Ataque a Zumbi revela 'sequestro' da Fundação Palmares, diz movimento negro
Resumo da notícia
- Movimentos negros e historiadores afirmam que houve "sequestro" ideológico da Fundação Cultural Palmares (FCP)
- A fundação publicou dois textos atacando a memória de Zumbi, classificando-o como "herói da esquerda racialista"
- Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão solicitou ação de improbidade administrativa contra Sergio Camargo, presidente da FCP
- O UOL solicitou entrevista com Sergio Camargo, mas os pedidos foram ignorados pela assessoria de imprensa
Movimentos negros e historiadores demonstram revolta com ataques ao herói nacional Zumbi e afirmam que houve "sequestro" ideológico da Fundação Cultural Palmares (FCP), responsável por identificar comunidades quilombolas e promover ações "visando à integração cultural, social, econômica e política do negro no contexto social do País".
Na última quarta-feira (13), data em que a Lei Áurea (que pôs fim à escravidão no Brasil) completou 132 anos, a fundação usou suas redes sociais e site oficial para publicar dois textos atacando a memória de Zumbi, classificando-o como "herói da esquerda racialista; não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!", diz um dos trechos publicados.
Zumbi foi o último comandante do mais duradouro quilombo do mundo, o dos Palmares, que existiu entre os séculos 16 e 17 na região da Serra da Barriga, então Zona da Mata de Pernambuco — hoje pertencente ao município de União dos Palmares, em Alagoas. No seu local há hoje um memorial gerido pela FCP e que exalta a luta e história de Zumbi — o espaço está fechado devido à pandemia do novo coronavírus.
Desde a sua fundação, em 1988, a FCP foi presidida por integrantes do movimento negro. O atual presidente, Sérgio Camargo, quebrou a regra e se tornou conhecido por críticas às ações afirmativas aos negros — ele diz não reconhecer a existência de racismo no Brasil. Devido a esses posicionamentos, Camargo teve a nomeação inicialmente suspensa pela Justiça, até a liberação do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF (Ministério Público Federal) encaminhou representação para que a Procuradoria no Distrito Federal inicie uma ação de improbidade administrativa contra Camargo pelas postagens feitas no dia 13 de maio.
O UOL solicitou, por meio da assessoria de imprensa da Fundação Cultural Palmares, uma entrevista com o presidente Sergio Camargo. Foram enviados dois e-mails, na quinta (14) e sexta-feira (15). Não houve resposta até a publicação desta reportagem. Se for enviado um posicionamento, será publicado.
"Decepção, tristeza e revolta"
Primeiro presidente da Fundação Cultural Palmares, Carlos Alves Moura ficou no cargo de 1988 a 1990 e afirma que nome da fundação já mostra a importância do herói negro. "Estou com um misto de decepção, de tristeza, de revolta. É lamentável aquilo que está sendo proposto, o que já foi dito pelo atual presidente", comenta.
"É um tributo a Zumbi, é um tributo à resistência e a tantos outros que lutaram. Essas atitudes [de Sergio Camargo] só reforçam em nós, do movimento negro, o sentimento de necessidade de continuar essa luta de superação do racismo, do preconceito. E essa caminhada tem como objetivo a superação da desigualdade, em toda sociedade e estado brasileiro."
Moura afirma que a fundação surgiu após anos de luta do movimento negro brasileiro. "Levamos anos e anos para conseguir ter, dentro da estrutura do estado brasileiro, um órgão que lutasse contra o preconceito, destinado a resgatar, estudar, difundir e respeitar a cultura afro-brasileira. Um órgão que buscasse superar o racismo e o preconceito da nossa população. Trinta anos depois, parece que o governo brasileiro dá um passo atrás."
O advogado lembra que uma das atribuições da fundação é reconhecer as comunidades quilombolas, como prevê a Constituição. Moura diz temer o que virá pela frente com a entidade. "Que mecanismo irá reconhecer os territórios quilombolas? Que mecanismo, dentro da estrutura do estado brasileiro, irá trabalhar no sentido do respeito à dignidade e à cultura afro-brasileira, que é uma das nossas principais matrizes identitárias?", questiona.
