Como um grupo de mulheres levou à prisão um homem com HIV que transava sem camisinha
Viviane* diz ter conhecido Renato Peixoto Leal Filho em um site de relacionamento. Eles se encontraram pessoalmente uma única vez, em julho de 2015, quando ele a buscou de carro e foram até seu apartamento, na Barra da Tijuca (RJ). Lá fizeram sexo.
Segundo Viviane, foi tudo rápido. De forma agressiva, ele arrancou sua calça jeans sem desabotoá-la. Ela disse ter reclamado e ele então mudou de atitude, voltando a ser gentil e alegando a necessidade de ajuste, pois aquela era a primeira vez do casal. Fizeram sexo novamente, sempre sem preservativo. Ela voltou para casa no dia seguinte e não quis mais encontrá-lo: “Parecia um garoto solteirão que só queria saber de praia e surfe”, disse à Justiça.
Dois meses depois, foi procurada via mensagem direta no Facebook por desconhecidas --e esta reportagem é sobre a ação dessas mulheres. Elas mencionavam o nome completo de Peixoto, sua idade, endereço, abordagem e revelavam que ele tinha o vírus da Aids. Segundo elas, o homem era um “carimbador” --fazia sexo sem camisinha e sem mencionar o HIV às parceiras, no intuito de transmitir a doença. Viviane logo fez o exame e confirmou: estava infectada. À Justiça, explicou que só poderia ter pegado o vírus de Peixoto.
O fato de algumas vítimas terem se unido para denunciar o caso levou o acusado a ser condenado, em 18 de maio, a sete anos de prisão em regime fechado --está preso desde julho de 2017, quando se entregou ao TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). A pena refere-se à prática repetida do crime de lesão corporal gravíssima (o inciso 2º do artigo 129 do Código Penal, citado na decisão, menciona “enfermidade incurável” como resultado da ação criminosa), assim como na sua forma tentada.
Wallace Pereira Mendonça, advogado de defesa, entrou com recurso. “O Ministério Público recorreu primeiro, pois achou que sete anos eram pouco. Como isso, a defesa se achou no direito de fazer o mesmo para diminuir a pena”, afirmou Mendonça em entrevista por telefone. Ele alega que Peixoto não conhecia Viviane e que não há, no processo, provas materiais de que foi infectada por ele. O objetivo, segundo o advogado, é anular a condenação referente a Viviane por falta de provas e também o "dolo" da segunda acusação. Com isso, calcula, a pena diminuiria "bastante" e poderia ser cumprida em regime semiaberto.
Em depoimento à Justiça, Peixoto negou a intenção de transmitir o vírus da Aids e disse não conhecer o grupo dos “carimbadores”. Também alegou que informava as parceiras sobre a doença e que as testemunhas “arruinaram sua vida em retaliação por ter acabado com o sonho delas de terem conforto e mordomia”, considerando que ele mora em um “lugar legal, cinco estrelas e de frente para o mar”.
Você é preconceituosa, você jamais ficaria comigo. Você limpa, você sem nada e eu com doença? Você jamais ia ficar comigo. Você é escrota
Renato Peixoto, em mensagem de áudio entregue à Justiça
“Roleta-russa com a vida dos outros”
Após o alerta recebido via Facebook, Viviane juntou-se a um grupo de WhatsApp, do qual outras três mulheres faziam parte: Rosa*, Bianca* e Maria* (a condenação por crime tentado refere-se a esta última). Todas ex-parceiras de Peixoto, que viveram com ele experiências bem parecidas --das quatro, Viviane foi a única a pegar o vírus.
À Justiça, Peixoto disse que Rosa foi “quem iniciou tudo”, referindo-se às acusações. Ou, nas palavras de seu advogado, “ela foi responsável por arquitetar tudo, fazer contato com as mulheres, para que fizessem mau juízo do Renato. Ela foi o pivô”. Isso se deu ao término do relacionamento entre os dois, que foi do final de 2014 a março de 2015. Na ocasião, Rosa, então com 22 anos, saiu de seu estado para morar no Rio com Peixoto, que havia conhecido via redes sociais. Segundo ela, o então namorado nunca havia mencionado ser soropositivo.
