MG: enfermeiras são ameaçadas para dar documento que garante mesada da Vale
Uma semana atrás, já havia anoitecido e a enfermeira-chefe de um posto de saúde de Brumadinho (MG) não conseguia deixar a unidade. Uma mulher a ameaçava: "só sai daqui depois que me der o comprovante". A Polícia Militar foi acionada e um boletim de ocorrência, registrado na delegacia.
O caso, confirmado pela Polícia Civil do estado, não é fato isolado. Há dois meses, as profissionais que coordenam as unidades de saúde do município têm sido alvos de grosserias, intimidações e ameaças por parte de moradores que querem um comprovante de endereço para receber os pagamentos emergenciais da Vale.
Por causa do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, que já deixou 231 mortos, 46 desaparecidos e muita gente sem casa e fonte de renda, a mineradora terá de pagar mensalmente ao longo de um ano um salário mínimo (R$ 998) para todo adulto, meio salário mínimo (R$ 499) para todo adolescente e um quarto de salário (R$ 249,50) para toda criança residente em Brumadinho ou dentro de 1 km da calha do rio Paraopeba, até o município de Pompéu. Mas todos precisam provar que residiam nessas localidades no dia da tragédia, 25 de janeiro.
A Vale aceita conta de água ou luz no nome da pessoa, declaração da escola ou faculdade em que a criança ou jovem está matriculado, cadastro na Justiça Eleitoral, entre outros comprovantes. Mas quem não dispõe de nenhum deles pode ir à unidade de saúde onde tem cadastro e pedir uma declaração assinada pela enfermeira responsável. No caso de Brumadinho, o fornecimento do documento nos postos ficou acertado entre a mineradora e a Secretaria Municipal de Saúde no fim de fevereiro.
O problema é que a corrida aos postos está maior do que o esperado. A maioria dos 80 a 100 mil possíveis beneficiários, segundo estimativa da Vale, pertence a Brumadinho. E as enfermeiras-chefes dos postos são quem têm sentido mais diretamente os efeitos dessa demanda.
Nas últimas duas semanas, a reportagem do UOL ouviu relatos quase que diários de algumas das 14 enfermeiras encarregadas pelos postos de Brumadinho. Elas pediram para não serem identificadas.
De olho no dinheiro
Os postos de Brumadinho são unidades do Programa Saúde da Família (PSF), cujos agentes comunitários fazem visitas semanais às residências. Mesmo quem nunca foi ao posto, tem cadastro porque ele é feito pelos agentes nas casas. Por isso, as enfermeiras encarregadas das unidades têm como saber quem mora e quem não mora em cada endereço.
Mas pessoas que nunca residiram ou que já se mudaram do município há tempos - e que, portanto, não têm direito ao benefício - resolveram aparecer e requerer a declaração. E quando recebem um 'não' como resposta, se exaltam e fazem ameaças.
Estão alugando casas em Brumadinho, tentando usar endereços de amigos e parentes e indo ao posto para pedir declaração. Quando [a enfermeira responsável] fala que não vai dar, porque a pessoa não mora no endereço, o povo parte para a ignorância, liga, ameaça, é bruto. O pessoal está louco por causa de dinheiro
Enfermeira-chefe de posto de saúde de Brumadinho, sob anonimato
Quando um morador se muda para outro bairro ou outra cidade, a alteração de endereço é registrada no prontuário, que é separado dos demais e vai para um arquivo morto, segundo explica outra enfermeira.
"Hoje me indispus umas três ou quatro vezes, porque eles começam a falar que moram [em determinado endereço], que têm direito, e começa a discussão. E a gente sabe que a pessoa não mora, porque está no cadastro", disse uma enfermeira em 8 de abril.
Ontem me pediram declaração de um rapaz que morreu há 15 dias
As enfermeiras também relatam casos em que autoridades e pessoas influentes na cidade têm ido pessoalmente às unidades exigindo comprovantes para terceiros não-residentes. Nesses casos, elas acabam emitindo o documento, com medo de sofrer alguma consequência. Nem todas são concursadas e, por isso, não usufruem de estabilidade no cargo.
Falta de segurança
A coordenadora do setor de atenção básica em saúde do município, Regina Célia Silva, confirmou ao UOL que as ameaças vêm ocorrendo e disse que as enfermeiras foram orientadas a chamar a polícia e registrar boletim de ocorrência. Para as profissionais, no entanto, a solução mais adequada seria outra. "Deveria é ter policiamento nos postos, porque a todo momento somos coagidas, desacatadas. Está muito difícil", diz uma delas.
