a ter do ponto de vista das causas imaginárias.

Por aí o sofrimento se torna contagioso. Você começa a escutar o sofrimento do outro e se vê implicado nele. E se vê tomado nesse novelo alguma hora em que é convidado a dar uma opinião, concordar, discordar, compartilhar as hipóteses sobre as causas.

O sofrimento traz uma espécie de decisão política: você vai torná-lo produtivo, mudar a si e o mundo, ou vai torná-lo improdutivo? A partir daí, nossa atitude pode desenvolver nossa capacidade de aceitação, que é importante para viver bem. Mas, se toda atitude diante do sofrimento for sempre essa, você vai se tornar conformista, alguém adaptado ao sofrimento.

Diante do nosso sofrimento há sempre uma escolha a fazer, transformar o mundo ou transformar a nós mesmos. Frequentemente nos recusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos sofrendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que sofrer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa experiência é uma fraqueza moral
Trecho de “Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano”

Na contramão do sofrimento, existe um movimento forte nas redes sociais do uso da palavra “gratidão”. Você vê os efeitos desse movimento no comportamento das pessoas?
 

Acho que isso se deve a uma certa sensibilidade social de perceber que o sofrimento muda quando a gente o reconhece. E que, portanto, uma atitude de gratidão é uma atitude protetiva. Ela reduz a quantidade de sofrimento e insatisfação que a gente tem. Acho isso muito interessante, é uma atitude básica e saudável.

Mas também vejo essa tendência como uma espécie de gratidão postiça. De “eu vou mostrar essa gratidão porque eu quero receber em troca uma posição empática do outro, quero que o outro também me reconheça”. De tal maneira que, às vezes, falta a essa tal gratidão a autenticidade que você tem com a experiência íntima.

Uma gratidão mostrada ao vento, para qualquer um, de forma impessoal, como um depoimento de vida, é interessante, mas falta aquilo que justamente o sofrimento nos convida a fazer, que seria detectar a quem você é grato. A quem especificamente e pessoalmente você é grato? Com quem você quer partilhar uma gratidão autêntica? Isso é difícil, tão difícil quanto a intimidade que a gente está procurando.

Essa tendência nas redes sociais vem como uma resposta social, uma estratégia não combinada e inconsciente, para tentar amenizar o ódio. Amenizar o conflito que aparece do nada nas redes sociais e já domina esse ambiente há algum tempo. É uma espécie de autorregulação que a gente está vendo: mais gratidão, menos ódio.

Felicidade e sofrimento são experiências transitivistas, pois ambas indeterminam quem exatamente está na posição de agente e paciente da ação. Daí a tendência ao agradecimento e à coletivização das narrativas de felicidade e a tendência culpabilizante ou vitimizante de experiências de sofrimento
Trecho de “Reinvenção da Intimidade - Políticas de Sofrimento Cotidiano”