Eu não estou em estado terminal, não sou um cara aidético. Sacou? Eu tenho o vírus dentro de mim, que tá paralisado, tá morto, tá quase morto. Mas ele tá aqui dentro. Mas ele não tá agindo
Renato Peixoto, em mensagem de áudio entregue à Justiça
Depois de descobrir a doença e de muitas brigas, Rosa retornou à casa dos pais. “Cheguei a achar mais fácil me matar do que voltar e contar para eles. Eu me sentia presa a ele [Peixoto] pela doença, mesmo sem fazer os exames. Assim eu acabei ficando nesse relacionamento abusivo”, contou ao UOL. Na volta, abriu o jogo com a família --"minha mãe definhou", lembra-- e fez exames repetidas vezes, todos com resultado negativo.
Ela continuou falando com o ex, com quem disse ter mantido um relacionamento amigável por algum tempo. Nessas conversas, afirma ter se dado conta de que o ex-namorado não deixaria de colocar a vida de outras pessoas em risco. “Ele é extremamente ruim e estava certo de que não seria preso. Em nosso último contato, falei que não pensaria duas vezes antes de colocá-lo na cadeia, que eu tinha coragem de fazer isso. Eu não queria outras meninas passando pelo mesmo que eu passei.” Foi quando decidiu contatar outras mulheres e alertá-las sobre seu ex-namorado. “Passei alguns meses só respirando isso.”
Ele brincava de roleta-russa com a vida dos outros
Rosa*, ex-namorada de Renato Peixoto
Contato via lista de amigos
Como Rosa ainda tinha amizade com Peixoto no Facebook, usou essa página para identificar e alertar Maria --com quem soube que o ex se encontrou em junho de 2015. Maria ouviu a então desconhecida e o confrontou, depois de eles já terem parado de se ver. Peixoto admitiu ser soropositivo e a ameaçou de sequestro, caso o denunciasse. Também ameaçou se matar.
Antes de ir pra cadeia eu me mato, aí sim eu me mato. Você acha que eu vou para a cadeia? Você acha mesmo? Eu dou um tiro... eu vou para a favela, sacou? Quero ver me pegar lá dentro. Quem se aproximar de mim eu meto bala. Não tenho nada a perder
Renato Peixoto, em mensagem de áudio entregue à Justiça
Peixoto passou então a mandar vídeos para Maria em que aparecia tendo relações sexuais sem preservativo com ao menos outras 20 mulheres --algo no estilo “você não me quer, mas tem quem queira”, segundo explicou Rosa.
Com base nessas imagens, e também nas histórias que havia contado sobre suas ex-parceiras, Rosa e Maria as procuravam entre os contatos de Peixoto no Facebook. Quando identificavam alguém, enviavam em privado um texto de alerta, como aconteceu com Viviane.
Foram então bloqueadas por Peixoto, perdendo acesso a essa lista de amigos. “Muitas vezes elas mesmas nos bloqueavam após fazermos o primeiro contato. Mas, para aquelas que respondiam, a gente dava mais detalhes. A maioria não quis ouvir, pois ele dizia que eram acusações de uma ex louca, uma retaliação, e as pessoas acreditavam. Deu para ver o quanto o gênero feminino é desunido”, avalia Rosa.
Camila*, única testemunha de defesa e namorada do acusado na época do depoimento, disse ter sido contatada por Rosa e recebido mensagens nas quais era chamada de burra. Rosa nega, afirmando nunca ter havido discussão entre elas.
Tô tomando remédio [...]. Posso te comer de novo sem camisinha, c****** a quatro, que não vai pegar. Não viaja. Todas as mulheres [...] não pegaram nada. Comi c*, comi b*****, sacou?
Renato Peixoto, em mensagem de áudio entregue à Justiça
Peixoto alegou em seu depoimento que Rosa instalou um vírus em seu computador para acessar o conteúdo da máquina, versão reforçada por seu advogado. Ela também nega, dando a explicação acima sobre como obtinha os arquivos e chegava às pessoas: “A gente ria das suspeitas dele, que não sabe mexer com tecnologia”. Os vídeos e os áudios enviados por Peixoto a Maria --estes últimos expostos em forma de texto nesta reportagem-- foram usados como prova.
