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Discurso violento de líderes cria clima de 'liberou geral', diz ex-ministro

O ex-secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, discursa durante criação da Comissão Arns - ALICE VERGUEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO
O ex-secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, discursa durante criação da Comissão Arns Imagem: ALICE VERGUEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

21/02/2019 04h00

Paulo Sérgio Pinheiro, diplomata e ex-ministro de Direitos Humanos, diz acreditar que o Brasil vive um momento "crítico" e um processo de "desdemocratização", com o desmantelamento da defesa dos direitos humanos. Presidente da Comissão Arns, criada ontem para monitorar e defender políticas de direitos humanos a serem feitas pelo governo, o integrante da Comissão da Verdade manifestou, em entrevista ao UOL, preocupação com a gravidade dos casos de violência nos primeiros 50 dias do novo governo. 

Pinheiro, que também é professor aposentado do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) e presidente da Comissão de Inquérito sobre a Síria, grupo criado pela ONU (Organização das Nações Unidas), deixa claro que a comissão é apartidária e não pretende fazer política ou oposição a qualquer governo estadual ou federal, mas diz que o grupo estará alerta para eventuais retrocessos que possam acontecer durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

O ex-ministro evitou entrar em polêmicas com autoridades do atual governo, defendendo que a comissão estará aberta ao diálogo. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, já disse, por exemplo, que o Brasil é o pior país da América do Sul para criar meninas e que vai rever a política de concessão de reparações para anistiados políticos do regime militar para limitar as indenizações.  

Além do ex-ministro na gestão de Fernando Henrique Cardoso, a comissão --batizada em homenagem a dom Paulo Evaristo Arns-- é formada por um grupo de 20 juristas, intelectuais e ativistas, como os ex-ministros José Gregori, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Paulo Vannuchi.

Veja os principais trechos da entrevista:

Qual é a opinião do senhor sobre as posições da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves?

Acho que não podemos ficar examinando tudo o que o governo tuíta ou o que os ministros dizem. O nosso diálogo com a ministra deve ser em termos das políticas, das decisões que ela virá a tomar. E evidentemente, em qualquer momento necessário, teremos que dialogar. Dialogaremos com todos os ministros e com todos os Poderes da República, como já fazemos.

Os trabalhos da comissão não serão pautados por tuítes de autoridades então...

Acho que o presidente tem todo o direito de se comunicar como quiser. Mas nós não temos condições nem de seguir todos os tuítes e, para fazer um trabalho sério, o que nos interessa são decisões, são decretos, são as tramitações de projetos no Congresso Nacional.

Não temos nenhuma condição de entrar em polêmica com o governo, isso é contraproducente para as vítimas

Em cerca de 50 dias de governo, já tivemos casos graves de violência. Como o senhor vê isso?

Acho que muitas pessoas estão lendo esse discurso violento que é feito por parte de algumas autoridades como um "liberou geral". Por exemplo, como esse senhor que atacou a mulher, desfigurou-a dormindo. Também tivemos o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel [PSC], saudando a execução dos 13 jovens, saudando a ação da Polícia Militar. Tudo isso é preocupante. Mas não vamos brigar com o governador do Rio por ter feito isso. Nós conversamos, e é isso que nós queremos. Talvez essa comissão tenha condições de, mais do que outras entidades, pelo perfil das pessoas que fazem parte dela, de dialogar e ajudar as entidades de direitos humanos. 

Qual é a avaliação que o senhor faz desse começo de governo?

Como parte da comissão, não faço análise política de conjuntura. O que nós queremos saber, conhecer e poder caminhar no sentido da crítica e do diálogo é sobre as leis, as decisões, os projetos concretos. Agora, em relação ao discurso diário das autoridades, nós nunca fizemos isso. Nem na ditadura. E mesmo em governos democráticos, outras comissões de direitos humanos não ficavam nesse bate-boca com autoridades. Não dá.

Por exemplo, eu não sei o que a comissão vai fazer em relação ao elogio do governador do Rio a essa ação policial, elogio feito antes mesmo de qualquer investigação. O que podemos dizer é o seguinte: tem que haver uma investigação primeiro, antes de o governador chancelar como impecável e rigorosa a ação policial. A comissão não vai bater boca com governos. Isso não adianta e não ajuda. A nossa referência não somos nós, são as vítimas. Então temos que achar a melhor maneira de proteger os direitos das vítimas.