PM relata rotina de tensão após ameaças por 'selinho': "é como se eu estivesse de tornozeleira"
A Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo encaminhou à Corregedoria da corporação o depoimento do soldado Leandro Barcellos Prior para que o órgão, incumbido de apurar a conduta dos próprios policiais, investigue uma série de ameaças contra a vida do PM. Ao UOL, ele afirmou ver sua rotina ser modificada por causa da tensão, mas avisou que não deixará a Polícia.
Nos últimos dias, a imagem de Prior passou a ser associada à circulação de um vídeo gravado em um vagão do metrô de São Paulo, sem o consentimento do PM, no qual ele aparece, de farda, dando um ‘selinho’ em outro rapaz. Desde então, relata, recebeu ameaças e cobranças para que pedisse baixa – ou seja, desistisse de ser um policial. Ele está em licença médica desde o último dia 29.
O vídeo circulou em grupos de WhatsApp de policiais militares. Prior foi identificado mais facilmente já que, no ato de demonstração de afeto, estava fardado. Ele é assumidamente homossexual.
Segundo o ouvidor da PM, o sociólogo Benedito Mariano, o depoimento do soldado foi apresentado ao chefe da Corregedoria, coronel Marcelino Fernandes, para que seja aberto procedimento em um setor do órgão especializado na apuração de casos nos quais os policiais são as vítimas.
No depoimento ao ouvidor, tomado na última terça (10), Prior afirmou ter recebido ameaças via telefonemas e redes sociais. Algumas delas teriam sido feitas ao pai do soldado, que é PM da reserva.
“Conversei com o coronel Marcelino [chefe da Corregedoria] e disse a ele sobre a preocupação com a segurança do policial. A Ouvidoria requereu que a Corregedoria dê uma atenção especial ao caso, por meio do setor de policiais vítimas, que tem expertise para identificar autores de ameaça”, disse o ouvidor. “Chama a atenção que todas as mensagens que o soldado recebeu refletem um ódio muito grande e uma forte posição homofóbica –vindas de duas ou três pessoas diferentes”, completou.
Um dos supostos autores das ameaças, um policial da Rota (tropa de elite da PM), teria sugerido uma ação de apedrejamento ao soldado porque ele teria desonrado a corporação. “Queremos saber se os autores das ameaças são policiais ou não, por isso os casos têm de ser rastreados. Esse PM do Choque, por exemplo, negou ter escrito aquilo e alegou que o perfil dele no Facebook foi hackeado. Isso tudo precisa ser apurado”, concluiu o ouvidor.
"Quem quer que eu saia da PM, esqueça"
Ao UOL, o soldado relatou que o episódio impactou não apenas no trabalho, mas na vida familiar e na rotina do dia a dia. Se vai a alguma atividade de lazer –uma balada, por exemplo --, se sente obrigado a detalhar a pessoas de seu convívio aonde vai, com quem e como vai chegar, para saberem seu paradeiro caso ele sofra alguma agressão ou algo ainda mais sério.
“Há um impacto diretamente na vida familiar, não só no meu dia a dia, mas no da minha mãe, do meu padrasto, da minha avó... E eu sempre fui muito ativo: gosto de ir a bares, dar risada, mas agora tenho que constantemente avisar de três a cinco pessoas próximas onde estarei e que meio estou usando, o que gera um estresse muito grande”, desabafou. “É como se eu estivesse com uma tornozeleira eletrônica, mas sem ser criminoso.”
Prior disse que as ameaças não partem de civis e que elas não foram feitas também ao amigo em quem deu o beijo na linha vermelha do metrô. “Elas vêm de dentro, é só militar ameaçando. O problema é comigo, para que eu saia ou me exonere”, contou. “O problema da ameaça nem tanto é aquela direta, mas a velada: eles ‘vão fazer algo’? ‘Eles’ quantos? Minha relação com meu pai era ótima, ele sabia da minha condição, mas agora o vínculo quebrou –sem dizer que todos em casa ficam em alerta a todo tempo”, narrou.
Ele disse confiar na investigação da Corregedoria. “Acredito que haja uma lisura no processo, pelo menos é o que eu espero. Mandei isso também à Secretaria Nacional de Direitos Humanos”. “Na inocência ou na presunção de impunidade, pessoas utilizam as redes sociais como se elas fossem um escudo. Esse meu caso mostrou a verdadeira cara da homofobia e do preconceito que já há, dentro da instituição, contra negros e contra mulheres, ainda que mais veladamente. Quando a máscara cai, aparecem meia dúzia de babuínos na rede social xingando e humilhando, mas eles se esquecem que dá para identificá-los, sim”, alertou o soldado.
Indagado sobre a PM ter se posicionado administrativamente sobre a conduta dele – que, fardado e armado, deveria estar em alerta –, e não sobre os ataques sofridos, o soldado lamentou: “É lamentável e triste que uma corporação que se propõe, por meio de juramento, à defesa da vida, não se posicione firmemente quando alguém afeta contra a sua integridade física”, disse.
Se pretende pedir baixa da PM, como alguns de seus agressores virtuais chegaram a sugerir? “Em momento algum farei isso. Hei de permanecer na PM e ainda prestar novos concursos internos. Quem quer que eu saia, esqueça”, avisou. Em novembro, ele completa quatro anos na corporação.
O UOL pediu à assessoria da PM por escrito e por telefone qual a posição da corporação sobre casos de homofobia entre os próprios policiais, sobre eventuais medidas protetivas no caso do soldado Prior e sobre o procedimento na Corregedoria – se já fora instaurada investigação e qual o prazo para finalização dos trabalhos –, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Corporação precisa repudiar homofobia, defende advogado
Para o advogado e ativista de direitos humanos Ariel de Castro Alves, que acompanhou o depoimento do soldado à Ouvidoria na condição de conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana), “é importante que o Comando Geral da PM se manifeste oficialmente contra essas ameaças” para que elas possam cessar.
“A PM atua com base em comandos. Se o Comando-Geral rechaçar esse tipo de ataque, diferentemente das declarações do próprio governador [Márcio França], isso tende a parar”, disse Alves.
Na semana passada, França (PSB) destacou que o código disciplinar da PM “tem regras gerais”. “Eu acho que ninguém precisa fazer as coisas ostensivamente. Nesse caso específico, seja namorando com homem ou com uma mulher, não tem sentido um policial fardado ficar fazendo gestos dentro de qualquer lugar público, é desnecessário, parece uma certa provocação desnecessária”, reagiu o governador, que disse ainda compreender “um certo constrangimento” à corporação.
Conforme o conselheiro do Condepe, é comum instituições militares rechaçarem a homossexualidade. “A própria incitação ao linchamento feita pelo PM da Rota é uma forte prática homofóbica que comprova isso. Em geral, ou essas vítimas são compelidas a pedir baixa, ou essa violência a que são submetidas repercute depois na sociedade. E não só homofobia, mas isso está em treinamentos cruéis e outras situações degradantes –por isso é importante criar nos policiais a consciência de que devem denunciar isso a entidades de direitos humanos e à Ouvidoria".
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