Uma curiosidade sobre o processo. Em 27 de fevereiro deste ano, antes da condenação, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, rejeitou um pedido de habeas corpus feito pela defesa de Peixoto. “A periculosidade do agente evidencia-se pelo modus operandi e pela quantidade de vítimas identificadas. Nesse sentido, somente a custódia cautelar poderá coibir a prática reiterada de novos delitos”, escreveu.
Perfis falsos e atenção da mídia
Paralelamente aos alertas, as mulheres criaram perfis falsos no Tinder em que colocavam a foto de Peixoto e o descreviam como "carimbador". Também faziam postagens no Facebook, em grupos informativos próximos à região onde ele morava, com o alerta. “Às vezes a mensagem atingia muitos compartilhamentos, ele denunciava e o site excluía o post. Aí tinha de começar tudo de novo. Criamos uns dez perfis para fazer isso”, lembrou Rosa.
Ela disse que não tinha medo de responder judicialmente por esses atos e que Peixoto chegou a fazer um registro de ocorrência, na tentativa de coibir a prática --Rosa conta que, como nem ele compareceu na data designada pelo Juizado Especial Criminal, a história acabou não indo adiante. Sobre essas páginas em redes sociais, o acusado disse que foi criado um perfil falso em seu nome, incitando o ódio entre pessoas, e sua doença, que era um segredo, foi exposta da pior forma.
Com base no relato da reportagem, o advogado Renato Opice Blum afirma que as ex-parceiras não cometeram crimes: “Pelo contrário. Elas podem ter evitado a prática de novos crimes, alertando outras mulheres [sobre Peixoto]”. Coordenador do curso de direito digital e proteção de dados do Insper, ele explica que a acusação de falsa identidade --relacionada ao perfil do Tinder, por exemplo-- precisa estar associada a algum prejuízo, o que não aconteceu.
Além disso, diz o especialista, as mulheres podem alegar estado de necessidade (uma ação praticada para alguém se salvar de um perigo) e a chamada inexigibilidade de conduta diversa (de maneira simples, quando um ato deixa de ser reprovado), pois fizeram denúncias por meios oficiais e, até então, não havia resposta da Justiça. Questionado se os crimes de calúnia e difamação se encaixariam nesse caso, o advogado respondeu: “Não, porque o propósito delas não era o de prejudicar, mas sim o de alertar”.
Maria e Viviane denunciaram Peixoto em uma delegacia do Rio de Janeiro, onde moravam. Bianca desistiu de prestar queixa. E Rosa, que acompanhava o desenrolar do caso à distância, acabou só prestando depoimento em uma delegacia de seu próprio estado. Na ocasião, foi ouvida como testemunha e não como vítima.
Apesar das denúncias, Rosa afirma que o caso só foi adiante depois que as mulheres avisaram ao jornal carioca “Extra”, o primeiro a noticiar a história. Luã Marinatto, jornalista responsável pela reportagem, confirmou ao UOL que o indiciamento ocorreu dias depois de ele fazer contato com a delegacia para saber mais sobre o caso.
“Muito mais do que ter ou não saído na imprensa, o que garantiu o desfecho dessa história foi a mobilização dessas mulheres, que se uniram para denunciar e evitar que o mesmo acontecesse com outras pessoas. Não fosse isso, ele certamente não teria sido condenado”, disse Marinatto, que em 2015 entrevistou Peixoto, em uma conversa cheia de contradições por parte do acusado.
Ao falar sobre o relacionamento com Rosa, por exemplo, Peixoto disse inicialmente que a avisou sobre a doença: “Quando ela soube, falou que não teria problema transar inclusive sem camisinha, porque queria ser mãe”. Em seguida, contou que ela fez a descoberta na casa dele, ao encontrar alguns exames. No decorrer da conversa, voltou novamente à primeira versão.
Passo a passo do relacionamento
A condenação da juíza Lúcia Regina Esteves De Magalhães, da 19ª Vara Criminal, considera que, apesar de a defesa ter tentado a todo custo desqualificar os depoimentos das vítimas, eles são harmônicos. “Todas narraram exatamente o mesmo modus operandi utilizado pelo acusado, demonstrando a credibilidade das declarações das mesmas. Assim, não restam dúvidas quanto ao dolo do acusado em manter relações sexuais com as vítimas, a fim de lhes transmitir enfermidade incurável”, diz o texto.