As intimidações, no entanto, já extrapolaram o ambiente de trabalho. Enfermeiras relatam estarem sendo abordadas na rua e recebendo ligações e mensagens em seus celulares particulares de pessoas que insistem na declaração após serem informadas nos postos que não têm direito ao documento.
A reportagem teve acesso a um desses diálogos, em que a enfermeira reitera sua posição em negar o documento para não incorrer em fraude, uma vez que do prontuário da pessoa consta que ela se mudou do endereço há mais de um ano. Mas a pessoa esbraveja e diz que continuará tentando obter o papel.
Declarações falsificadas
"Acabei de saber que estão falsificando as declarações", disse uma enfermeira há cerca de uma semana. "[Estão] cobrando R$ 1.000 do povo. Não sei quem, porque as pessoas não falam."
As enfermeiras acreditam que as falsificações realmente podem estar acontecendo, porque o documento fornecido pela secretaria é muito simples. Até agora, nem Vale nem a Polícia Civil de Minas Gerais acusam ter recebido algo parecido, mas as investidas fraudulentas visando aos pagamentos da mineradora têm ocorrido.
Até ontem, quatro pessoas haviam sido presas por suspeita de tentativa de estelionato. Entre elas, uma ex-candidata a deputada pelo Distrito Federal nas eleições de 2014, que mora no DF e foi detida em flagrante em 18 de março, por se passar por uma das vítimas. Ela chegou a receber R$ 65 mil de doação da mineradora, alegando ter um terreno no Parque da Cachoeira, uma das áreas mais afetadas pelo rompimento da barragem.
Segundo a polícia, ela teria inclusive convencido moradores do bairro rural a testemunharem confirmando a história - eles serão indiciados por falsidade ideológica.
A Vale tem afixado banners nos postos de recolhimento de documentos (para fins de pagamento emergencial), instituições bancárias e unidades de saúde alertando para as consequências desse tipo de delito.
Rotina prejudicada
A coordenadora da atenção básica também confirma o relato das enfermeiras de que o movimento nas unidades aumentou muito desde que os comprovantes passaram a ser emitidos, e que alguns procedimentos estão tendo que ser cancelados, como acompanhamento de crianças de até um ano nas casas, vacinação e coleta de exames de papanicolau.
Já tive que desmarcar dois dias inteiros de agendamentos. Ou eu fazia os comprovantes ou os exames
As enfermeiras dizem estar emitindo cerca de 50 a 60 comprovantes por dia.
Os postos estão sempre cheios, há filas, e muita gente tem perdido a paciência, seja quem espera por atendimento médico, seja quem tem como objetivo sair com o comprovante de endereço na mesma hora. Cada enfermeira-chefe adotou um sistema para dar conta da demanda, mas, geralmente, elas pedem cinco dias de prazo, porque precisam consultar o cadastro antes de emitir o documento.
"As pessoas não entendem que não é chegar e levar o comprovante. A gente tem que checar. E agora tem aqueles que vêm com papel da Defensoria Pública e acham que a gente tem obrigação de fornecer a declaração", diz uma das enfermeiras.
O UOL teve acesso à cópia de um desses documentos, em que um defensor da União pede que seja entregue ao solicitante o seu prontuário. Segundo o órgão informou à reportagem, por meio de sua assessoria de imprensa, o requerimento é emitido a quem manifestar estar tendo dificuldade em conseguir o comprovante de endereço.
Questionada a respeito, a Secretaria de Saúde de Brumadinho disse que o documento da Defensoria não é necessário, porque a unidade já fornece a declaração se a pessoa estiver com o cadastro em ordem.
Providências
A situação está mexendo com o emocional das funcionárias, que, na semana passada, se reuniram para pensar em que tipo de atitude tomar. "Uma das meninas chegou chorando", contou uma delas. As profissionais pensam em escrever uma carta para autoridades do município e do estado detalhando o que vem acontecendo e pedindo ajuda.
Ontem, no último relato que chegou à reportagem, a enfermeira tinha a voz embargada. Parecia exausta.
"Essa declaração da Vale está acabando comigo. É pessoal que eu conheço há anos, que mudou, voltou. É amigo que está chateado porque a gente não está emitindo [os comprovantes], porque estou fazendo as coisas certinhas. Estou me sentindo sozinha nesse posto para fazer um milhão de declarações. Estou no meu limite", disse.
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