Aposentado trabalha todos os dias para transformar terreno baldio em praça em Curitiba
Raramente falha: Fátima Fernandes chega pouco antes das 6h à padaria em que trabalha, estica os olhos para o outro lado da rua e vê o aposentado Francisco Toda, 82, já na lida, uma vassoura ou um rastelo na mão, cuidando do terreno baldio que ele mesmo transformou em praça pública numa esquina do Juvevê, bairro de classe média na região norte de Curitiba.
Toda dedica ao menos três horas por dia, de segunda a segunda, a melhorar o local. Não satisfeito, mantém limpas as calçadas de parte das quadras que formam a esquina em que está a praça informal.
"Eu tenho um lema, sabe? Viver, amar, ser amado, ser reconhecido e ser útil", disse o aposentado, um descendente de japoneses miúdo, um pouco curvado, de aparelho de surdez nos ouvidos, mas ainda forte, bom de conversa e bem-disposto.
Na praça, Toda plantou canteiros de rosas, hortênsias e dálias, além de uma exuberante costela-de-adão. Há também uma horta, com couve-manteiga, cheiro-verde e hortelã.
O aposentado também construiu uma pequena mesa e quatro cadeiras de madeira, forradas com plástico oleado, e um balanço para crianças, que se aproveita da estrutura antigamente usada para sustentar uma placa.
"Ainda quero fazer um escorregador", disse ele, que tem o costume de deixar suas ferramentas de trabalho na própria praça. "Já estou no terceiro rastelo. Os dois primeiros, levaram. Mas não faz mal. Penso que o camarada que levou está fazendo limpeza em outro lugar."
"Isso aqui era abandonado", afirmou a diarista Marilene Moraes. No dia em que a reportagem esteve na praça, ela procurava na pequena horta um pouco de quebra-pedra para a patroa de 92 anos. "Ela pediu e pensei: vou lá perguntar pro vô", diz, se referindo a Toda. Não encontrou. "Não faz mal. É muito lindo o que ele faz. Um dia eu pedi um banquinho, para a gente sentar, e ele fez. Eu já chamo isso aqui de praça do vovô."
Terreno está em disputa judicial
O terreno em que Francisco Toda fez sua pracinha tem dono. Mais de um, a bem da verdade --e é aí que está o problema. A área era usada desde a década de 1950 pela União Paranaense dos Estudantes Secundaristas (Upes).
"Uma antiga gestão vendeu a sede para uma construtora, mas os estudantes entraram com uma ação judicial [contestando o negócio]", relatou Matheus dos Santos, que até o até o fim de 2017 presidiu a entidade. A Upes considera que a venda foi ilegal e também cobra os antigos gestores sobre o negócio.
"Comprei o terreno em 2007, de um advogado que o havia comprado da Upes em 1995", disse o construtor Ricardo Menezes, que disputa a propriedade com os estudantes na Justiça. "Estava tudo certo, no registro. Quando fui colocar muro é que apareceram os estudantes e vi que tinha encrenca. Foi o primeiro terreno que comprei, e o único. Me deu desgosto", lamentou-se.
O escritório de advocacia de Luiz Edson Fachin, atualmente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), encampou a briga dos estudantes e obteve um mandado de reintegração de posse em favor da Upes.
Mas, numa madrugada de 2009, a construtora de Menezes demoliu a casa que abrigava a entidade. Outra, de madeira, foi erguida no lugar, mas durou pouco --foi destruída num incêndio, em 2014, atribuído pelos vizinhos a uma vela deixada acessa por um morador de rua que a usava como abrigo.
"Dava desgosto de ver os destroços", relembra Toda. A vizinhança conseguiu que a prefeitura viesse recolher os escombros deixados pelo fogo, e o aposentado arregaçou as mangas. "Eu já limpava o terreno antes, mas daí passei a cuidar melhor. E foi aí que o jardim começou a aparecer."
A questão ainda se arrasta na Justiça. O atual proprietário do terreno recorreu da reintegração de posse à Upes e não há solução no horizonte. Alguns sinais da presença da entidade ainda estão por aí --como a fundação da casa original, em concreto, a rés-do-chão e as pixações contra o governador tucano Beto Richa nos muros. Mas, graças a Francisco Toda, hoje o local tem jeito mesmo é de praça pública.
Toda já fez "de tudo um pouco"
Paulista de Tupã (436 km a noroeste da capital), Francisco Toda está em Curitiba há apenas 16 anos. Até chegar ao Paraná, fizera "de tudo um pouco". "Fui madeireiro, tive lanchonete, fui garagista, trabalhei com compra e venda de veículos", enumerou.
Isso, no Brasil. No Japão, aonde foi em 1990 "para passear", trabalhou por quase dez anos como metalúrgico e numa fábrica de alimentos.
"Foi na época em que o Brasil estava difícil", explicou, referindo-se ao começo dos anos 1990, tempo de outras crises. "Eu ligava pro meu filho, no Brasil, e ele dizia: os bancos estão quebrando, as empresas estão quebrando. Eu ia ficando."
No pequeno prédio próximo à praça, Toda vivia até há poucas semanas com a mulher, Fumiê, acometida havia três anos e meio por um acidente vascular cerebral e desde então presa a uma cadeira de rodas.
No começo de dezembro, ela morreu. Toda sumiu --foi ao norte do Paraná para o funeral de Fumiê. O mato cresceu na praça; a vizinhança, consternada pelo casal, ainda se viu preocupada com o destino do espaço. Será que Toda voltaria a Curitiba?
Não tardou, porém, para que ele voltasse a aparecer, trabalhando como sempre. "Ela estava sofrendo muito", falou, sobre a mulher. "Deus sabe o que faz", resignou-se. E prosseguiu com a missão de que se incumbiu.
Enquanto isso, a Upes prepara uma homenagem a Toda, pelo bom uso que ele deu ao terreno em litígio --um trabalho que Ricardo Menezes, adversário da entidade nos tribunais, também reconhece. Não será a primeira: o conselho de segurança do bairro o homenageou recentemente. Como apregoa em seu lema de vida, Francisco Toda é um homem reconhecido.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.