Burocracia paralisa busca por ossadas de guerrilheiros no Araguaia
As buscas por ossadas de guerrilheiros e camponeses mortos durante a Guerrilha do Araguaia (1972 a 1975) foram paralisadas desde que o presidente Michel Temer (MDB) assumiu o governo. Entre 2016 e 2017, nenhuma expedição foi realizada à região para tentar localizar os restos mortais de pelo menos 70 pessoas, entre guerrilheiros e camponeses que, segundo relatos, foram mortos durante confrontos com as Forças Armadas.
O governo federal admite a suspensão das buscas e diz que ela ocorreu por conta das mudanças na estrutura do governo após a extinção e posterior recriação do Ministério dos Direitos Humanos, ambas determinadas por Temer.
As buscas por ossadas dos combatentes e camponeses mortos durante a Guerrilha do Araguaia são feitas, desde 2011, pelo GTA (Grupo de Trabalho do Araguaia), formado por integrantes do Ministério dos Direitos Humanos, da Justiça e da Defesa.
Para tentar localizar os restos mortais das vítimas, as expedições realizavam escavações usando informações coletadas junto a documentos, ex-guerrilheiros e camponeses que estavam na região na época dos confrontos entre militantes e militares.
Desde a criação do GTA, as expedições eram feitas anualmente, quase sempre no segundo semestre (após a temporada de chuvas na Amazônia), mas, em 2016 e em 2017, nenhuma foi realizada. O período coincide com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) --afastada em maio de 2016-- e a chegada ao poder do presidente Michel Temer (MDB).
"Perdemos dois anos"
Diva Santana é integrante do movimento Tortura Nunca Mais da Bahia, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e é irmã de uma das combatentes desaparecidas na Guerrilha do Araguaia, Dina Santana. Para ela, a paralisação das expedições demonstra a falta de vontade política do atual governo.
“Houve uma mudança na condução desse assunto no atual governo. De 2016 em diante, não aconteceu mais nada. Ninguém fala isso na nossa cara. Não há nada escrito ou falado sobre isso, mas o fato é que entre 2016 e 2017 não houve nenhuma expedição. Perdemos dois anos”, disse Diva Santana.
O presidente da ATGA (Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia), Sezpstrys Alves, diz que, ao longo dos últimos dois anos, o governo não deu nenhuma explicação oficial sobre a paralisação das expedições. A ATGA representa camponeses que viviam na região do Araguaia e que teriam sido torturados por militares que participaram da operação para combater os guerrilheiros.
“Eles não deram nenhuma justificativa para nós sobre o fim das expedições. Houve uma série de mudanças na composição da Comissão da Anistia, nos ministérios e eu acredito que isso teve alguma influência”, afirmou.
Alves diz que a demora na realização de novas expedições dificulta ainda mais a localização das ossadas. Ele compara o cenário a uma corrida contra o tempo.
“A maior parte das informações sobre as ossadas são dos camponeses que ainda estão vivos e que foram usados pelos militares durante os confrontos. Mas essas pessoas estão ficando velhas, estão morrendo. É uma corrida contra o tempo. Quanto mais se demora, mais difícil fica encontrar essas ossadas”, explica.
Governo admite fim de expedições, mas nega paralisação
Os Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos confirmam a suspensão das expedições em busca de ossadas no Araguaia entre 2016 e 2017, mas negam que o GTA tenha paralisado suas atividades. Segundo os órgãos, mudanças burocráticas impediram a continuidade das buscas.
O Ministério da Justiça disse que a suspensão das expedições aconteceu após a extinção do Ministério dos Direitos Humanos, determinada por Temer logo que assumiu a Presidência.
Isso porque o funcionamento do GTA dependia de uma estrutura “tripartite” que contava com integrantes dos Ministérios da Justiça, da Defesa e dos Direitos Humanos. Com o fim do Ministério dos Direitos Humanos, em maio de 2016, essa estrutura deixou de existir, o que teria, segundo o governo, inviabilizado a realização das buscas. A situação só foi normalizada em 2017, quando Temer recriou o Ministério dos Direitos Humanos.