Esse passo a passo, com base nos depoimentos, começava com um contato pela internet: Tinder, Badoo, Facebook e até Instagram foram mencionados. Nas fotos de apresentação, disse Maria, Peixoto exibia sua filha bebê: “Por isso nunca iria imaginar que ele fosse fazer o que fez”. Os dois marcavam de se encontrar, e a distância não se mostrava um problema: Rosa e Camila saíram de outros estados para conhecer o acusado pessoalmente no Rio de Janeiro.
Era comum que ele levasse as mulheres para seu apartamento na Barra da Tijuca. Nas conversas --em que, segundo as testemunhas, nunca havia menção à doença--, Peixoto mostrava-se interessado em algo sério, falando até que aquela era a mulher de sua vida.
Fazendo-se passar, fraudulentamente, por pessoa interessada em relacionamento duradouro, mediante a ocultação do fato de ser soropositivo e de sua verdadeira intenção de contaminá-las e de disseminar o vírus
Trecho da decisão de condenação
À promessa da relação estável, somava-se um discurso sobre confiança --sentimento que, segundo o acusado, dispensava o uso de preservativo. Ele era considerado educado, mas, no ato sexual, mostrava-se bastante agressivo. Os depoimentos indicam que sexo anal, também sem camisinha, era uma prática frequente: "Quanto mais machuca, mais a possibilidade de contaminação", afirmou Viviane. Renato também dizia, em diferentes contextos, que iria “marcar” as mulheres para toda a vida.
O que diz o acusado
Em seu depoimento, Peixoto disse ser portador do HIV desde 1999 e acreditar ter contraído a doença ao fazer uma tatuagem.
Ele contou usar a plataforma de relacionamento Tinder, que abandonava quando começava a se envolver com alguma mulher, pois “entrava de cabeça” nas relações. O site funcionava, segundo ele, porque não saía para beber e, assim, não tinha muitas possibilidades de conhecer eventuais parceiras. Peixoto mencionou uma infância tumultuada, porque perdeu o pai cedo, e disse querer casar e constituir família.
[...] Queria um relacionamento sério, mas as mulheres eram pervertidas; que tentou mudar a cabeça delas, mas não conseguiu
Trecho do depoimento de Renato Peixoto à Justiça
Sobre Maria, disse ter usado sempre preservativo durante o ato sexual. E afirmou acreditar que a informação contrária era retaliação, pois ele teria terminado o relacionamento por ela ser “pervertida”. Ele admitiu ter tirado o preservativo uma vez, durante o sexo, porque ela era “pervertida” e para o vídeo que faziam “ficar bonito”. Peixoto disse ainda ter contado que era portador do vírus HIV e que ela concordou em manter relação sexual com camisinha.
Ao reforçar que "a vítima sabia" da doença, seu advogado explicou: “Ela foi com ele ao médico. Houve imprudência, não dolo.” O infectologista de Peixoto confirmou essa consulta do casal, mas no processo não consta a data da visita (isso indicaria se foi antes ou depois de ter sido alertada por Rosa).
À época do depoimento, Peixoto falou de seu relacionamento então estável com Camila, conhecida no final de 2015, pelo site Badoo, pouco antes de a jovem completar 18 anos. Camila contou à Justiça que saiu de seu estado e foi para o Rio de Janeiro pela primeira vez para morar com Peixoto, com quem teve um filho --antes da mudança, ele teria lhe falado sobre a doença. Nem ela nem a criança têm o vírus HIV, ainda de acordo com Camila.
O homem tem outra filha (aquela exibida nas fotos), com uma ex-namorada do Rio de Janeiro, que também teria sido infectada --Rosa diz ter descoberto a doença do ex ao encontrar um exame de gravidez dessa jovem, na casa do acusado, em que o laboratório pedia encaminhamento urgente a um infectologista. Ao "Extra", ele afirmou ter contaminado duas mulheres: “Sabiam. Me aceitaram desde o início e continuaram comigo. Aí, acabaram se contaminando”.
* Os nomes foram trocados para proteger a identidade das mulheres.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.