"Sequestrada pelo que há de pior"
Antecessor de Camargo na presidência da FCP — ou seja, antes do início do governo Jair Bolsonaro (sem partido) —, Erivaldo Silva avalia que "a Fundação Palmares foi sequestrada pelo que há de pior."
"Foram mais de 130 anos de luta, mais de três séculos de escravidão, mais de 130 anos de desigualdades. Avançamos em algumas políticas sociais, avançamos nas políticas de igualdade racial, e vem um louco destruir completamente", lamenta.
De acordo com Silva, para que Zumbi fosse incluído em 1997 no livro dos heróis nacionais do Congresso Nacional foi feito um grande estudo de historiadores e antropólogos. "O ataque a Zumbi foi covarde, de quem não conhece a história e não sabe o que foi o quilombo — esse foi o único quilombo do mundo a durar mais de 100 anos. É muito desconhecimento de causa", diz.
"A fundação está sendo sequestrada por pessoas de ideologia completamente desconectada da Constituição Federal, que querem propagar cada vez mais o ódio e também um descrédito do movimento. São 200 anos de retrocesso. É muito triste, muito lamentável tudo isso", finaliza o mestre em economia do setor público e administração pública.
Tentativa de "mudar" história
Segundo o historiador e pesquisador Sávio Almeida, a ideia de que Zumbi foi um líder "fabricado" pela esquerda e de tentar alterar o que já está comprovado em pesquisas é "ridícula".
Almeida relata que a história de Zumbi passou por uma verdadeira metamorfose ao longo dos anos. "Zumbi aparece na historiografia no final do século 19 e início do 20 como um herói negro que a sociedade branca permitia que existisse. Ele ficou lá como essa marca da sociedade permitir, para 'provar' que não era racista. Depois, quando começam a ter força os movimentos reivindicatórios, recupera-se essa imagem da luta pela liberdade, que é a história real de Zumbi. Não tem isso de esquerda ou direita", pondera.
Sobre a nova versão apresentada por Sérgio Camargo, o historiador diz que não há qualquer embasamento histórico. "De todas histórias que conheço, essa é diferente. Antes havia uma preocupação política, era uma negação do racismo. Mas são épocas diferentes. Antes, o objetivo era dizer: 'eu permito herói'. Nessa nova versão inventada, não se permite que ele [Zumbi] exista. Uma é um 'sequestro'; a outra é a 'morte'."
Fundação tem "duplo valor"
O coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Uneal (Universidade Estadual de Alagoas), Clebio Correia, afirma que a Fundação Cultural Palmares é um órgão de "duplo valor" para a comunidade negra e tem uma importância prática para os descendentes de escravos.
"Por um lado, é o órgão responsável pela execução de políticas públicas voltadas diretamente para comunidades quilombolas no Brasil — é quem reconhece essas comunidades. Além disso, ela faz políticas voltadas para valorização do patrimônio afro e políticas de assistência. Apesar de nunca ter sido dotada de toda estrutura, é um órgão necessário, estratégico", ressalta.
Outro ponto citado por Correia é que a FCP representa uma primeira ação concreta no Brasil para reparar os danos causados aos negros escravizados no país. "A fundação tem um valor simbólico muito grande, porque quebra um paradigma na história do Brasil. Se nós considerarmos que a abolição oficial da escravidão aconteceu em 13 de maio de 1888, o estado brasileiro nunca criou nenhum tipo de lei em educação, saúde, cultura, moradia", lembra.
Correia explica ainda que a história contada de que a abolição da escravidão ocorreu por um ato espontâneo do Império brasileiro à época é um erro que foi reparado, em partes, com a escolha da data de 20 de Novembro (que marca a morte de Zumbi) como o dia da Consciência Negra.
"Tomava-se como referência a princesa Isabel e a realização de uma abolição tutelada na figura de uma senhora branca, pertencente à nobreza. Não se discute se ela era abolicionista — e a história mostra que ela era —, mas o papel social que representava do estado brasileiro aristocrata e branco. Havia um silêncio dos negros, das organizações que lutaram contra a escravidão desde o período colonial", conclui o pesquisador da Uneal.
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