“Com a Lei nº 13.341/2016, que extinguiu os Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos [...] quebrou-se a estrutura tripartite. Tal situação só foi alterada com a Medida Provisória nº 782, 31/05/2017, que criou o cargo de Ministro de Estado dos Direitos Humanos e com ele a volta da realidade tripartite, o que possibilitou a volta da atuação do grupo”, disse o Ministério da Justiça em resposta enviada ao UOL.
Ainda segundo o Ministério da Justiça, apesar da recriação do Ministério dos Direitos Humanos em meados de 2017, não houve "tempo hábil" para a organização de expedições ao Araguaia naquele ano.
Exército: "trabalhos parados por falta de recursos"
A mudança na estrutura dos ministérios do governo Temer afetou também a alocação de recursos destinados ao funcionamento do GTA. Entre 2011 e 2015, por exemplo, o Ministério da Justiça destinou R$ 216 mil por ano (em média) para o funcionamento do grupo. Em 2016 e 2017, este orçamento foi reduzido a zero.
O Exército Brasileiro, em nota, confirma que a falta de recursos afetou a realização das expedições à região do Araguaia.
“A última expedição foi realizada em 2015, sempre contando com representantes do Exército Brasileiro [...] Atualmente, os trabalhos estão parados por falta de recursos”, diz um trecho da nota.
Os Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos, porém, negam que os trabalhos do GTA tenham sido paralisados nos últimos dois anos. Eles argumentam que, embora não tenham ocorrido expedições à região, o trabalho de perícia forense junto às ossadas já localizadas continuaram normalmente.
Vinte e sete ossadas foram encontradas nos últimos anos, mas nenhuma foi identificada. Os peritos, segundo o Ministério dos Direitos Humanos, não conseguiram coletar material genético nos restos mortais até o momento.
“A coordenação do GTA optou por concluir o ciclo do processo de investigação forense desenvolvido até então e priorizou a armazenagem dos restos mortais recolhidos durante suas expedições e em expedições anteriores”, diz o ministério em nota.
O Ministério dos Direitos Humanos, por meio de nota, reforçou seu argumento de que a suspensão das expedições ao Araguaia não resultou na paralisação dos trabalhos do grupo.
"Embora o ano de 2016 tenha sido um momento de transformações na estrutura da então Secretaria de Direitos Humanos, os trabalhos do GTA não foram paralisados, contando com os avanços no campo da investigação social anteriormente mencionados", afirmou o órgão.
O Ministério dos Direitos Humanos informou ainda que três novas expedições foram programadas para 2018. “A gente está aguardando para ver se essas expedições vão ser mesmo feitas, mas o clima entre os familiares das vítimas é de desconfiança. A gente se sente traído e desolado”, diz a ativista.
Também por meio de nota, o Ministério da Defesa afirmou que a suspensão das expedições ao Araguaia não representou a "paralisação" das atividades do GTA. O ministério disse ainda que vários militares colaboraram fornecendo informações sobre os confrontos entre guerrilheiros e as Forças Armadas. "Vários militares que participaram do conflito à época colaboraram, voluntariamente, com as atividades de buscas. Outros militares foram intimados a prestar depoimento perante o Poder Judiciário", disse o ministério.
Procurada, a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto disse que não iria se manifestar sobre o assunto.
Confronto entre militantes e Forças Armadas em plena Amazônia
A Guerrilha do Araguaia aconteceu entre os anos de 1972 e 1975. Militantes de esquerda contrários à ditadura militar se instalaram no interior do Pará. A intenção era desestabilizar o regime a partir do combate em áreas rurais. A ideia era ganhar o apoio da população local antes de iniciar os combates às forças da ditadura.
Após descobrirem a presença de militantes de esquerda na região, os militares organizaram três operações com o objetivo de derrotar os guerrilheiros.
Estima-se que pelo menos 70 pessoas tenham sido mortas durante esses confrontos. Em 2010, a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) condenou o Brasil a localizar os corpos e a identificar e processar judicialmente os responsáveis pelas mortes.
A partir de então, o governo criou a CNV (Comissão Nacional da Verdade) que apurou a responsabilidade de agentes do governo nas mortes e torturas ocorridas durante a ditadura militar.
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